quarta-feira, 4 de novembro de 2020
S. JOÃO E OS TRIPEIROS
AS RUSGAS
Recado a
quem organiza as Rusgas de S. João
— Façam as verdadeiras Festas da Cidade, chamem ao Porto o turismo
que tantos precisamos… assumam o S. João como um cartaz da cidade e único no
mundo.
— Enfeitem as ruas por onde passa o desfile, ponham balões, cravos
de papel e muita luz. Então o S. João não faz parte das FESTAS DA CIDADE?
— Aumentem o percurso para dar mais tempo à exibição junto à
Câmara e espalhar assim mais o povo pelas ruas (sabem o que é estar de pé das
21h00 á 01h00?)
— Convidem um júri conhecedor, que avalie as músicas e as letras
que seriam obrigatoriamente inéditas. Cedam fotocópias das mesmas aos
membros do júri.
— Como é que um júri, onde a maioria nasceu há poucos anos, sabe o
que é a essência das rusgas, ou que elas trazem de intrínseco?
— Organizem (com o devido tempo) um concurso para a Grande Marcha
do S. João do Porto todos os anos (as que ouvimos hoje, ainda são dos anos 60,
da Lenita, Florência e da Rosita). Esta marcha (extra concurso) seria a do
Porto Lazer que abriria sempre o desfile abrilhantando e dando mais cor ao
evento.
— Depois da fusão das freguesias, os bairros populares como a
Lapa, a Fontinha ou as Musas e mesmo todos os bairros camarários, podem vir
para a rua (era assim as Rusgas de antigamente). Mostrem que também a TV pode
cá vir e dar a conhecer ao resto do país a alegria e o bairrismo da Festa mais
democrática do mundo.
— As Rusgas seriam dos Bairros da Cidade e não das Freguesias,
teríamos:
A Rusga do Cerco, do Agra, do Moiteira, do Regado, de S. Roque,
etc.
Podiam dividir a exibição em duas, umas na Sexta e outras no
Sábado.
— O tema seria sempre livre para todas as Rusgas, a única
obrigação que teriam, era de todas cantaram alternadamente pela rua, a Grande
Marcha da Cidade (desse ano) para depois junto ao júri, exibirem a sua Rusga.
— Lisboa faz das suas marchas um cartaz importante, com a TV em
directo e nós? Que temos para dar ao país? Tenham orgulho e brio em ser do
Porto
As
Rusgas, que sempre vejo na rua, nada têm a ver com a transmissão na TV das
Marchas de Lisboa. São eventos diferentes, mas com o mesmo espírito bairrista
de levar e mostrar, o melhor que há nos bairros populares. Claro que as Marchas
nada têm a ver com o tradicionalismo das Rusgas, estas nasciam espontaneamente
em cada rua, que depois das torradas e o café feito na fogueira, percorriam as
ruas vizinhas com ranchos de mulheres cantando e batendo testos e homens com
ramalhos e balões, acordeões, bombos e ferrinhos. As quadras eram as mais
populares e improvisadas, dentro da música mais tradicional de S. João, como:
E Repenica,
repenica, repenica / O S. João a mijar em bica
E Orvalhadas,
orvalhadas, orvalhadas / E Viva o rancho das mulheres casadas
O
Cariz popular expresso nesta quadra, como em muitas outras, demonstra o improviso
e a espontaneidade em que tudo era feito neste “rusgar” do povo.
As
Marchas de Lisboa pelo contrário, nasceram da ideia cinematográfica de Leitão
de Barros, com ajuda de António Ferro, responsável pela propaganda do regime do
Estado Novo. Nada têm de improviso e apresentam-se aos turistas como cartaz
festivo da cidade, na cosmopolita avenida da capital (onde o asfalto é forrado
a vinil, com a linda “calçada portuguesa”, são embelezadas pela plástica dos
seus arcos, pela luz, cor e brilho dos seus trajes (conforme o tema
apresentado), apadrinhadas por gente do G7, que desce até ao povo, por “ser
moda e ficar bem nas fotos das revistas cor-de-rosa”. O verdadeiro povo
lisboeta, a maioria e aquele castiço e mais bairrista, fica-se pelas vielas nas
sardinhadas e nos bailaricos de Santo António, claro… sem aguerridamente deixe
de gritar pelo seu bairro.
Mas
existem muitas coisas boas nas Marchas, que infelizmente as Rusgas não têm, por
continuarmos a ser tacanhos e os eternos provincianos, sempre curvados e subservientes
à capital dum país que nasceu aqui e até fomos nós que lhe demos o nome.
Cartas a
Alberto Rocha da Festival
Caro Alberto
Rocha
Grato
pela atenção em me responder e por partilhar algumas das suas ideias quanto ás
Rusgas. Eu sei que é difícil mexer em tradições, é como os puristas do fado
quando se deparam com algo de novo, ou seja, tudo que é novo sempre mete medo.
O ideal era sabermos extrair o melhor da “novidade” sem beliscarmos a tradição.
É como diz e com razão, que pouca margem de manobra existe para tornar as
rusgas mais vivas, com mais luz e cor que só enriqueciam o espectáculo. As
rusgas estão formatadas dentro daqueles parâmetros ancestrais, mas é sempre
possível melhorar, por exemplo:
—
Podia cada Freguesia, apresentar á cabeça da sua rusga um arco colorido e
iluminado, que representasse um monumento, ex-líbris ou algo de interesse
representativo da sua freguesia. Afinal já muitas delas trazem (como o cubo,
este ano) e não faziam parte da tradição das rusgas… Apenas era preciso dar-lhe
mais ênfase, mais cor, muito mais luz. Serviria para marcar a presença na rua e
a entrada na exibição. Depois, podia ter uma pontuação definida e alta, para
que fizesse também a diferença e levasse cada Freguesias a apostar em
apresentar algo que nenhuma outra freguesia tem. Atrás deste arco principal,
então viria a rusga com as suas tradições normais, mas deixava de haver “só” o
mesmo cenário repetitivo de todos os anos. Haveria finalmente algo de diferente
e sem fugir ou desvirtuar as rusgas em si.
—
Outra coisa que dava um ar mais bairrista e faria chamar mais povo ás ruas
(pela curiosidade), era cada Freguesia convidar padrinhos para a sua rusga, que
abririam o cortejo à frente do Arco principal. Claro que não gostava de ver
como em tempos idos, figuras da TV ou artistas de Lisboa (nunca vi lá nas
marchas, gente de cá), mas artistas do porto, muitos deles das próprias
freguesias. Há tanta gente ilustre nesta cidade, digna de apadrinhar qualquer
rusga…
—
Também o caso da música e da letra serem obrigatoriamente originais, deviam ser
classificadas como tal. A contagem para a classificação, devia ser o somatório
de: Arco original + vivacidade da rusga + tradicionalismo da rusga + música +
letra. O júri devia ser de 5 pessoas, uma para cada área específica e ainda uma
6ª pessoa (presidente do júri) para ser responsável e porta vós (com voto de
desempate, no caso disso). Acho ainda, que a rusga principal só deveria ser
tocada e cantada frete ao júri, mas haveria uma Marcha da cidade que todos
cantariam no desfile. Essa Marcha de S. João do Porto, claro que devia ser um
concurso feito pela Câmara anualmente (com tempo), tal como acontece em Lisboa
á muitos anos.
Repare o Amigo Alberto que as únicas (que
ainda se ouvem) têm muitos anos, são do tempo em que se faziam marchas na
cidade na década de 60. É preciso que fique no ouvido do povo o S. João do
Porto. A Câmara devia de assumir os festejos como verdadeiro cartaz da cidade.
Vem,
ficam aqui algumas sugestões para o meu caro Alberto Rocha, poder apresentar em
próximas reuniões para organização deste certame. Não lhe quero furtar mais
tempo, pois o Amigo tem mais responsabilidades na Rádio e pouco tempo para me
aturar.
Um
abraço
Manuel
Carvalho
Amigo Alberto
Rocha
Gostaria
de lhe dar os parabéns pela sua capacidade de organização. É de louvar, o
empenho que põe nos eventos que a Rádio Festival leva a efeito. Mais uma vez
pude constatar ontem em plena avenida, aquando do desfile das rusgas ao S.
João/2010, como o Alberto Rocha se desdobra para que tudo corra pelo melhor.
Hoje,
domingo, depois de ouvir as classificações e assistir à gravação do desfile
pelo Porto Canal, vi e pude comparar a transmissão, com as Marchas de Lisboa.
São eventos (quase) diferentes, mas com o mesmo espírito bairrista de levar e
mostrar, o melhor que há nos bairros populares.
As
Marchas de Lisboa nasceram da ideia cinematográfica de Leitão de Barros, com
ajuda de António Ferro, responsável pela propaganda do regime do Estado Novo.
Nada têm de improviso e apresentam-se aos turistas como cartaz festivo da
cidade, na cosmopolita avenida da capital (onde o asfalto é forrado a
autocolante com a linda “calçada portuguesa”, são embelezadas pela plástica dos
seus arcos, pela luz, cor e brilho dos seus trajes (conforme o tema apresentado),
apadrinhadas por gente do G7, que desce até ao povo, por ser-moda-e-ficar-bem
nas fotos das revistas cor-de-rosa. O verdadeiro povo lisboeta, aquele castiço
e mais bairrista, fica-se pelas vielas nas sardinhadas e nos bailaricos de
Santo António.
Mas
existem muitas coisas boas nas Marchas, que infelizmente as Rusgas não têm, por
continuarmos a sermos tacanhos e os eternos provincianos, sempre curvados e
subservientes à capital dum país que nasceu aqui e até fomos nós que lhe demos
o nome.
Peço
desculpa ao meu Amigo, que nada tem com isto, continuo a admirar o seu empenho,
mas faça lá uma “forcinha”junto da Porto Lazer, à C. M. do Porto ou quem mais
organiza as Rusgas.
Um
abraço meu prezado Amigo e até ao ano!
Manuel
Carvalho
Amigo
Alberto Rocha
Mais
uma noite de Rusgas, mornas e sem luz, não fora as montras ou reclamos
luminosos da cidade, a luz e a cor não existiam. Começa pela Câmara em não
aproveitar como um Grande Cartaz para a cidade as "FESTAS DA CIDADE",
então o S. João não é uma festa única no mundo? Porque não aproveitar esse
património em proveito da cidade (com a crise...) para chamar gente ao Porto?
Porque não iluminar (pelo menos) as artérias por onde desfilam as Rusgas.
Vale (ao menos) e invasão de gente das Rusgas das freguesias mais carismáticas,
mas não passa disso e da repetição ano após ano, da presença do policia, do
homem das gravatas, do "Carlinhos da Sé", das prostitutas do bairro,
do gracha, ete. Figuras que já vimos todos estes anos. Claro que as
Marchas em Lisboa pela sua temática, têm a facilidade de todos os anos serem
diferentes e despertar a curiosidade própria de ver (como vai o nosso
bairro este ano?). Depois são televisionadas em directo, assim como os
casamentos de Santo António (cá já houveram os de S. João), enfim... A RTP
oferece dois dias de festa em Lisboa (sempre o sul), mas também o que vinha
filmar ás Rusgas? com a escuridão e a tristeza das ruas. Confesso que já ganhei
7 anos com a letra da Rusga da Sé, e depos? Que tem isso de especial, acaso o
Júri (Quem são?) lê as letras ou as classifica? Nem quem as apresenta em
palco, diz os nomes dos autores da Letra ou da Música, tratasse de um
trabalho "menor", sem importância... Por exemplo: Desde os anos 60
que não há uma Marcha do S. João nova, ainda se podem ouvir as da Florência,
Natércia, Rosita ou do Aurélio Perry. Em Lisboa todos os anos é feito um
concurso para a Grande Marcha d Lisboa. O desfile cá no Porto podia abrir com
uma marcha da cidade, onde houvesse cor e muita luz. Olhem o casa deste
ano, como "Manobras no Porto" abriu o desfile (sem
concorrer) com uma enorme animação e a muita imaginação com o "Siga a
Rusga". Enfim, esperemos que alguém lá do gabinete da "cultura"
se ilumine.
Um abraço
Manuel Carvalho
S. JOÃO E OS TRIPEIROS
O SÃO JOÃO DO PORTO
Festas de forte caris popular, o S. João do Porto é uma
festa que nasce espontaneamente, nada se encontra combinado, embora a festa se
vá preparando discretamente durante o dia, é normalmente depois do
jantar, constituído por sardinhas assadas, batatas cozidas e pimentos ou
entrecosto e fêveras de porco na brasa, acompanhadas de óptimas saladas, jantar
obviamente regado com vinho verde ou cerveja, mais modernamente. Findo o
jantar, os grupos de amigos começam a encontrar-se, organizando rusgas de
S. João, como são chamadas. As pessoas muniam-se de alhos-porros
e molhos de cidreira, actualmente as armas, são outras, mudaram para
martelos de plástico, duros e ruidosos, mas que acabaram por ser bem aceites e
hoje já fazem parte da tradição, Há alguns anos atrás, o S. João limitava-se a uma área da
cidade que era constituída, pelas Fontainhas (Ponto nevrálgico ) . A par deste
percurso, que juntava para cima de meio milhão de pessoas, que tornavam as ruas
pejadas de gente, e onde não há atropelos, as zaragatas são de imediato
sustidas pelos populares, os beligerantes rapidamente selam a paz com
mais um copo e uma pancada de alho-porro de amizade. O S. João do Porto é uma
festa onde ricos e pobres convivem uma noite de inteira fraternidade e onde a
festa é constante. Nos bairros, a festa continua e as comissões organizadoras
de cada uma mantém o baile animado até altas horas da madrugada. No tempo
áureo do alho-porro quem chegasse ao Porto vindo de fora, estranharia o odor espalhado
pela cidade... efectivamente ela cheirava a alho. Mas muita da tradição ainda se mantém: Em barracas ou
espalhados pelo chão lá estão os manjericos (Planta tradicional do S. João), as
tendas das fogaças, as farturas, o algodão doce, as pipocas, as barracas da
sardinha assada e dos comes e bebes. Os matraquilhos, os carroceis, as
pistas dos carros. As tendas de venda das louças de barro, das
cutelarias, o tiro ao alvo e as tômbolas. Durante toda a noite, centenas
de balões são lançados e muito fogo de artificio particular é queimado, pela
meia-noite o tradicional fogo de artificio da Câmara Municipal, faz sempre
furor pela sua beleza. No fim e já alta madrugada é ver os foliões procurarem
as padarias onde o pão acabado de fazer e ainda quentinho vai confortar as
barrigas para um merecido descanso. O S. JOÃO DE GERMANO SILVA “O S. João era mais divertido, o que não quer dizer que hoje
não haja diversão”, começou por explicar à Viva o conhecido jornalista e
historiador do Porto Germano Silva. “É um momento em que se esquece o ‘vossa
excelência’. A diferença é que as rusgas eram menos organizadas:
formavam-se nos bairros, passavam nas Fontainhas e terminavam com o tradicional
banho nas águas orvalhadas do Douro, antes de o sol nascer, porque todos
acreditavam que dava saúde”, acrescentou.Com efeito, contrariamente ao que muitas pessoas pensam, o
S. João nunca foi uma festa católica. Trata-se de uma celebração pagã,
intimamente ligada ao culto da fecundidade, do fogo e do sol. Apesar de muitos
desconhecerem as verdadeiras origens do festejo, a felicidade estampada
nos rostos de quem percorre o coração da cidade naquela noite é já uma marca da
Invicta. O conceito “é o mesmo”, sublinhou Germano Silva, notando que as
pessoas se entregam “à folia sem constrangimentos”.“Claro que o S. João vai evoluindo conforme a cidade
evolui”, afirmou o historiador, recordando que “as ruas dos Caldeireiros, do
Almada – onde as varandas ficavam todas iluminadas – e a Praça da Liberdade –
com o fogo preso – já foram os epicentros” da festividade. O auge do arraial
chegou também a ser junto ao Bolhão e no Mercado do Anjo que, entretanto,
encerrou. Nos anos 50, o fogo de artifício era lançado na Serra do Pilar “para
que as pessoas o vissem das Fontainhas”.“O S. João continua a ser a rua”Apesar das diferenças, Germano Silva ainda vive a celebração
da mesma forma. “Para mim, o S. João continua a ser a rua”, revelou à Viva,
acrescentando que, todos os anos, se desloca à rua de S. Victor, na qual a
festa “mantém as características antigas, como a cascata”. O historiador
recorda também o arraial das Fontainhas que, não sendo o mais antigo da cidade,
se transformou na verdadeira “meca” do S. João do Porto. Em meados do
século XIX, “um senhor decidiu construir uma cascata monumental e oferecia café
quente e pão com manteiga a quem a fosse ver”, explicou, esclarecendo que, com
o tempo, se tornou “quase obrigatório” a passagem pelas Fontainhas nesta época.Mas a festa popular não é apreciada apenas pelos portuenses.
“É preciso não esquecer que a revista Newsweek fez, há uns anos, grandes
reportagens sobre festas cíclicas do mundo e o S. João do Porto vinha lá”,
relembrou Germano Silva, explicando que ao contrário do que acontece, por
exemplo, em Braga, onde o S. João “tem uma programação”, no Porto, não existe
um plano definido, “o que é muito aliciante para os turistas”. “Recordo-me que,
num ano, Mitterrand estava na cidade e ficou espantado com o S. João. Os
seguranças ficaram atormentados por causa da confusão, mas ele andou na rua a
ver a festa”, contou o historiador do Porto.
S. JOÃO E OS TRIPEIROS
A História de um Feriado
(Texto original, publicado na Revista Ponto de Encontro de Julho de
2001 )
A
história é curiosa e mostra o protagonismo que, já na altura, a Comunicação
Social tinha. Estávamos em Janeiro de 1911 e a República Portuguesa dava os
primeiros passos. A monarquia tinha sido destronada apenas três meses antes,
com a revolução de 5 de Outubro de 1910. O Governo Provisório da República
assumia a governação do país e, desde logo, começava a introduzir mudanças na
sociedade portuguesa que espelhavam, muito naturalmente, os ideais da nova
ordem republicana. Numa tentativa de implementar a nova ordem junto da
população, o Governo Provisório redefiniu os dias feriados em Portugal. Por
decreto, a República instituiu como feriados nacionais o 5 de Outubro
(instauração da República) e o 1º de Dezembro (restauração da independência em
1640), para além do Natal e do Ano Novo. Mas o mesmo decreto impunha, a cada
município do país, a escolha de um dia feriado próprio:
E foi
com este propósito que a Comissão Administrativa do Município do Porto reuniu a
19 de Janeiro de 1911. Logo foi sugerido a data de 24 de Junho para feriado
municipal. O facto não causa espanto. Afinal de contas, o S. João era, já na
altura, uma festa com longa tradição na cidade do Porto. A primeira alusão
aos festejos populares data já do século XIV, pela mão do famoso cronista do reino,
Fernão Lopes. Em 1851, os jornais relatavam a presença de cerca de 25 mil
pessoas nos festejos sanjoaninos entre os Clérigos e a Rua de Santo António.
Referendo popular
Contudo,
a sugestão de eleger o S. João como feriado municipal da Invicta foi contestada
por outros membros da Comissão Administrativa do Município do Porto, que
mostraram opiniões diversas. Foi então que foi lembrado e inspirado no alto
princípio democrático, que não devia a Comissão deliberar nada sem que o povo
do Porto, por qualquer forma, se pronunciasse em tal assunto. Para solucionar o
imbróglio, o Jornal de Notícias dispôs-se a organizar um surpreendente
referendo popular para escolher o feriado municipal. Logo no dia 21 de Janeiro,
somente dois dias após a reunião da Comissão Administrativa, foi colocado na
primeira página do jornal o anúncio da "Consulta ao Povo do Porto",
explicando toda a situação e a forma de participação. As pessoas teriam que
enviar, até ao dia 2 de Fevereiro, "um bilhete-postal ou meia folha de papel
dentro de envelope" para a redacção do jornal, com a indicação do dia de
sua preferência. E, para recompensar o trabalho dos leitores, o Jornal de
Notícias oferecia "dez valiosos prémios" - o mais valioso era de 10
mil réis, cerca de cem escudos - a serem sorteados de entre todos aqueles que
votassem no dia eleito. Porto ser considerada "a capital do trabalho",
o 1º de Maio quase passava para a liderança da votação. Até que, a 4 de
Fevereiro de 1911, foram publicados os totais finais da consulta popular: o dia
24 de Junho foi o mais votado, com 6565 votos, seguido pelo 1º de Maio, com
3075 votos, o dia de Nossa Senhora da Conceição, com 1975 votos, e o dia 9 de
Julho, com oito. "Ficou, pois, vencedor o dia de S. João que é aquele que
o povo do Porto escolhe para ser o de feriado municipal". Só não se sabe
se o vencedor do sorteio chegou a receber os seus 100 escudos…promessa
S. JOÃO E OS TRIPEIROS
COISAS DE S. JOÃO
A FOGUEIRA E O FOGO DE
ARTIFÍCIO
As fogueiras de S. João são ateadas
nas ruas, por grupos de moradores e amigos que, saltando por cima delas,
demonstram a sua coragem, e têm virtudes purificadoras, tendo em vista a saúde,
o casamento e a felicidade.
À meia-noite do dia 23 de Junho há
fogo de artifício, ou fogo de S. João, que é ainda uma das razões pelas quais o
povo sai à rua. É em direcção à Ribeira que o povo se dirige, juntando-se
milhares de pessoas em ambas as margens do rio Douro, para assistir ao maior
espectáculo do ano, pleno de luz e cor. Os ritos ligados ao sol eram já
celebrados pelos povos primitivos, que, através de magia imitativa, acendiam
fogueiras “fogo do céu”, pois acreditavam trazer para a noite a potência diurna
do sol, que, nesta altura do ano, começava já o seu percurso descendente,
factor que preocupava os povos que dependiam dos ciclos naturais. Relacionados
também com as manifestações ligadas ao fogo são os tradicionais balões de S.
João, feitos em papel e em cores variadas, que, na noite, são cuidadosamente
lançados em direcção ao céu, proporcionando um espectáculo ímpar de centenas de
pontos de luz.
A ÁGUA E AS ORVALHADAS
Além
de trazer consigo apologias ao culto e a rituais pagãos, a água tem particular
função nesta festa enquanto elemento da cena bíblica do Baptismo, protagonizada
por João e Jesus. Na sabedoria popular a água dorme todas as noites, excepto na
noite de S. João. Na noite e madrugada de S. João, a água das orvalhadas é
benta e tem o poder de curar doenças e dar beleza aos jovens e favorecer
amores, entre outros benefícios. Em tempos, houve mesmo na Alameda das
Fontainhas, uma fonte para onde o povo se deslocava na noite de 23 de Junho,
entre a meia-noite e o nascer do Sol, para beber a água ou lavar-se nela. As
orvalhadas são sentidas nesta noite de uma forma mais acentuada e já fazem
parte do ritual da própria festa. Presentemente, a noite de S. João termina na
Foz do Douro, com o povo a rumar em direcção ao mar até ao nascer do dia.
O ALHO-PORRO E O MANJERICO
As ervas aromáticas, próprias desta
altura do ano, assumem nesta festa particular importância, tanto pelos
benefícios que se julga trazerem à saúde, como pelas manifestações que o povo
lhes atribuiu, tornando-as um símbolo do S. João. Também chamadas “ervas de S.
João”, têm virtudes mágicas e terapêuticas, como resquícios de complexos
rituais de culto romanas e célticas. É o caso do alho-porro, ou “alho de S.
João”, que se tornou o símbolo por excelência das Festas de S. João do Porto, e
que é usado democraticamente na noite mais longa do ano para tocar e dar a
cheirar a quem por nós passa, em desejo de boa sorte e fortuna. Os manjericos
são o tipo de erva aromática mais popular nesta festa, habitualmente comprados
em qualquer rua da baixa da cidade, quer para decoração, quer para oferta. São
vendidos em vasos enfeitados com uma bandeirola, presa por um arame, com uma
quadra popular alusiva à Festa, ao Santo e às intenções mais lascivas do povo.
Devem ser “cheirados” com a mão.
O MARTELINHO DE S. JOÃO
Na baixa da cidade, nas bancas onde se
apregoa a venda dos tradicionais manjericos, cravos, erva-cidreira,
”alho-porro”, reparte-se agora o espaço com os modernos martelinhos, elementos
em plástico que produzem um som próprio desta Festa, embora a finalidade do seu
inventor, tenha sido uma forma de criar mais alegrar na queima das fitas na
cidade. Logo a ideia foi aproveitada pelo povo para as imprescindíveis, mas
amistosas “agressões” entre os foliões da noite de S. João. Criado com o propósito
de diversão é o instrumento vital da festa, produzindo sons animados que
contagiam desde o início do dia quem está na cidade, anunciando a diversão mais
tardia. Coloridos, de formas e tamanhos diferentes, são escolhidos conforme a
energia do folião. Servem para “bater” nas cabeças dos passantes, sem que essa
demonstração provoque qualquer incómodo, apenas riso.
A CASCATA
São cenários livres de representações,
com origem provável nos presépios de Natal, talvez pela perfeita simetria entre
as festas solsticiais. A água, elemento imprescindível das cascatas
sanjoaninas, que provavelmente terá dado origem ao seu nome, e a imagem de S.
João Baptista baptizando Jesus são os elementos centrais do conjunto, cujo
cuidado na sua construção nos mostra a particular devoção dos portuenses ao
Santo. Na composição das cascatas surgem verdadeiras aldeias com construções de
casas minúsculas e caminhos traçados de areia e musgos, que são a
reconstituição de lugares da cidade e costumes de outros tempos. As figuras de
barro pintadas de cores vivas, de nome mascates,
são verdadeiras obras de arte popular criadas pelos mascateiros, que
representam as pessoas no seu quotidiano, laborando nas suas profissões, muitas
delas já desaparecidas, e animais que nos dias de hoje já não se vêem nas
cidades. As cascatas, únicas em Portugal e no mundo, são muito coloridas,
algumas mesmo animadas através do movimento das peças e muito enfeitadas, quer
pelo colorido das luzes, quer pelas folhagens e verduras utilizadas, elementos
que, no seu conjunto, dão origem a várias interpretações e que personificam a
vivência desta festa pelo povo. Variam de tamanho e não obedecem a nenhum
modelo de concepção, surgindo consoante a imaginação de quem as ergue com
paixão em qualquer recanto, sejam grupos de pessoas que se organizam para
mostrar a sua criatividade, sejam crianças, que, com as suas modestas cascatas,
organizam um peditório para o Santo. Pela sua autenticidade são sujeitas a um
concurso anual, no qual é eleita a mais bela e tradicional, premiando desta
forma a persistência dos portuenses neste velho hábito. As mais conhecidas e
tradicionais e que ainda subsistem, são a da Alameda das Fontaínhas, local de
romaria e oração, e a cascata frente aos Paços do Concelho, de iniciativa da
Câmara Municipal, tributo à Festa da Cidade.
A GASTRONOMIA
Na noite da Festa ou no dia de S. João
come-se caldo verde com broa, carneiro, anho ou sardinha assada, salada de
pimentos e, para sobremesa, leite-creme. Na madrugada do dia 23 de Junho
bebe-se café com leite e come-se pão com manteiga. As origens desta tradição
são pouco precisas. Há quem diga que o uso do anho ou cabrito se deve à
presença deste animal nas imagens de S. João, numa alusão ao cordeiro de Deus,
e que a sardinha foi introduzida mais tarde por ser mais barata e muito
abundante nesta altura do ano. Como diz o ditado popular, “No S. João, pinga a
sardinha no pão”.
Recuperada a
tradição do bolo de S. João, cuja receita oficial leva farinha, fermento,
frutas cristalizadas, nozes, amêndoas, licor, rum, cognac a gosto e leite para
amassar, este torna-se uma iguaria se acompanhado pelo famoso néctar dos Deuses
– o Vinho do Porto.
S. JOÃO E OS TRIPEIROS
A ORIGEM DOS TRIPEIROS
A alcunha terá surgido quando as
generosas gentes do Porto ofereceram as carnes à Armada de Ceuta, em 1415,
ficando com as tripas...
Tripeiro. Ao natural ou residente do
Porto é aplicada, desde há séculos, a alcunha de “tripeiro”. Porquê? Porque
come tripas, obviamente. De resto, entre a rica gastronomia da urbe, emerge
como o seu prato mais emblemático e identitário as “tripas à moda do Porto”. A
receita tradicional impõe que as tripas, de vitela, sejam bem limpas, esfregando-as
com sal e limão, sendo depois cozidas em água e sal. Mas este é, apenas, o
início de um laborioso e apetitoso processo que, até à sua concepção final,
fará juntar às tripas (os “folhos” e os “favos”) um conjunto muito
significativo de outras carnes, nomeadamente mão de vitela, chouriça de carne,
orelheira, salpicão, toucinho entremeado e frango. O manjar é, também,
devidamente confeccionado com feijão de manteiga, cenouras e alguma cebola.
Salsa, sal, pimenta preta (moída na altura), louro e alguma banha garantem, mas
também exigem, que se deixe apurar bem este prato. Fundamental, porque também
se come com os olhos, é que seja servido numa bela terrina de barro, polvilhado
com cominhos e salsa picada. E, também incontornável, que seja acompanhado por
arroz branco seco.
É um prato delicioso. Mas, recorrendo
às “tripas”, é também uma receita rara e sui generis que tem despertado a
estranheza e a admiração de quem, vindo de fora da cidade, se depara com esta
iguaria. Ora, tão exótico e singular prato tem que ter uma explicação. Nem que
seja lendária. E é o que realmente acontece desde há muito tempo.
Com efeito as tripas à moda do Porto
possuem uma lenda e são, segundo essa narrativa tradicional, resultado do
profundo envolvimento do burgo na expedição militar comandada pelo rei D. João
I que, em 1415, conquistou a cidade norte-africana de Ceuta iniciando, assim, o
processo da expansão marítima e colonial que caracterizaria o nosso país
durante os séculos seguintes.
Lenda à parte, os acontecimentos históricos
são relativamente bem conhecidos: rodeado de grande segredo, em 1414 o monarca
decide organizar uma expedição a Ceuta com o objectivo de a conquistar.
Precisava para isso de um armada poderosa, tendo incumbido dois dos seus
filhos, os infantes D. Henrique e D. Pedro, para a organizar. D. Pedro deveria
preparar embarcações no Tejo, enquanto Henrique teria que fazer o mesmo nos
estaleiros do Douro. Há já 30 anos que o rei possuía uma relação muito
privilegiada com o Porto e sabia que poderia contar com o auxílio da cidade. Na
base desta relação encontrava-se, entre outros, o facto, não mais esquecido
pelo monarca, do apoio dos burgueses portuenses ter sido decisivo na sua
chegada ao trono durante a crise de 1383-85. Aliás, reconhecido por tal auxílio,
D. João I fizera questão de se casar no Porto com D. Filipa de Lencastre e de,
posteriormente, aqui lhe nascer um dos seus filhos: Henrique, o mesmo que agora
enviava, em missão secreta, a este burgo.
Não obstante desconhecerem qual o
objectivo final da tarefa que o trazia ao Porto, e que durante o ano seguinte
ocuparia uma boa parte da actividade da cidade, a chegada à urbe do jovem
infante, então com cerca de vinte anos, foi muito festejada por toda a
população, das classes mais modestas e populares - a “arraia miúda” – aos mais
influentes mercadores e poderosos burgueses. Além de ser filho do rei D. João,
o facto de Henrique ser, também, natural do Porto, certamente contribuiu muito
para esta forte empatia com as gentes da cidade. O Infante, nas palavras de
Zurara na sua “Crónica da Tomada de Ceuta”, «era mui amado delles todos e o
tinham casi por seu cidadaão».
Embora ignorasse qual o destino final
do numeroso número de embarcações que ia construindo nos estaleiros de Miragaia
e do Ouro, todo o Porto se entregou de um modo muito significativo ao projecto.
Além dos estaleiros junto ao Douro, também se envolveram nos trabalhos os
cordoeiros do Campo do Olival (mais tarde conhecido por Cordoaria)
manufacturando as cordas e cordoame necessários aos barcos, bem assim como os
ferreiros da Ferraria de Baixo, junto a Miragaia, produzindo os apetrechos
necessários às galés, naus, barcas e fustes que iam tomando forma nos
estaleiros. Outros confeccionavam os velames e, já nas periferias da cidade
medieval, em terras da Maia, Gaia e Bouças (Matosinhos), outros havia que
preparavam as provisões para uma numerosa frota que o Infante deu por concluída
nos inícios de Junho de 1415.
A armada zarpou da cidade no dia 10 desse mesmo mês e, à
partida, era composta por mais de setenta navios «afora outra muita fustalha».
Poucos dias decorridos deu-se a junção com a frota organizada no Tejo pelo seu
irmão e, revelado entretanto o objectivo da missão ao numeroso grupo de homens
embarcados (vários milhares, entre os quais muitos portuenses) cerca de um mês
depois consumava-se, com assinalável êxito, o assalto da cidade mourisca.
Mas, o que é que tudo isto tem a ver
com as tripas? É aqui que entra a lenda. Segundo a tradição, o Porto, além de
todo o trabalho na construção dos navios, forneceu também tudo o que tinha para
os mantimentos da frota. Nomeadamente carne. Todas as viandas que possuía
haviam sido limpas, salgadas e devidamente acamadas nas embarcações. A cidade,
sacrificada, ficara apenas com as miudezas, nomeadamente as “tripas”, e foi com
elas que teve que inventar alternativas alimentares. Surgia, assim, o prato das
“tripas à moda do Porto” que acabaria por se perpetuar até aos nossos dias e
tornar-se, ele próprio, num dos elementos mais característicos da cidade. De tal
forma que, com ele, nascia também a alcunha de “tripeiro” para os habitantes do
Porto.
Trata-se, obviamente, de uma lenda. Mas
tão profundamente enraizada na Memória Colectiva da cidade que, para muitos, se
trata de uma verdade inquestionável. O próprio monumento em bronze que o Porto
erigiu, em 1960, em memória da frota do Infante D. Henrique é disso mesmo
sintomático. Implantado junto aos antigos estaleiros do Ouro, no Largo António
Cálem, esta escultura da autoria de Lagoa Henriques, que evoca a cidade “que
lhe deu (à frota) navios, provisões e nela embarcou”, não deixa de representar,
entre duas figuras humanas, uma peça de carne esventrada, lembrando que por
aqui só restaram as tripas.
Trata-se de uma lenda. Evidentemente.
As origens deste prato, tão complexo, são seguramente bem anteriores e
implicaram um longo contexto cultural de aceitação e de prática culinária que
não podemos restringir a um único e episódico acontecimento, a um verdadeiro
epifenómeno, como foi o eventual esgotamento e desaparecimento de carne na
cidade durante o curto espaço de tempo que coincidiu com os preparativos da
armada de Ceuta e os meses que se lhe seguiram.
Trata-se de uma lenda. Mas, como todas,
tem também o seu fundo de verdade. Ou, pelo menos, pode fornecer algumas pistas
credíveis que importa valorizar. Neste caso o indiscutível empenhamento e
sacrifício que a cidade fez para corresponder ao pedido de apoio de D. João I e
do Infante D. Henrique nos preparativos do que viria a ser a arrancada da
expansão marítima portuguesa.
Mas, qual será, afinal, a origem das
“tripas à moda do Porto”?
É provável que tenhamos que recuar
muito mais no tempo para descortinar a génese deste prato. Até ao século I a.
C. E é possível que tenhamos que nos deslocar até à Suábia, uma região entre o
Reno e o Danúbio, no sul da actual Alemanha, numa zona de contacto com a
República Checa. Por essa época aí se localizavam tribos de um povo bárbaro
designado por suevos, motivo pelo qual esta região é também apelidada por
Suévia. Este povo confeccionava na sua dieta alimentar tripas (nomeadamente do
estômago) das ****s. E, ainda hoje, tal como no Porto, tais pratos fazem parte
da gastronomia tradicional da região (são as drzky, em checo). Ora, como se
sabe, após a queda do Império Romano, os suevos atravessaram a Europa, passaram
pela França (onde o “cassoulet” de Carcassonne, apesar de não ter tripas, é
muito parecido em tudo o resto às “tripas do Porto”), cruzaram demoradamente o
norte da Península Ibérica (onde ainda hoje são famosos os “callos asturianos”,
confeccionados com as tripas do estômago de vitela e feijão, muito semelhantes
ao prato portuense) e acabaram por se fixar no noroeste da Península, onde
estabeleceram um reino, sendo o Porto uma das suas principais cidades, chegando
mesmo a ser a capital.
Desta forma as “tripas à moda do Porto”
poderão remontar ao século VI e à época suévica. Ou será esta, na falta de
estudos histórico-gastronómicos mais aprofundados, uma tese condenada a ser
transformada, ainda que com uma faceta erudita e urbana, numa nova lenda?
Os portistas fazem questão de frisar a influência muçulmana em
Lisboa e até hoje se referem aos benfiquistas como “mouros”, em tom pejorativo.
Os benfiquistas, por sua vez, fazem referência à outra passagem da história de
Portugal, e chamam pejorativamente os portistas de “tripeiros”.
(Joel CLETO – Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros. O Tripeiro,
7ª série, vol. XXVII (7), Porto: Associação Comercial, 2008, p.210-211.)
terça-feira, 3 de novembro de 2020
CARTAS DE SETEMBRO
CARTA AO MEU
BISNETO
O Meu
cenourinha
Ermesinde
Setembro de 2010
Meu querido bisneto
Fábio
Nesta
altura que te escrevo, ainda só tens dois anos e meio. A tua mãe deixa-te cá em
casa de segunda a sexta e eu e a tua bisavó, tomamos conta de ti. Logo pela
manhãzinha quando chegas, metes-te na cama junto da avó a beber o teu biberão
de leite e queres sempre ver o “Ruca” na televisão. Eu brinco muitas vezes contigo,
faço-te aviões de papel e desenhos para colorires. Tenho numa parede da sala a escala do teu crescimento com as datas da tua altura. Brincas muito na marquise
com a tua garagem cheia carros e vens sempre ter comigo, para te colocar uma
rampa que sai facilmente. Sabes de cor muitas das músicas da publicidade da
televisão, desde o “Pingo doce”ao “Preço Certo”. Andas sempre a dançar, a tua
bisavó até te chama «cú-de-rôla» pela maneira com que te maneias. Adoras tudo
que seja instrumentos de música. És tão engraçado… És um menino lindo, com teus
olhos azuis e o teu cabelo dourado, mesmo tirando algumas perrices (que ás
vezes fazes), és muito meigo e quando à noite vais embora com a tua mãe, dizes
sempre: «Chau buxinho!». Nós adorámos-te e quando não vens, a casa parece
vazia.
Na
altura que leres esta carta, já não devo cá estar, mas tenho esperança que vais
ter um futuro melhor que o nosso, melhores que dos teus avós ou mesmo os teus
tios. Sabes, é que eu nunca consegui incutir nos meus filhos e muito menos nos
meus netos, o gosto por ler, estudar e ser alguém na vida. Apesar das coisas
hoje serem mais fáceis que no meu tempo, é mais difícil noutros aspectos, não
há trabalho, fecham muitas fábricas que mandam para o desemprego milhares de
pessoas. As falências são a ordem do dia, com a crise monetária e a
globalização (é curioso, como esta palavra era tão nova para mim… Hoje deve ser
normal, infelizmente…).
Cheguei
à idade que tenho hoje (62), um pouco frustrado com muitas coisas que pensei,
que seriam diferentes. Estou a falar de sonhos que tive ou de muitas coisas que
quis fazer e não fiz. Nunca tenhas medo de investir nos teus sonhos, luta por
eles e não passes a vida a adiá-los, o tempo passa tão depressa e depois… nunca
se tem tempo. Ás vezes são pequenas coisas, que por serem pequenas pensamos
que: «Qualquer dia penso nisso!». Nunca te esqueça que a felicidade é efémera,
ela é feita de pequenos momentos. Sabes, ás vezes até um cheiro a fruta madura
na fruteira da sala, nos pode trazer à lembrança bons momentos de infância. Ou
então, uma simples música pode-nos transportar para momentos vividos em felicidade. Por
exemplo: O teu trisavô e meu pai, adorava ouvir “Fascinação”, nunca soube
porquê, mas que lhe acendia um brilho nos olhos é verdade. Eu um dia de olhos
fechados, pensei tanto em Luanda, que senti o cheiro da terra molhada secando
com o sol, depois de uma chuvava. Pensar nas coisas e tetar concretizá-las.
Adivinho
que vais ser um menino feliz, és inteligente, vais estudar e ser alguém. Teus
pais adoram-te, a tua mãe foi a minha primeira neta e apesar de teres nacido
quando ela ainda era tão nova, em demonstrado muita maturidade e responsabilidade,
tal como teu pai, um rapaz trabalhador que tenho a certeza, tudo vai fazer para
que nada te falte. És o Sol da vida deles e da nossa, só espero que quando
leres esta carta, sintas que o teu bisavô que te amou muito, seja para ti um
exemplo na tua vida, com votos de muita felicidade.
Um
beijo grande Fabinho
CARTAS DE SETEMBRO
CARTA A CESÁRIO COSTA
Ao escritor que não conheço pessoalmente
Ermesinde, Setembro de 2006
Prezado amigo Cesário Costa
Talvez nunca vá ler esta carta,
primeiro porque não me conhece, depois, nem sabe que ela existe e por fim, é
que nunca lha enviei.
Sabe, tenho a mania da
discrição, gosto de passar na vida despercebido, é a minha maneira de ser e
como quase nada ganhei (não materialmente) mas emocionalmente, das poucas vezes
que me mostrei ao mundo, penso que não tem importância para ninguém aquilo que
penso, digo ou escrevo.
Tirando algumas letras de
minha autoria, que me dão uma enorme comoção quando as ouço cantar, mesmo
sentindo que quem as ouve pouco ou nada as entende, não porque não sejam
estendíveis, mas porque infelizmente se ouve muito mal o fado. Ou da dezena de
pseudo livros que me deram um enorme gozo escrever e que para infelicidade
minha nunca ninguém leu, nem aqueles para quem foram destinados. Primeiro
porque nem edições de autor sou capaz de fazer, depois, confesso, que a culpa
recai totalmente nesta minha mania de estar recolhido no meu canto longe do
mundo e de todos, no entanto, gosto sempre que fique (escrito pelo menos), o
meu modo de pensar em relação ás coisas que para muitos pode não ter interesse,
mas que é a maneira (a minha maneira), de pensar que talvez um dia alguém me
leia e me dê algum valor quando muito, póstumo! As razões desta minha mania,
não interessam para aqui, nem vou ocupa-lo com as minhas lamúrias.
A minha carta vem a
propósito do seu livro “Memórias da memória”, que me foi oferecido pelo
Leopoldino Serrão e como tem o prefácio de Hélder Pacheco, faz com que junte
dois dos nossos amigos comuns no mesmo gesto literário.
Ler é uma das coisas
melhores da vida, mas escrever, além do seu lado intimista é uma atitude
solitária mas muito reconfortante.
Quando escrevi as minhas
me,órias de infância no meu: “Enquanto me Lembro...”, rebusquei nas minhas
lembranças e vivências dum tempo de carência (o nosso tempo), com a esperança
que algum dos meus netos um dia as saboreie e o possa ajudar a superar alguma
vicissitude que a vida lhe traga, com o meu exemplo de muita perseverança e
vontade de viver, embora confesse, um pouco desiludido...
Li o seu livro com muito
agrado, envolvido nas suas palavras, levado pelas atitudes em relação à vida,
passeando pelos mesmos lugares onde andou. Quando o conteúdo dum livro nos
tocam assim tão de perto, devoramos as páginas e revemos todos os momentos como
se fossem nossos, o livro que nos retracta a vivência de alguém tão coincidente
com a nossa, passa a ser a nossa vivência, tantos são os pontos convergentes.
Se não repare:
Apenas o Douro e três anos de diferença nos
separa à nascença, o Cesário em Gaia e eu no Porto. Trabalhamos os dois desde
muito novos e como meu pai fazia caixas de jóias, também passei aos 11 anos
pela contrastaria, com as peças de prata que meu pai aplicava.
O edifício em mármore do Banco Pinto de
Magalhães na esquina de Sampaio Bruno, onde o Cesário ia comprar a prata, foi
feita em maqueta de madeira por meu pai, para que na confeitaria “Cunha” a
cobrirem de açúcar, para o dia da sua inauguração. Fui lá muitas vezes depois,
quando meu pai me mandava com o postal duma letra para pagar, pedir para que
adiassem a data de liquidação ou fazer uma reforma a 90 dias.
O Cesário em menino corria pelo “Campo”
e passava na Lapa quando fazia entregas na ourivesaria de Antero Quental. Nasci
nesse bairro, nele passei a minha infância (deve ter passado por mim sem me
ver). Muitos anos depois, até a sua Ana Sara nasceu lá na Ordem da Lapa!
Conheci a minha Olga num baile de
garagem, tal como conheceu a sua Maria de Lurdes, ao som das canções tocadas
num gira-discos de vinil, ouvindo o Cliff Richard, a Silvie Vartin, o Roberto
Carlos e tantos outros de quem na época éramos fãs. Casei a 18 de Março de 1967
e o meu amigo, casou exactamente no dia em que no cais de Alcântara, eu
embarcava no Vera Cruz para Angola a 25 de Julho de 1970. Não tenho a certeza,
mas era sábado?
O Cesário tem três filhos: O Francisco,
a Ana e o Jorge. Eu tenho o Gualter, a Helena e a Modesta. Já eram nascidos
quando fui para Angola como Operador de Informações de Artilharia. O amigo já
lá tinha estado como Operador Cripto num batalhão de artilharia. Passamos ambos
pelo Grafanil, o Cesário deu 26 meses de guerra e eu 28 com quatro de “lepra”.
Fez a recruta no GACA 3 em Espinho, eu passei a pronto nesse aquartelamento e
de lá fui mobilizado para a guerra do ultramar.
Em 1958, estive com minha avó na praça
de Carlos Alberto a ver o “General sem medo”, quando íamos a caminho da padaria
Porto no largo Moinho de Vento, enquanto o meu amigo passava junto ao mar de
gente em S. Bento.
Na nossa meninice, lemos os mesmos
livros de quadradinhos como o “Condor” ou o “Cavaleiro Andante” e mais tarde os
mesmos autores como Alves Redol ou Camilo.
Passamos pelos mesmos cinemas do Porto
e gostamos dos mesmos filmes, até gosta do “Clube dos Poetas Mortos”, que faz
parte dos “meus” 10 melhores filmes do mundo.
Passamos pelos mesmos cafés e ambos
gostávamos de ler o “Diário de Lisboa” o meu amigo no Palladium (eu não passava
sem as suas palavras cruzadas) mas, no Café Luar na Areosa.
Tivemos as nossas tertúlias e até ao
“Mariani” fui tantas vezes, nas minhas andanças em busca pelas melhores
“Francesinhas”.
Mesmo o teatro é coincidente em nossas
vidas, fizemos ambos Revista, o meu amigo em Gaia e eu no “Flor de Pedrouços”.
Com tantas coisas em comum, nem o meu
irmão teve uma vivência tão parecida comigo. Talvez sejamos irmãos de leitura,
de sensibilidade em relação ao que nos rodeia, daquilo que gostamos de escrever
e deixar aos nossos filhos.
Felicidades ao Francisco, à Ana e ao
Jorge.
Seja portador de um beijo à Maria de
Lurdes e receba deste seu irmão das palavras, um forte abraço e muitos anos de
vida com saúde.
Sempre ao dispor
Manuel Carvalho
CARTAS DE SETEMBRO
CARTA AO HELDER PACHECO
À Memória de meu pai
Ermesinde, Setembro de 2007
Amigo Hélder Pacheco
Aqui vai como me pediu, de uma forma sintetizada, o que foi a vida de um
homem que fundou uma das maiores fábricas de brinquedos que existiu na cidade do
Porto. Tinha muito orgulho no meu pai, pois apesar de ser deficiente motor
construiu uma empresa, deu trabalho a muita gente, foi a primeira pessoa na
cidade a adquirir automóvel adaptado ás suas dificuldades. Nunca se resignou à
sua condição, e fez ver aos que podem que na vida tudo é possível com trabalho
e perseverança.
Fico á espera que o meu amigo dê a conhecer ao mundo, no livro que pensa
escreve sobre os grandes industriais da cidade do Porto. Resta esta pequena (grande)
história feita por alguém que sempre acreditou num sonho.
Tudo começou nas décadas de 30/40 com as
construções do “Mosquito”. O suplemento desta revista aos quadradinhos, trazia
para construir aviões, barcos, casas, etc. Tratavam-se de folhas que se colavam
em cartão, recortavam-se pelo tracejado, dobravam-se pelas patilhas e
colavam-se as peças até construir o modelo pretendido. Mas nem todos os
possuidores da revista tinham a habilidade necessária para a execução dessas
pequenas obras de arte. Foi assim que o meu pai, na mesa da sala da pequenina
casa onde vivíamos na Rua da Glória, nº 47 (que ainda existe), ia construindo
os modelos para todos os rapazes lá da rua a troco de uma moedas. Tinha também,
o tal jeito para desenho que era muito apreciado nesse tempo, na litografia, na
estamparia de tecidos, na publicidade, etc. que hoje não se dá muito valor com
o aparecimento das novas tecnologias, com programas próprios em computadores
que põem a desenhar qualquer um.
Meu pai em 1943 com 20 anos e com a poliomielite desde os 2,
locomovia-se com duas muletas e trabalhava como empregado de escritório numa
pequena marcenaria na Rua Mártires da Liberdade. Nessa casa foi fazia outros
serviços, como envernizar (à boneca), caixas de jóias, que depois forrava o
interior com cetim ou veludo e que eram no final decoradas com aplicações em prata. Este trabalho
manual para que tinha muito jeito, deu-lhe a experiência para começar (quando a
oficina de marcenaria fechou), em casa a fazer casinhas para as cascatas,
presépios para o Natal, caixas para as amêndoas na Páscoa, assim como caixas de
costura e de jóias, etc. Tudo isto era feito manualmente com uma serrinha
manual e as peças de madeira presas num pequeno torno apertado na mesa da sala.
Em 1947, meu pai casou com minha mãe e eu vim a nascer em Setembro de
1948 e meu irmão em Fevereiro de 1950. Quis o destino, que em Agosto desse ano,
minha mãe falecesse apenas com vinte anos. Foi então que minha avó paterna se
desdobrou para nos criar, ajudando meu pai que por essa altura, sonhava em
estabelecer-se com uma oficina pequena, mas que desse para sustentar a família,
pois só minha avó tinha algum rendimento do seu trabalho como padeira na
“Padaria Porto” no Largo Moinho de Vento.
Para desenvolver mais o seu trabalho, meu pai encontrou uma pequena
máquina de serrar de tico-tico na Casa Escol em Sá da Bandeira. Esta firma
alemã que ainda hoje existe, embora virada para outra vertente no caso actual,
artigos para combate a fogos etc., tinha ao tempo um gerente, o Sr. Brucher, um
alemão que acreditou no meu pai e lhe entregou a máquina depois ouvir toda a
história e vendo naquele homem de muletas um vontade enorme de vencer na vida
com o seu trabalho, dizendo: — Leve a máquina e paga-me quando puder. Isto
passa-se em 1952, quando meu pai alugou a casa 4 do bairro “Angelina”, também
na rua da Glória, nº 52, adaptou-a ás suas necessidades, trouxe a tal máquina
que seria a primeira de muitas e inaugurou a sua oficina em Novembro desse ano,
com a presença de diversos amigos como: Alfredo Borges que mais tarde abriria
uma das mais conceituadas litografias do Porto a “Inova”; Fernando Batista que
foi gerente da casa de bicicletas do Porto a “Altis”. Um dos amigos que mais o
ajudou foi o Manuel Ferreira Marques, dono da grande fábrica de ourivesaria
“Topázio” no Porto e antigo condiscípulo do Colégio Brotero na Foz do Douro,
onde meu pai estudou, aquando da sua estada até aos 16 anos no Refugio da
Paralisia Infantil na rua Bela também na Foz, de onde saiu a andar de muletas.
Começou nesse ano a confeccionar presépios para a quadra de Natal que se
avizinhava. Com dinheiro emprestado, no
começo de 1953 já com a ajuda de uma rapariguita como empregada, começou a
trabalhar para as diversas quadras festivas do ano. Assim, logo para o
Carnaval, fabricava as chamadas “línguas da sogra”, aquelas boquilhas com
“gaita” que ao serem sopradas desenrolavam até ao rosto da pessoa próxima, para
voltarem à posição inicial. Além destas, haviam “Relas” que ao girar fazia
barulho. Chapéu de fantasia, etc. Para a Páscoa, fabricava as caixas de
amêndoas algumas com música e outras com patinhos para levar os ovos pintados,
etc. Para as cascatas de S. João as tais casinhas, pontes, coretos, castelos,
igrejas, etc. Para as praias, fabricava e vendia aos fabricantes de baldes para
criança em chapa (folha flandres, igual a chapa usada nas conservas e que
muitos brinquedos se produziram no após guerra nas oficinas de Ermesinde), as
pás e os ancinhos em
madeira. Mas logo começava a fabricar para stock, os
presépios para o Natal, para isso, comprava em Gaia (aos fabricantes de capas
em palha para as garrafas), a palha com que cobria os telhados dos presépios,
aproveitando as espigas secas do centeio, para fazer os berços do menino Jesus.
Estes artigos eram vendidos em muitas casas do Porto como Bazar dos Três
Vinténs em Cedofeita, a Casa Ametista na Praça dos Poveiros, nas casas de
artigos religiosos nas ruas de Mouzinho da Silveira e das Flores, assim como os
artigos para cascatas nas casas onde vendiam os bonecos de barro na rua da
Assunção.
Nesta época, a madeira para trabalhar era obtida dos caixotes de sabão
da Cuf que meu pai reutilizava. O cartão mais tarde era comprado aos maços,
porque a principio, até os maços de cigarros provisórios virados ao contrário,
que serviam para as casinhas das cascatas. Assim como os telhados, eram feitos
com o cartão canelado das embalagens.
Em 1954, uma vizinha que muito ajudava a minha avó a nos criar, eu com 6
anos e meu irmão com 4, começou a interessar-se por meu pai, ajudando-o mesmo
no trabalho pois depressa se tornou numa artesã. Esta Senhora de nome Gracinda,
que veio a casar com meu pai no ano de 1956, veio a dar o nome “Cindita,
Fábrica de Brinquedos e Utilidades em Madeira”, que até era só “Manuel Monteiro
de Carvalho Fabricante de Brinquedos”. Foram viver num rés-do-chão da mesma rua
da Glória, nº 63, que fazia traseiras com a oficina já existente. Como era
preciso um lugar tipo armazém, para guardar os artigos fabricados e como se
dera de vago a casa 3 do mesmo bairro, meu pai alugou-a abrindo uma porta
interior. Mais tarde fez o mesmo com a casa 2 e a casa 1, ficando um correr de
casas desse bairro, a serem uma fabriqueta de brinquedos, já com 6 empregados.
Estávamos então em 1960, minha avó faleceu nesse ano com 72 de idade.
Entretanto o progresso era visível e meu pai queria dar outro salto, mas só em
1963 novas instalações foram possíveis.
Na altura, só o J. Cândido da Silva na Rua Monte da Estação em Campanhã,
o A. Lopes Coelho de Sousa na Travessa do Campo 24 de Agosto e a “Majora” (que
mais tarde se ramificou na “Karto”) com seus jogos, eram os únicos além de nós,
que fabricavam brinquedos na cidade. Como as exigências eram cada vez maiores,
foi necessário mudar de instalações e a nova fábrica surgiu na Rua Dr. Júlio de
Matos mesmo defronte à antiga fábrica de tecidos “Raione”. Havia uma secção de
montagem, outra de pintura. Nas traseiras um parque de máquinas para trabalhar
madeira aceitável para as necessidades do momento. Tínhamos a residência por
cima da fábrica. Aumentaram os postos de trabalho e chegamos em 1974 a ter 12 empregados na
produção, além de vendedor e escritório.
Vendíamos para bazares de todo o país, mas principalmente para grandes
armazenistas como o A. Lopes Coelho de Sousa no Porto (que entretanto se
tornara armazenista e importador de brinquedos) e em Lisboa o armazenista A.
Fresco, que exportava os nossos artigos em grande escala para as províncias
ultramarinas. Com a chegada da revolução de Abril, este mercado desapareceu num
ápice, deixando-nos completamente desprevenidos e com mercadorias abandonadas
na alfandega que nunca mais recebemos o seu valor. Depois começaram as justas
reivindicações por parte dos operários, com aumentos de ordenados, subsídios de
férias e de Natal, coisas que até então não havia. Conseguimos aguentar com
muito custo, pois tínhamos entretanto, adquirido uma carrinha para transporte
de mercadoria, uma vez que o então ”Costa Ramos”, nos levava grande parte dos
lucros em transportes.
Em 1975, com o mercado de brinquedos em crise, avançamos com uma linha
de montagem de Armários de quarto de banho, onde chegamos a atingir uma
produção de 600 por mês. Todos os armazenistas de Paços Brandão, Cortegaça e
arredores, compraram-nos muito, pois a nova legislação, proibia os armários em
chapa esmaltada, devido à corrente eléctrica nas casas de banho.
Em meados de 1977 e com o EAPMEI a atribuir financiamentos às pequenas e
médias empresas, fizemos uma proposta para o desenvolvimento da nossa fábrica,
uma vez que tivemos conhecimento que ia ser feito um empréstimo a fundos
perdidos de 50.000 contos, para uma nova fábrica de brinquedos “A BRINCÁFRICA”
no Parque de Celeiros em
Braga. Depois de muita burocracia, a resposta foi: Que não
viam viabilidade no nosso projecto e preferiam atribuir a verba a uma fábrica
de raiz, sem se importarem com a experiência de tantos anos neste sector
industrial, em detrimento de outra sem qualquer experiência.
Foi quando no começo de 1978, um grande armazenista de Lisboa, o “J.
Sousa Guimarães”, que tinha agregado a si a empresa “Dinamização” que já no
Natal de 1977 tinha lançado uma campanha publicitária na TV para o lançamento
do celebre “Jogo da Assembleia”, (com os partidos no semicírculo),
contactou-nos para nos fazerem uma proposta tentadora. Comprarem-nos toda a
produção mensal, com modelos de brinquedos impostos por eles. Numa altura de
crise, com a promessa de todos os meses ter-mos o necessário para os nossos
compromissos, sem preocupações em vender… Aceitamos a proposta e entregamos
toda a nossa carteira de clientes, depois de assinado o contrato da compra
mensal de toda a nossa produção. No começo foi bom, quanto mais fazíamos
melhor, só que tivemos que adaptar novos moldes, formas de fabrico diferentes
para madeiras ao natural, exigências na troca da madeira de pinho por plátano,
amieiro e outras. Adquirimos então uma nova carrinha Mercedes para transportar
semanalmente os artigos para Lisboa.
Vieram depois as exigências legislativas
sobre segurança dos brinquedos para as crianças, coisas que até então ninguém
se tinha preocupado. Claro que eram razões mais que justas: Nada de arestas,
objectos cortantes ou de tamanhos fáceis de engolir. Tudo leis importantes que
tão rapidamente aderimos, mas que nos obrigaram a fazer novos ajustes no modo
de fabricação.
Surgiu então a ideia de visitar a maior Feira de Brinquedos do mundo em
Nuremberga na Alemanha, com a intenção de conhecer novos modelos e formas de
fabrico. A viagem foi paga pelo nosso cliente e durante uma quinzena
documentamo-nos e adquirimos todos os conhecimentos possíveis para implementar
a “Cindita”.
Novas técnicas foram introduzidas, como a serigrafia com estampagem mecânica,
pintura à pistola com cortina de água, etc. Aumentamos a produção com novos
modelos de Matraquilhos, Quadros escolares, Cavalo de Baloiço, Jogos de Xadrez,
etc. Entramos depois no campo do brinquedo didáctico, construído sempre com o
intuito da criança aprender brincando, com uma apresentação apelativa de cores
vivas.
As coisas correram bem até ao ano de 1979, quando a firma nosso cliente
em Lisboa começou a dar sinais de que qualquer coisa não corria bem. Atrasando
os pagamentos e deixando de cumprir o acordado. Até que em 1980 abriu falência
arrastando-nos para o abismo. Ainda aguentamos a crise que se generalizara a
todos os sectores da fábrica. Os clientes antigos tinham agora outros
fornecedores, tentamos dar a volta mas fomos impotentes. O pessoal foi
abandonando o trabalho com justa causa, quando a falta de pagamento acontecia.
Corremos mais uma vez ao IAPMEI mas de nada valeu a crise estava instalada. Até
que em 16 de Dezembro de 1981
a “Cindita” entrou em falência técnica e foi o fim.
Fundada em 1952, a
firma durou quase 30 anos. Meu pai tudo vendeu para cumprir compromissos. Deu
entrada com minha mãe Gracinda no Lar do Comércio. Ela não aguentou o desaire e
faleceu em 1986. Meu pai veio a falecer a 15 de Setembro de 2002, não sem antes
ter tido uma pequena oficina no próprio Lar do Comércio, onde consertava
objectos de outros internos e colaborava com a construção do presépio e outras
actividades nos eventos que o Lar organizava. Como prémio destas tarefas,
chegou a visitar a Madeira a expensas do Lar. Ainda casou pela 3ª vez com a
telefonista da instituição.
Nunca parava, só parou quando o coração deixou de trabalhar, ao fim de
77 anos.
Um abraço amigo, até qualquer dia
Sempre ao dispor
Manuel Carvalho
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