CARTAS DE SETEMBRO
CARTA
À ESTUPIDEZ
Ermesinde
Setembro de 2020
Senhor
Confissionário
Sinto que já não tenho aquela alegria ou o
prazer, o contentamento de ouvir um aplauso, um elogio por uma letra escrita,
de ouvir um fado cantado com uma letra minha, enfim, aquela satisfação de saber
que alguém gosta, canta, grava o que eu escrevi. Hoje já não sinto isso, claro
que também não estou lá para ouvir, para sentir, mas noto um grande desencanto
de ter pensado ingenuamente que podia ombrear ao lado de outros letristas de
renome. Tudo isso, principalmente com a miséria que recebo da SPA, que chega a
ser ridículo, um autor receber dezoito euros de direitos num ano. Por tudo
isto, o desinteresse em escrever apagou-se, não vale a pena, estou cansado,
muito cansado.
A
vida já não tem grande interesse em ser vivida, apenas se vai sobrevivendo o
dia a dia com o pouco que se ganha, mas sem ilusões, sem sonhos, agora já não
há tempo e apesar do ditado “enquanto há vida há esperança”,hoje sei que nunca
terei o que gostava de ter, aquela sala só minha cheia de livros, filmes,
retratos e quadros. Um espólio de recordações que os vindouros
apreciassem.
Sei
que nunca irei onde gostava de ter ido à Grécia à Itália ao Egipto, conhecer as
civilizações de onde todos viemos, conheci através dos decomentários da tv. Não
tenho tempo de fazer o que gostava de deixar feito. Tudo tem sido uma
desilusão, desde a família, ao fado, desde os amigos ao modo com que sou
obrigado a viver. A esperança de dias melhores desfocou-se, não tenho nada com
que me orgulhe, não devo ter sido um bom pai, um bom marido, um bom amigo, falhei
com todos e principalmente comigo. Nunca publicarei um livro, nunca serei
reconhecido como autor e dias depois do meu fim, ninguém se lembrará de mim.
Confesso que não tenho medo de morrer, apenas tenho pavor ao sofrimento. Sei
que me calei tanta vez por covardia, quando podia ter falado e mostrado a minha
atitude em relação a muitas coisas que os outros não compreenderam. Tudo porque
quis viver em paz com os que me rodearam e não quis conduzir uma revolta que me
levava à desunião com os meus e ia sofrer por isso porque os amo a todos, à
minha maneira é verdade, mas amo.
Perdi
a capacidade de sonhar, rasguei mesmo a lista dos meus sonhos. Agora penso que
tudo tinha que ser assim e a vida deu-me o privilegio de conhecer pessoas
maravilhosas, algumas perdias como a minha avó, meu pai, assim como muitos amigos.
Até um dia, e se a reencarnação for verdade, quando voltar, vou ser diferente,
quero ter carro, ser sócio do FCP e nunca ocupar as estantes com livros, ser
bruto e ignorante e assim serei recordado por todos.
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