CARTAS DE SETEMBRO
CARTA A CESÁRIO COSTA
Ao escritor que não conheço pessoalmente
Ermesinde, Setembro de 2006
Prezado amigo Cesário Costa
Talvez nunca vá ler esta carta,
primeiro porque não me conhece, depois, nem sabe que ela existe e por fim, é
que nunca lha enviei.
Sabe, tenho a mania da
discrição, gosto de passar na vida despercebido, é a minha maneira de ser e
como quase nada ganhei (não materialmente) mas emocionalmente, das poucas vezes
que me mostrei ao mundo, penso que não tem importância para ninguém aquilo que
penso, digo ou escrevo.
Tirando algumas letras de
minha autoria, que me dão uma enorme comoção quando as ouço cantar, mesmo
sentindo que quem as ouve pouco ou nada as entende, não porque não sejam
estendíveis, mas porque infelizmente se ouve muito mal o fado. Ou da dezena de
pseudo livros que me deram um enorme gozo escrever e que para infelicidade
minha nunca ninguém leu, nem aqueles para quem foram destinados. Primeiro
porque nem edições de autor sou capaz de fazer, depois, confesso, que a culpa
recai totalmente nesta minha mania de estar recolhido no meu canto longe do
mundo e de todos, no entanto, gosto sempre que fique (escrito pelo menos), o
meu modo de pensar em relação ás coisas que para muitos pode não ter interesse,
mas que é a maneira (a minha maneira), de pensar que talvez um dia alguém me
leia e me dê algum valor quando muito, póstumo! As razões desta minha mania,
não interessam para aqui, nem vou ocupa-lo com as minhas lamúrias.
A minha carta vem a
propósito do seu livro “Memórias da memória”, que me foi oferecido pelo
Leopoldino Serrão e como tem o prefácio de Hélder Pacheco, faz com que junte
dois dos nossos amigos comuns no mesmo gesto literário.
Ler é uma das coisas
melhores da vida, mas escrever, além do seu lado intimista é uma atitude
solitária mas muito reconfortante.
Quando escrevi as minhas
me,órias de infância no meu: “Enquanto me Lembro...”, rebusquei nas minhas
lembranças e vivências dum tempo de carência (o nosso tempo), com a esperança
que algum dos meus netos um dia as saboreie e o possa ajudar a superar alguma
vicissitude que a vida lhe traga, com o meu exemplo de muita perseverança e
vontade de viver, embora confesse, um pouco desiludido...
Li o seu livro com muito
agrado, envolvido nas suas palavras, levado pelas atitudes em relação à vida,
passeando pelos mesmos lugares onde andou. Quando o conteúdo dum livro nos
tocam assim tão de perto, devoramos as páginas e revemos todos os momentos como
se fossem nossos, o livro que nos retracta a vivência de alguém tão coincidente
com a nossa, passa a ser a nossa vivência, tantos são os pontos convergentes.
Se não repare:
Apenas o Douro e três anos de diferença nos
separa à nascença, o Cesário em Gaia e eu no Porto. Trabalhamos os dois desde
muito novos e como meu pai fazia caixas de jóias, também passei aos 11 anos
pela contrastaria, com as peças de prata que meu pai aplicava.
O edifício em mármore do Banco Pinto de
Magalhães na esquina de Sampaio Bruno, onde o Cesário ia comprar a prata, foi
feita em maqueta de madeira por meu pai, para que na confeitaria “Cunha” a
cobrirem de açúcar, para o dia da sua inauguração. Fui lá muitas vezes depois,
quando meu pai me mandava com o postal duma letra para pagar, pedir para que
adiassem a data de liquidação ou fazer uma reforma a 90 dias.
O Cesário em menino corria pelo “Campo”
e passava na Lapa quando fazia entregas na ourivesaria de Antero Quental. Nasci
nesse bairro, nele passei a minha infância (deve ter passado por mim sem me
ver). Muitos anos depois, até a sua Ana Sara nasceu lá na Ordem da Lapa!
Conheci a minha Olga num baile de
garagem, tal como conheceu a sua Maria de Lurdes, ao som das canções tocadas
num gira-discos de vinil, ouvindo o Cliff Richard, a Silvie Vartin, o Roberto
Carlos e tantos outros de quem na época éramos fãs. Casei a 18 de Março de 1967
e o meu amigo, casou exactamente no dia em que no cais de Alcântara, eu
embarcava no Vera Cruz para Angola a 25 de Julho de 1970. Não tenho a certeza,
mas era sábado?
O Cesário tem três filhos: O Francisco,
a Ana e o Jorge. Eu tenho o Gualter, a Helena e a Modesta. Já eram nascidos
quando fui para Angola como Operador de Informações de Artilharia. O amigo já
lá tinha estado como Operador Cripto num batalhão de artilharia. Passamos ambos
pelo Grafanil, o Cesário deu 26 meses de guerra e eu 28 com quatro de “lepra”.
Fez a recruta no GACA 3 em Espinho, eu passei a pronto nesse aquartelamento e
de lá fui mobilizado para a guerra do ultramar.
Em 1958, estive com minha avó na praça
de Carlos Alberto a ver o “General sem medo”, quando íamos a caminho da padaria
Porto no largo Moinho de Vento, enquanto o meu amigo passava junto ao mar de
gente em S. Bento.
Na nossa meninice, lemos os mesmos
livros de quadradinhos como o “Condor” ou o “Cavaleiro Andante” e mais tarde os
mesmos autores como Alves Redol ou Camilo.
Passamos pelos mesmos cinemas do Porto
e gostamos dos mesmos filmes, até gosta do “Clube dos Poetas Mortos”, que faz
parte dos “meus” 10 melhores filmes do mundo.
Passamos pelos mesmos cafés e ambos
gostávamos de ler o “Diário de Lisboa” o meu amigo no Palladium (eu não passava
sem as suas palavras cruzadas) mas, no Café Luar na Areosa.
Tivemos as nossas tertúlias e até ao
“Mariani” fui tantas vezes, nas minhas andanças em busca pelas melhores
“Francesinhas”.
Mesmo o teatro é coincidente em nossas
vidas, fizemos ambos Revista, o meu amigo em Gaia e eu no “Flor de Pedrouços”.
Com tantas coisas em comum, nem o meu
irmão teve uma vivência tão parecida comigo. Talvez sejamos irmãos de leitura,
de sensibilidade em relação ao que nos rodeia, daquilo que gostamos de escrever
e deixar aos nossos filhos.
Felicidades ao Francisco, à Ana e ao
Jorge.
Seja portador de um beijo à Maria de
Lurdes e receba deste seu irmão das palavras, um forte abraço e muitos anos de
vida com saúde.
Sempre ao dispor
Manuel Carvalho
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