terça-feira, 3 de novembro de 2020

CARTAS DE SETEMBRO





CARTA A CESÁRIO COSTA
Ao escritor que não conheço pessoalmente
 
 
 


 
 
Ermesinde, Setembro de 2006
 
 
        Prezado amigo Cesário Costa
 
 
        Talvez nunca vá ler esta carta, primeiro porque não me conhece, depois, nem sabe que ela existe e por fim, é que nunca lha enviei.
        Sabe, tenho a mania da discrição, gosto de passar na vida despercebido, é a minha maneira de ser e como quase nada ganhei (não materialmente) mas emocionalmente, das poucas vezes que me mostrei ao mundo, penso que não tem importância para ninguém aquilo que penso, digo ou escrevo.
        Tirando algumas letras de minha autoria, que me dão uma enorme comoção quando as ouço cantar, mesmo sentindo que quem as ouve pouco ou nada as entende, não porque não sejam estendíveis, mas porque infelizmente se ouve muito mal o fado. Ou da dezena de pseudo livros que me deram um enorme gozo escrever e que para infelicidade minha nunca ninguém leu, nem aqueles para quem foram destinados. Primeiro porque nem edições de autor sou capaz de fazer, depois, confesso, que a culpa recai totalmente nesta minha mania de estar recolhido no meu canto longe do mundo e de todos, no entanto, gosto sempre que fique (escrito pelo menos), o meu modo de pensar em relação ás coisas que para muitos pode não ter interesse, mas que é a maneira (a minha maneira), de pensar que talvez um dia alguém me leia e me dê algum valor quando muito, póstumo! As razões desta minha mania, não interessam para aqui, nem vou ocupa-lo com as minhas lamúrias.
        A minha carta vem a propósito do seu livro “Memórias da memória”, que me foi oferecido pelo Leopoldino Serrão e como tem o prefácio de Hélder Pacheco, faz com que junte dois dos nossos amigos comuns no mesmo gesto literário.
        Ler é uma das coisas melhores da vida, mas escrever, além do seu lado intimista é uma atitude solitária mas muito reconfortante.
        Quando escrevi as minhas me,órias de infância no meu: “Enquanto me Lembro...”, rebusquei nas minhas lembranças e vivências dum tempo de carência (o nosso tempo), com a esperança que algum dos meus netos um dia as saboreie e o possa ajudar a superar alguma vicissitude que a vida lhe traga, com o meu exemplo de muita perseverança e vontade de viver, embora confesse, um pouco desiludido...
        Li o seu livro com muito agrado, envolvido nas suas palavras, levado pelas atitudes em relação à vida, passeando pelos mesmos lugares onde andou. Quando o conteúdo dum livro nos tocam assim tão de perto, devoramos as páginas e revemos todos os momentos como se fossem nossos, o livro que nos retracta a vivência de alguém tão coincidente com a nossa, passa a ser a nossa vivência, tantos são os pontos convergentes. Se não repare:
       Apenas o Douro e três anos de diferença nos separa à nascença, o Cesário em Gaia e eu no Porto. Trabalhamos os dois desde muito novos e como meu pai fazia caixas de jóias, também passei aos 11 anos pela contrastaria, com as peças de prata que meu pai aplicava.
       O edifício em mármore do Banco Pinto de Magalhães na esquina de Sampaio Bruno, onde o Cesário ia comprar a prata, foi feita em maqueta de madeira por meu pai, para que na confeitaria “Cunha” a cobrirem de açúcar, para o dia da sua inauguração. Fui lá muitas vezes depois, quando meu pai me mandava com o postal duma letra para pagar, pedir para que adiassem a data de liquidação ou fazer uma reforma a 90 dias.
       O Cesário em menino corria pelo “Campo” e passava na Lapa quando fazia entregas na ourivesaria de Antero Quental. Nasci nesse bairro, nele passei a minha infância (deve ter passado por mim sem me ver). Muitos anos depois, até a sua Ana Sara nasceu lá na Ordem da Lapa!
        Conheci a minha Olga num baile de garagem, tal como conheceu a sua Maria de Lurdes, ao som das canções tocadas num gira-discos de vinil, ouvindo o Cliff Richard, a Silvie Vartin, o Roberto Carlos e tantos outros de quem na época éramos fãs. Casei a 18 de Março de 1967 e o meu amigo, casou exactamente no dia em que no cais de Alcântara, eu embarcava no Vera Cruz para Angola a 25 de Julho de 1970. Não tenho a certeza, mas era sábado?
        O Cesário tem três filhos: O Francisco, a Ana e o Jorge. Eu tenho o Gualter, a Helena e a Modesta. Já eram nascidos quando fui para Angola como Operador de Informações de Artilharia. O amigo já lá tinha estado como Operador Cripto num batalhão de artilharia. Passamos ambos pelo Grafanil, o Cesário deu 26 meses de guerra e eu 28 com quatro de “lepra”. Fez a recruta no GACA 3 em Espinho, eu passei a pronto nesse aquartelamento e de lá fui mobilizado para a guerra do ultramar.  
        Em 1958, estive com minha avó na praça de Carlos Alberto a ver o “General sem medo”, quando íamos a caminho da padaria Porto no largo Moinho de Vento, enquanto o meu amigo passava junto ao mar de gente em S. Bento.   
        Na nossa meninice, lemos os mesmos livros de quadradinhos como o “Condor” ou o “Cavaleiro Andante” e mais tarde os mesmos autores como Alves Redol ou Camilo.
        Passamos pelos mesmos cinemas do Porto e gostamos dos mesmos filmes, até gosta do “Clube dos Poetas Mortos”, que faz parte dos “meus” 10 melhores filmes do mundo.
        Passamos pelos mesmos cafés e ambos gostávamos de ler o “Diário de Lisboa” o meu amigo no Palladium (eu não passava sem as suas palavras cruzadas) mas, no Café Luar na Areosa.
        Tivemos as nossas tertúlias e até ao “Mariani” fui tantas vezes, nas minhas andanças em busca pelas melhores “Francesinhas”.
        Mesmo o teatro é coincidente em nossas vidas, fizemos ambos Revista, o meu amigo em Gaia e eu no “Flor de Pedrouços”.
       Com tantas coisas em comum, nem o meu irmão teve uma vivência tão parecida comigo. Talvez sejamos irmãos de leitura, de sensibilidade em relação ao que nos rodeia, daquilo que gostamos de escrever e deixar aos nossos filhos.
       Felicidades ao Francisco, à Ana e ao Jorge.
       Seja portador de um beijo à Maria de Lurdes e receba deste seu irmão das palavras, um forte abraço e muitos anos de vida com saúde. 
        Sempre ao dispor
        Manuel Carvalho 

 


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