terça-feira, 3 de novembro de 2020

CARTAS DE SETEMBRO


 



CARTA AO LUCIANO SOBRE LUANDA
 
Ao melhor amigo que encontrei na vida militar
 
 


 
 
Ermesinde, 11 de Novembro de 2007
 
 
          Amigo Luciano
 
 
 
     Faz hoje 35 anos que não nos vimos!            
    Nesse dia longínquo de Novembro de 1972, despedimo-nos à porta de armas do Quartel do RAAF em Queluz, já vestidos à civil e com o documento carimbado da nossa passagem à disponibilidade no bolso. Demos um abraço forte, trocamos endereços e desejamos um ao outro, felicidades com um até sempre! Estávamos com pressa, eu de apanhar o “Foguete” para o Porto, tu de apanhares o barco para o Barreiro.
    Nunca te escrevi, tu foste mais corajoso e passados alguns meses, mandaste-me dizer que casaste com a Rosa, enviaste-me até uma foto do vosso enlace. Quando em 1997, o nosso amigo Pinho me convidou para ir a Lisboa, a um encontro comemorativo dos 25 anos do nosso regresso do ultramar, aceitei, convencido que te encontrava. Apesar de rever muitos dos nossos amigos, aqueles que com nós passaram pelo mesmo limbo na vida, tu não apareceste por qualquer motivo e eu fiquei triste. Claro que abracei e relembrei momentos vividos, com o Franco, o Liberato, o Vicente e muitos outros mas... faltavas tu meu amigo, era contigo que eu gostava ter falado daqueles tempos, dos momentos que vivemos, dos livros que lemos, dos filmes que vimos, da poemas que escrevemos, da cidade de Luanda que palmilhamos rua a rua.
   Lembraste do Bowling em Alvalade, próximo à Igreja da Sagrada Família, enfrente ao Hospital Militar, ao lado daquela esplanada onde tantas vezes estivemos? E a Praça da Maianga onde apanhávamos o “Machimbombo” para a praia, ou Berliet para a Base. Ali era a baixa, onde haviam as montras da “Saratoga” e outras casas chiques. Onde havia o Museu de Luanda, o fotografo “Salvador” e o “Bitok” onde comíamos os Chocos com tinta. Onde jogávamos xadrez na “Biker” e bebíamos uns bons finos na esplanada da “Portugália”, acompanhados de um pires de dobrada, mesmo enfrente à elitista “Versalhes”. Logo por trás, havia o “Campino” que tinha umas moelas deliciosas em pratos de barro?
      E o Mercado da Maria da Fonte, onde por 50 escudos, comprávamos um quilo de camarão para comer na cantina da Base Aérea, acompanhados de uma grade de cerveja Nocal, Cuca, ou a Eka, “a loira tropical”. Aquele Praça onde tinha a estátua da Maria da Fonte e começava aquela grande avenida dos Combatentes. Passamos lá tantas vezes a caminho em busca de prazer nas meninas do B.O. (Bairro Operário). Depois parávamos na cervejaria “Apolo 11” para mais um fino e um pratinho de camarão que era oferta?
  Recordaste dos passeios que dávamos pela Baía, que ao pôr-do-sol era maravilhosa, com a sua avenida marginal, as palmeiras e as esplanadas?
   E da Ilha de Luanda quando íamos para a praia do “Tamariz” ou da “Barracuda”. E  naquelas noites de calor, quando íamos comer um caldo-verde no restaurante do “Ti Maria Conceição”? E a praia de Belas, com palmeiras pelo areal e o cheiro a peixe na seca, ou o cheirinho bom a banana assada nas fogueiras da praia? E a “Restinga” onde havia aquele buteco o “Tá-Mar” que quando havia mais dinheiro lá entravamos para um copo. Recordo-me de outros como: o “Acrópole”, o “Lorde”, o “Muxima”.
      Lembraste do futebol nos “Coqueiros” e do Hóquei em patins no “Ferroviário”? E os passeios pela Fortaleza, pela Sé, onde haviam aquelas ruas estreitinhas, onde descobrimos o bom bacalhau no “Floresta”? 
     Lembraste dos cinemas ao ar livre como o “Miramar” e outros, onde víamos um bom filme acompanhados de uma CUCA? E o “Restauração” onde vimos o Percy Sleid, a Elisabete, o Nelson Ned e outros cantores. O Teatro “Avenida” onde nos deliciamos com tantas peças de bom teatro, como “A Ratoeira” da Aghata Cristie que desenhei o logótipo?
     Recordaste, quando um de nós recebia um envelope azul (Valor declarado) com dinheiro e logo íamos defronte à Base, ao Bairro Salazar, comer um bife com batatas fritas e um ovo a cavalo, com uma cerveja e só custava dezassete e quinhentos? E no dia seguinte íamos gastar ao “Casão” comprando volumes de cigarros? E a cantina onde fazíamos campeonatos de Dominó que o Seixas ganhava sempre? Nessa cantina que ao fim do mês para pagar o débito era um problema com os mil e duzentos escudos que ganhávamos de prémio de especialidade. Dos vinte e cinco tostões por um lugar no Cinema da Base ao ar livre, parecido com o de Grafanil, esse campo militar onde vivemos em tendas montadas na terra, durante quatro meses a comer cabeças de peixe frito nas cozinhas ao ar livre, com as moscas a zumbir e a chuva a cair. Onde enjoamos a compota de maçã no café da manhã, naquelas canecas de alumínio sem asa e com os dedos tapávamos os furos deixados pelos cravos?
     Sabes, ás vezes consigo fechar os olhos e sentir aquele cheiro de Luanda, ver a terra vermelha do Bairro do Prenda e os olhos cor de avelã da Mimi (a arrumadora no teatro). Consigo ainda ver aquela cor de pele linda que a Nandinha tinha (a empregada da pensão na Rua de Serpa Pinto, onde passamos com o Rodrigo e o Franco as férias). Ainda ouço as piadas do Franco, com aquele seu peculiar humor, ou o Vicente a distribuir o correio.
    Lembro todas estas coisa boas, as más? Não quero lembrar, tu também não decerto não queres!
     Perdoa amigo, esta carta já vai longa.
     Recebe um abraço do Carvalho com muitas saudades de Luanda.
 

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