segunda-feira, 2 de novembro de 2020

CARTAS DE SETEMBRO







CARTA A QUEM QUISER LER
 
Talvez ao Pai Natal
 
 
 
 

Ermesinde, Setembro de 2007
 
 
      Amigo Etéreo
 
     
      Hoje é dia do meu aniversário, para o próximo ano entro nos sessenta e gostava, enquanto tenho tempo, de lhe agradecer a vida que me tem dado, apesar de ter certas duvidas se o meu amigo existe, pois sinto-me mais um agnóstico que um crente.
      Tal como diz esse sistema filosófico, o meu agnosticismo provem das dúvidas que encontro na vida e do total desconhecimento que tenho do espírito humano. Claro que fui baptizado, crismado e casei pela igreja, não porque acredite na existência de Deus, mas porque fui obrigado a isso. Todavia, acredito na alma humana enquanto comandada pelo cérebro, mas que morre na hora em que morre o corpo. Um pé, um braço, uma mão, depois de separados do corpo não mexem mais. A morte quando é premeditada, é sempre no cérebro que ocorre, seja um tiro na cabeça, a asfixia numa corda ao pescoço, a guilhotina ao ser-se decepado e mesmo as cadeiras eléctrica ou de gás, só é declarada a morte se for cerebral. Mesmo na doença, pode um ser humano viver ligado a uma máquina muito tempo, que a sua morte só acontece quando essa máquina é desligada e o cérebro deixa de funcionar. A inteligência humana, conseguiu fazer máquinas que prolongam a vida do homem, ou substituindo órgãos como o coração e outros, mas nunca se transplantou um cérebro, este é o centro neurálgico de todo o fenómeno da vida. Mesmo na sua concepção, o homem utiliza o cérebro para a erecção e subsequentemente a ejaculação do seu esperma. Pode ser utilizado qualquer método, desde a inseminação artificial ou fertilização in vítreo, mas sempre foi preciso o cérebro. Todos os sentidos, todo o sistema nervoso lhe está ligado, claro que a sua irrigação pelo sangue é fundamental, para isso todo o conjunto de órgãos do corpo têm importância, desde a hematose nos pulmões (transformação do sangue venoso em arterial, com a ajuda do oxigénio), até ao bombeamento do coração (órgão central da circulação sanguínea), que o leva a todo o corpo, passando pelo fígado com a sua função de secreção biliar e glicogénica, até ao pâncreas, aos rins e todos os aparelhos digestivo, respiratório e circulatório. Resumindo: Pode-se viver com um coração artificial, sem um rim, até sem um pulmão, mas nunca sem o cérebro.
        Mas tudo isto sabes muito melhor que eu. Perdoa-me se este (apenas ser humano), não tem razão no que diz, mas é a minha ideia, baseada na minha pouca inteligência e com muito pouco ou nenhum conhecimento de anatomia. Nem é minha intenção fazer a apologia do cérebro, apenas centrar nessa massa encefálica a sede da inteligência, do pensamento, do juízo, de todas as funções psíquicas, centro intelectual de onde imanam todas as ordens do corpo, enfim... A alma do ser humano.
        Essa alma que não creio que vá para lado nenhum depois da morte, faz-me sentir comoção ao ver o sacrifício de um peregrino em Fátima, porque respeito a fé dos outros. Mas também me faz comover de raiva e impotência, ao olhar as crianças morrerem de fome ou o desespero da morte nos campos de guerra. Não consigo ainda entender, o holocausto nem a angustia e a dor dos que sofrem injustamente, escravizados pela ambição desmedida de alguns e a ganância de outros, cegos pelo poder. Que esses fossem castigados pela providência, posso entender, enfim! Mas...”As crianças Senhor, porque lhes dás tanta dor, porque padecem assim?” como diz o poeta Augusto Gil.
       Sou um filho do universo e todos os dias agradeço ás estrelas, a ti, ou a alguém que me ouça, a cama onde durmo, a mesa onde como, o tecto onde me abrigo, a saúde que tenho. Mas sinto uma tristeza enorme, quando não me consigo fazer entender aos olhos dos outros, principalmente dos que me são mais queridos.
       Estou cansado de dar e pouco receber em troca, de sacrificar os meus ideais em prol dos outros sem respeitarem os meus. Estou casado de não ir onde queria ir, de não fazer o que queria fazer, de não ser o que gostava de ser. Tudo porque, confesso, além do medo que me assola de não querer fazer os outros infelizes por minha causa, talvez me falte vontade própria para concretizar tais intentos. Tomo como exemplo a minha vida de quarenta anos de trabalho, onde nunca fui compreendido nem compensado pelo esforço que fiz. Nunca fui devidamente aproveitado pela minha inteligência e arte, apenas explorado pela minha humildade e abnegação ao trabalho.
        Diz a astrologia que seres nascidos no dia em que eu nasci, nunca serão compensados pelo seu esforço e toda a vida trabalharão para enriquecer os outros. Não mata, mas desmoraliza muito, a ser verdade tal premonição. Depois de todos esses anos de trabalho, vivo agora por decreto, com um subsídio para que possa sobreviver, fazendo-me sentir um inútil e vivendo sem vontade, contendo-me nas exigências e sufocando de desejos e sonhos que nunca verei concretizados.
        Hoje tenho vergonha de olhar uma montra, porque sei que nunca comprarei o livro que gosto, a prenda que gostava de dar ou o filme que gostava de ver.
        Abdiquei de quase tudo, recolhi-me feito um eremita a um canto, rasgando os sonhos um a um, zangado com o mundo que muitas me faz pensar que não é o meu, desiludido com os amigos que pensava serem p’ra toda a vida, desiludido com muitas coisas que na minha vida particular acontecem e que pensei nunca acontecerem.
        Faz-me doer, em ter que contar as moedas para tomar um café, comprar o jornal ou um maço de cigarros. Sim cigarros, os eternos e mórbidos companheiros que nunca me deixam só.
        Por manifesta impossibilidade de o fazer hoje, dói-me muito, abdicar da Internet e fechar os olhos a essa janela do mundo. Abdicar de convívios sociais, do fado, do meu pecado da gula, do meu pecado (pecado?) do sexo. Poucas coisas me restam, como um cigarro e esta vontade de escrever, coisas a que nem sei se chamo poemas, mas mesmo que seja uma carta (a não sei quem), que me pudesse tirar estas minhas dúvidas existenciais.
 
                          Obrigado 

  

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