segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CARTAS DE SETEMBRO


 




CARTA OU INVENTÁRIO
 
Aos principais interessados
 
 
 


Ermesinde, Setembro de 2007
 
 
          Amigo inventariante
 
        
         A pretexto de um inventário para actualização de apólice de seguro do recheio de casa, muni-me de papel e lápis, e fui de sala em quarto tomando nota do meu património. Era pouco e de baixo valor, apenas inflacionado pelo valor estimativo. Não se tratam de grandes peças de mobiliário, caríssimas antiguidades, quadros famosos, louças finíssimas, roupas de marca, tapeçarias ou luxuosos objectos de decoração, carros, propriedades ou acções da bolsa. Não, são apenas coisas simples, ganhas e pagas (muitas vezes a prestações) com o trabalho de uma vida. Não seriam totalmente aquelas coisas que adorava de ter, mas são coisas e objectos especiais que para outros seriam decerto banais ou mesmo pindéricas.
      Tirando o mobiliário normal dum quarto ou duma sala, as roupas necessárias para cama ou de vestir, os apetrechos inerentes e electrodomésticos imprescindíveis numa cozinha, os aparelhos de imagem e som normais de lar modesto, restavam aquelas coisas de intimo valor, que não sei se valeu a pena ter adquirido ao longo do tempo, pois embora tivesse incutido aos filhos o seu intrínseco valor, via com grande tristeza que não lhe davam a devida importância, contrariando aquele dito antigo que para a educação das crianças, conta muito o exemplo que se dá.
      Duma biblioteca de mais de mil e quinhentos volumes de vários autores, de uma biblioteca musical com mais de oitocentos CD’s e de uma videoteca de mais de mil e duzentos filmes gravados em cassetes, poucos, muitos poucos mesmo leram, ouviram ou viram. Tirando o cinema que um deles vê e gosta, outra que gosta mas não vê e outra que vê mas só lhe dá uma importância relativa. Nenhum deles alguma vez leu, a não ser (em percentagem), de um a dois livros em 30 anos.
       Põe-se a questão: Para onde irá tudo isto amanhã, para o lixo? Doado a uma biblioteca? Haverá uma instituição cultural que receba este acervo? Não consigo imaginar os filhos a dividirem entre si tudo isto e darem aos netos para enriquecer o seu intelecto. As crianças hoje têm todo o saber digitalizado, para que querem um livro? É muito mais estimulante um jogo de vídeo que um bom filme. Um aparelho de mp3 ou um telemóvel com música, do que o obsoleto vinil ou cassetes.
       Sempre desejei, tudo aquilo que todos os pais desejam, a felicidade dos filhos. Nunca impus que fossem doutores e sempre lhes dei a liberdade de serem o que quisessem ser. Também não tive recursos para lhes dar melhor do que dei! Mas tenho a certeza absoluta que lhes dei o meu exemplo, pela educação, pelo trabalho, pelos valores da amizade, do amor e da verdade. Sei que os genes dos filhos também são os da mãe e talvez os dela se tenham sobreposto aos meus. Devem ter herdado do lado materno, um pouco do desprendimento pelas coisas cultas, pelas artes, pela literatura. Também o lado agressivo com que enfrentam qualquer problema que se lhe depare na vida. Não herdaram de mim a vergonha, a serenidade, a discrição, a calma.
      Dentro dessa minha serenidade, vou tentar viver o tempo que me resta a pensar: Que façam o que acharem melhor com tudo que lhes deixo.
      Ficam neste inventário:
      Livros de guerra, romances, erotismo, policiais, históricos, aventura, colecções de diversos autores portugueses e estrangeiros.
      Música diversa, principalmente fado, em vinil, cassetes e CD’s. Fados de minha autoria gravados por muita gente ao longo dos anos.
      Filmes gravados em vídeo, portugueses e estrangeiros, de guerra, western’s, policiais, aventuram, eróticos, dramas e comédias. 
       Algumas colecções de filatelia, fluminismo e numismática, cromos, jornais, chávenas, copos.
       Enfim, tudo em que gastei com meus proventos em vez de comprar um carro, ser sócio do FCP ou viajar pela Europa a ver os jogos dos campeões europeus. Mas será que era mais feliz? Será que fazia os meus mais felizes? Se calhar fazia, a avaliar por muita gente que conheço.
       Entretanto em 2010, fiz uma lista que ainda possuo e doei à Biblioteca de Ermesinde 1.000 livros. Mandaram uma carrinha da Junta cá a casa e levaram tudo em caixas de cartão. O Presidente da Junta nem me agradeceu, apenas um email que dizia assim:
 
«Exmo. Senhor
Serve o presente para agradecer a oferta dos livros que, amavelmente, fez para a Biblioteca da Junta de Freguesia de Ermesinde.
Grato pelo importante apoio concedido para o enriquecimento do nosso espólio bibliotecário apresneto os melhores cumprimentos.
 
Por delegação do Exmo. Sr. Presidente da Junta
O Tesoureiro
Romeu Maia» 
 
 
        Um braço amigo inventariante
 

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