Aos principais interessados
Ermesinde, Setembro de 2007
Amigo inventariante
A pretexto de um inventário para actualização de apólice de seguro do
recheio de casa, muni-me de papel e lápis, e fui de sala em quarto tomando nota
do meu património. Era pouco e de baixo valor, apenas inflacionado pelo valor
estimativo. Não se tratam de grandes peças de mobiliário, caríssimas
antiguidades, quadros famosos, louças finíssimas, roupas de marca, tapeçarias
ou luxuosos objectos de decoração, carros, propriedades ou acções da bolsa.
Não, são apenas coisas simples, ganhas e pagas (muitas vezes a prestações) com
o trabalho de uma vida. Não seriam totalmente aquelas coisas que adorava de
ter, mas são coisas e objectos especiais que para outros seriam decerto banais
ou mesmo pindéricas.
Tirando o mobiliário normal dum quarto ou duma sala, as roupas
necessárias para cama ou de vestir, os apetrechos inerentes e electrodomésticos
imprescindíveis numa cozinha, os aparelhos de imagem e som normais de lar
modesto, restavam aquelas coisas de intimo valor, que não sei se valeu a pena
ter adquirido ao longo do tempo, pois embora tivesse incutido aos filhos o seu
intrínseco valor, via com grande tristeza que não lhe davam a devida
importância, contrariando aquele dito antigo que para a educação das crianças,
conta muito o exemplo que se dá.
Duma biblioteca de mais de mil e quinhentos
volumes de vários autores, de uma biblioteca musical com mais de oitocentos
CD’s e de uma videoteca de mais de mil e duzentos filmes gravados em cassetes,
poucos, muitos poucos mesmo leram, ouviram ou viram. Tirando o cinema que um
deles vê e gosta, outra que gosta mas não vê e outra que vê mas só lhe dá uma
importância relativa. Nenhum deles alguma vez leu, a não ser (em percentagem),
de um a dois livros em 30 anos.
Põe-se a questão: Para onde irá tudo isto amanhã, para o lixo? Doado a
uma biblioteca? Haverá uma instituição cultural que receba este acervo? Não
consigo imaginar os filhos a dividirem entre si tudo isto e darem aos netos
para enriquecer o seu intelecto. As crianças hoje têm todo o saber digitalizado,
para que querem um livro? É muito mais estimulante um jogo de vídeo que um bom
filme. Um aparelho de mp3 ou um telemóvel com música, do que o obsoleto vinil
ou cassetes.
Sempre desejei, tudo aquilo que todos os pais desejam, a felicidade dos
filhos. Nunca impus que fossem doutores e sempre lhes dei a liberdade de serem
o que quisessem ser. Também não tive recursos para lhes dar melhor do que dei!
Mas tenho a certeza absoluta que lhes dei o meu exemplo, pela educação, pelo
trabalho, pelos valores da amizade, do amor e da verdade. Sei que os genes dos
filhos também são os da mãe e talvez os dela se tenham sobreposto aos meus.
Devem ter herdado do lado materno, um pouco do desprendimento pelas coisas
cultas, pelas artes, pela literatura. Também o lado agressivo com que enfrentam
qualquer problema que se lhe depare na vida. Não herdaram de mim a vergonha, a
serenidade, a discrição, a calma.
Dentro dessa minha serenidade, vou tentar viver o tempo que me resta a
pensar: Que façam o que acharem melhor com tudo que lhes deixo.
Ficam neste inventário:
Livros de guerra, romances, erotismo, policiais, históricos, aventura,
colecções de diversos autores portugueses e estrangeiros.
Música diversa, principalmente fado, em vinil, cassetes e CD’s. Fados de
minha autoria gravados por muita gente ao longo dos anos.
Filmes gravados em vídeo, portugueses e estrangeiros, de guerra,
western’s, policiais, aventuram, eróticos, dramas e comédias.
Algumas colecções de filatelia, fluminismo e numismática, cromos,
jornais, chávenas, copos.
Enfim, tudo em que gastei com meus proventos em vez de comprar um carro,
ser sócio do FCP ou viajar pela Europa a ver os jogos dos campeões europeus.
Mas será que era mais feliz? Será que fazia os meus mais felizes? Se calhar
fazia, a avaliar por muita gente que conheço.
Entretanto em 2010, fiz uma lista que ainda possuo e doei à Biblioteca
de Ermesinde 1.000 livros. Mandaram uma carrinha da Junta cá a casa e levaram
tudo em caixas de cartão. O Presidente da Junta nem me agradeceu, apenas um
email que dizia assim:
«Exmo. Senhor
Serve o
presente para agradecer a oferta dos livros que, amavelmente, fez para a
Biblioteca da Junta de Freguesia de Ermesinde.
Grato pelo
importante apoio concedido para o enriquecimento do nosso espólio bibliotecário
apresneto os melhores cumprimentos.
Por delegação
do Exmo. Sr. Presidente da Junta
O Tesoureiro
Romeu Maia»
Um braço amigo inventariante
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