terça-feira, 3 de novembro de 2020

CARTAS DE SETEMBRO

 





CARTA AO SILÊNCIO
 
 
 


 
Ermesinde Setembro de 2019
 
 
Senhor Silêncio      
 
 
 
 
 
Ouvir o silêncio é fazer descansar o espírito. De quando em vez sabe tão bem! Ficar distraído, de olhar distante, vazio, sentir o corpo lentamente esvaziar até quase deixar de ouvir o respirar.... Depois, escolher um dos dois caminhos:
       Aquele em que imaginamos uma paisagem enevoada, em tons de cinzentos, cada vez mais ténues como brumas, e nos vai levando de montanha em montanha cada vez mais longe, voando ao sabor da brisa, mais e mais, até ao vazio total do pensamento (o mais difícil de atingir), porque há sempre algo que nos preocupa, que ocupa a nossa mente.
      Ou então aquele que nos leva a uma introversão, ou seja, uma concentração de espírito, um recolhimento íntimo da alma, a uma introspecção. Resumindo: Um exame ao nosso interior... Pensar em quem somos, para que somos, pensar em quem amamos, pensar nos nossos sonhos, nas nossas legítimas ambições. Enfim, meditar.
      Numa dessas ocasiões quase chorei, quando me senti tão abandonado, que tive tantas saudades de mim!.. Do tudo que fui, de tudo que fiz. E perguntei-me:Onde estão aquelas dezenas de amigos, que me acompanharam nos ralis, nos passeios, nos jantares, nos fados, nas horas bem passadas em francos convívios!? É grande a minha tristeza, por não ter sabido preservar essas amizades, (ou não seriam!).
      E aqueles que estavam a meu lado nas horas más que tive, na guerra, na traição, na falência, nos momentos infelizes!? Será que nem a esses eu soube ser grato?
      Depois, bem! depois vem sempre o cansaço, porque o silêncio também cansa. Então, para nos encontrar-mos, nada melhor que a nossa música preferida, muito baixinho nos auscultadores, até acordar lentamente o silêncio, e voltar-mos à triste (quase sempre) realidade  da nossa vida. Àquela por quem lutamos dia a dia, numa luta constante pela sobrevivência, tentando não ferir aqueles de quem gostamos, e principalmente tentando ser feliz, que é das coisas mais difíceis que existem. Embora por vezes, por tão pouco, a felicidade era tão simples: Se nos contentasse-mos com o que temos; Se nunca fizesse-mos aos outros, o que não queríamos que nos fizessem a nós; E principalmente, se fizesse-mos um pequeno esforço para compreender os outros!... A vida seria com toda a certeza bem melhor, e nós éramos mais felizes.
     Mas...Existem muitos momentos na vida que estamos sós, alguns mesmo irremediavelmente sós. E embora haja muitas formas de solidão, das piores que existe, é aquela em que nos sentimos sozinhos no meio da multidão. Quando gostamos  daquilo que os outros não gostam, ”Não devíamos de gostar, de quem não canta a mesma canção” ( Diz o Rui Veloso, nas palavras de Carlos Tê) nem fazem um esforço para gostar; Quando  temos sentido de humor, e tentamos contar uma anedota que ninguém a compreende; Quando ninguém gosta de ler Eça, Steinbeck, Jorge Amado ou Garcia Marques, e assim não podemos lê-los juntos; Quando ninguém gosta de Sinatra, Betânia, Strauss ou Beethoven, e não os podemos ouvir juntos; Quando ninguém gosta de Woody Allen, Clint Eastwood ou De Niro, e nunca podemos ver esses filmes juntos; Quando não gostam de ir ao teatro, ouvir poesia ou visitar um museu, e só vibram com um jogo de futebol, uma telenovela, um mexerico; e nunca com o mistério dum bom filme policial!... Com a beleza de Melanie Griffith ou o talento de Al Pacino. Por tudo isto, é que estamos sós no meio de tanta gente.
   Por tudo isso é que se faz poesia, por tudo isto é que sofremos com o que escrevemos, tentando pôr no papel, esta amálgama de sentimentos que nos rói a alma, este sentir que sentimos tanto. E é por isto tudo que vivemos a vida  com paixão, sensíveis a tudo, até ao amor que não nos dão; Ás traições que nos fazem; Até ás lutas que travamos e ficamos sempre prejudicados, só para que os outros não sofram, porque gostamos da vida e de todos; Dos filhos e do Sol; Da chuva e de pasteis de nata; Da Lua e dum cigarro; Do nevoeiro no Douro e dum café bem tirado; De tudo, tudo, até de quem de mim não gosta.
     Por isso temos necessidade de escrever, e escrever... É um acto solitário. Entre o monitor e o teclado, apenas o pensamento voa no espaço do silêncio, amontoando letras do alfabeto em palavras , frases em conceitos, textos em narrativas. Levados pela imaginação, vamos gerando no papel  sentimentos que transmitimos aos outros  nas mais variadas formas.
      Vestir a pele do criminoso da vitima e do detective num livro policial, conseguir caminhar ao lado da personagem que  criámos, dar-lhe vida, amá-la e matá-la, ser o dono do seu destino; Ir onde se quer em qualquer altura, viajar com quem se quiser a qualquer momento; Ser-se bom ou cruel; Rico ou pobre; Fazer-se tudo que nos der na ideia, até amor... com quem passamos a vida a sonhar. Descrever uma paixão, só o consegue quem esteve apaixonado. Descrever o acto de fazer amor é difícil se não se disser as palavras todas, como na pornografia tão difícil de escrever, que o digam Cassandra Rios, ou Dallas Mayo, pseudónimos de grandes escritores, de grandes novelas pornográficas conhecidas no mundo inteiro, perseguidos pela censura, falsos moralistas, beatas e mulheres frustradas.         
      O amor e a poesia, andaram sempre de braço dado, não gosto dos poemas que falem de morte ou desgraça. Todas as paixão que tive, foram fontes de inspiração para mim. É maravilhoso ouvir em público, cantar um poema nosso, e saber que ninguém sabe a quem se referem aquelas palavras, só eu sei mais ninguém. Algumas quadras emendei-as, à última hora, num último instante, pois denunciavam indiscretamente a quem se destinavam, mas guardo na memória o original. Depois, as letras que faço e que cantam, contam uma situação, levam uma mensagem:

Se pudesse alguém pesar/O amor que a gente sente

Teu amor para meu pesar/Pesava mais porque mente.

E se mesmo assim depois/Negasses o resultado

Eu mentia pelos dois/Só para te ter a meu lado.
 
Ou assim: 

És alma gémea da minha/Gostas de tudo que eu gosto

Tu podias ser só minha/ Mas não és para meu desgosto.

 
Ou ainda assim quando partiste:


Nem adeus me disseste/ Um beijo apenas me deste/Tão leve que o ar levou

Com a pressa que partiste/Em maus olhos tu nem viste/A saudade que ficou.
 
Ou assim quando voltaste:


Tu voltaste finalmente/Agora sim sou feliz

Não há passado, o presente/Nasce quando tu sorris.
 
Ou assim este recado:


Nada nem ninguém pode entender/O que me vai na alma de momento

Só eu a conheço e ando a viver/Este amor inconstante como o vento.

Quando vier o frio me gelar/Os lábios da boca que a beijou

Em gavetas vai decerto encontrar/Poemas seus que o vento não levou.
 
Mas... e o medo?


Á Muito que o meu anseio/Era ter-te nos meus braços

Mas sempre havia pelo meio/Muitos medos, outros passos.

Até que um dia vieste/Como quem vem para se dar

E lembro até que trouxeste/Olhos tristes de chorar.

Beijei-te como quem tem/Um desejo acumulado

Amei-te como quem vem/Das galeras degredado.
 
No final, o nascer:


Tu vieste com a bruma/Junta á onda que desmaia

Em nuvens feitas de espuma/ Como rendas de cambraia.

Depois veio o Sol, cobriu/Teu corpo que bem me lembro

E um poema floriu/ Nessa manhã de Setembro.
 
Bonito, é quando se sente realmente o que se escreve.
Maravilhoso, é quando se consegue escrever o que se sente.

Sem comentários:

Enviar um comentário

ENQUANTO ME LEMBRO...