terça-feira, 3 de novembro de 2020

CARTAS DE SETEMBRO


 



CARTA AO HELDER PACHECO
 
À Memória de meu pai
 
 


 
 
Ermesinde, Setembro de 2007
 
Amigo Hélder Pacheco
 
        
    Aqui vai como me pediu, de uma forma sintetizada, o que foi a vida de um homem que fundou uma das maiores fábricas de brinquedos que existiu na cidade do Porto. Tinha muito orgulho no meu pai, pois apesar de ser deficiente motor construiu uma empresa, deu trabalho a muita gente, foi a primeira pessoa na cidade a adquirir automóvel adaptado ás suas dificuldades. Nunca se resignou à sua condição, e fez ver aos que podem que na vida tudo é possível com trabalho e perseverança.
     Fico á espera que o meu amigo dê a conhecer ao mundo, no livro que pensa escreve sobre os grandes industriais da cidade do Porto. Resta esta pequena (grande) história feita por alguém que sempre acreditou num sonho.
 
       

   Tudo começou nas décadas de 30/40 com as construções do “Mosquito”. O suplemento desta revista aos quadradinhos, trazia para construir aviões, barcos, casas, etc. Tratavam-se de folhas que se colavam em cartão, recortavam-se pelo tracejado, dobravam-se pelas patilhas e colavam-se as peças até construir o modelo pretendido. Mas nem todos os possuidores da revista tinham a habilidade necessária para a execução dessas pequenas obras de arte. Foi assim que o meu pai, na mesa da sala da pequenina casa onde vivíamos na Rua da Glória, nº 47 (que ainda existe), ia construindo os modelos para todos os rapazes lá da rua a troco de uma moedas. Tinha também, o tal jeito para desenho que era muito apreciado nesse tempo, na litografia, na estamparia de tecidos, na publicidade, etc. que hoje não se dá muito valor com o aparecimento das novas tecnologias, com programas próprios em computadores que põem a desenhar qualquer um.
    Meu pai em 1943 com 20 anos e com a poliomielite desde os 2, locomovia-se com duas muletas e trabalhava como empregado de escritório numa pequena marcenaria na Rua Mártires da Liberdade. Nessa casa foi fazia outros serviços, como envernizar (à boneca), caixas de jóias, que depois forrava o interior com cetim ou veludo e que eram no final decoradas com aplicações em prata. Este trabalho manual para que tinha muito jeito, deu-lhe a experiência para começar (quando a oficina de marcenaria fechou), em casa a fazer casinhas para as cascatas, presépios para o Natal, caixas para as amêndoas na Páscoa, assim como caixas de costura e de jóias, etc. Tudo isto era feito manualmente com uma serrinha manual e as peças de madeira presas num pequeno torno apertado na mesa da sala.
    Em 1947, meu pai casou com minha mãe e eu vim a nascer em Setembro de 1948 e meu irmão em Fevereiro de 1950. Quis o destino, que em Agosto desse ano, minha mãe falecesse apenas com vinte anos. Foi então que minha avó paterna se desdobrou para nos criar, ajudando meu pai que por essa altura, sonhava em estabelecer-se com uma oficina pequena, mas que desse para sustentar a família, pois só minha avó tinha algum rendimento do seu trabalho como padeira na “Padaria Porto” no Largo Moinho de Vento.
   Para desenvolver mais o seu trabalho, meu pai encontrou uma pequena máquina de serrar de tico-tico na Casa Escol em Sá da Bandeira. Esta firma alemã que ainda hoje existe, embora virada para outra vertente no caso actual, artigos para combate a fogos etc., tinha ao tempo um gerente, o Sr. Brucher, um alemão que acreditou no meu pai e lhe entregou a máquina depois ouvir toda a história e vendo naquele homem de muletas um vontade enorme de vencer na vida com o seu trabalho, dizendo: — Leve a máquina e paga-me quando puder. Isto passa-se em 1952, quando meu pai alugou a casa 4 do bairro “Angelina”, também na rua da Glória, nº 52, adaptou-a ás suas necessidades, trouxe a tal máquina que seria a primeira de muitas e inaugurou a sua oficina em Novembro desse ano, com a presença de diversos amigos como: Alfredo Borges que mais tarde abriria uma das mais conceituadas litografias do Porto a “Inova”; Fernando Batista que foi gerente da casa de bicicletas do Porto a “Altis”. Um dos amigos que mais o ajudou foi o Manuel Ferreira Marques, dono da grande fábrica de ourivesaria “Topázio” no Porto e antigo condiscípulo do Colégio Brotero na Foz do Douro, onde meu pai estudou, aquando da sua estada até aos 16 anos no Refugio da Paralisia Infantil na rua Bela também na Foz, de onde saiu a andar de muletas.
      Começou nesse ano a confeccionar presépios para a quadra de Natal que se avizinhava.  Com dinheiro emprestado, no começo de 1953 já com a ajuda de uma rapariguita como empregada, começou a trabalhar para as diversas quadras festivas do ano. Assim, logo para o Carnaval, fabricava as chamadas “línguas da sogra”, aquelas boquilhas com “gaita” que ao serem sopradas desenrolavam até ao rosto da pessoa próxima, para voltarem à posição inicial. Além destas, haviam “Relas” que ao girar fazia barulho. Chapéu de fantasia, etc. Para a Páscoa, fabricava as caixas de amêndoas algumas com música e outras com patinhos para levar os ovos pintados, etc. Para as cascatas de S. João as tais casinhas, pontes, coretos, castelos, igrejas, etc. Para as praias, fabricava e vendia aos fabricantes de baldes para criança em chapa (folha flandres, igual a chapa usada nas conservas e que muitos brinquedos se produziram no após guerra nas oficinas de Ermesinde), as pás e os ancinhos em madeira. Mas logo começava a fabricar para stock, os presépios para o Natal, para isso, comprava em Gaia (aos fabricantes de capas em palha para as garrafas), a palha com que cobria os telhados dos presépios, aproveitando as espigas secas do centeio, para fazer os berços do menino Jesus. Estes artigos eram vendidos em muitas casas do Porto como Bazar dos Três Vinténs em Cedofeita, a Casa Ametista na Praça dos Poveiros, nas casas de artigos religiosos nas ruas de Mouzinho da Silveira e das Flores, assim como os artigos para cascatas nas casas onde vendiam os bonecos de barro na rua da Assunção.
     Nesta época, a madeira para trabalhar era obtida dos caixotes de sabão da Cuf que meu pai reutilizava. O cartão mais tarde era comprado aos maços, porque a principio, até os maços de cigarros provisórios virados ao contrário, que serviam para as casinhas das cascatas. Assim como os telhados, eram feitos com o cartão canelado das embalagens.
    Em 1954, uma vizinha que muito ajudava a minha avó a nos criar, eu com 6 anos e meu irmão com 4, começou a interessar-se por meu pai, ajudando-o mesmo no trabalho pois depressa se tornou numa artesã. Esta Senhora de nome Gracinda, que veio a casar com meu pai no ano de 1956, veio a dar o nome “Cindita, Fábrica de Brinquedos e Utilidades em Madeira”, que até era só “Manuel Monteiro de Carvalho Fabricante de Brinquedos”. Foram viver num rés-do-chão da mesma rua da Glória, nº 63, que fazia traseiras com a oficina já existente. Como era preciso um lugar tipo armazém, para guardar os artigos fabricados e como se dera de vago a casa 3 do mesmo bairro, meu pai alugou-a abrindo uma porta interior. Mais tarde fez o mesmo com a casa 2 e a casa 1, ficando um correr de casas desse bairro, a serem uma fabriqueta de brinquedos, já com 6 empregados. Estávamos então em 1960, minha avó faleceu nesse ano com 72 de idade. Entretanto o progresso era visível e meu pai queria dar outro salto, mas só em 1963 novas instalações foram possíveis.
     Na altura, só o J. Cândido da Silva na Rua Monte da Estação em Campanhã, o A. Lopes Coelho de Sousa na Travessa do Campo 24 de Agosto e a “Majora” (que mais tarde se ramificou na “Karto”) com seus jogos, eram os únicos além de nós, que fabricavam brinquedos na cidade. Como as exigências eram cada vez maiores, foi necessário mudar de instalações e a nova fábrica surgiu na Rua Dr. Júlio de Matos mesmo defronte à antiga fábrica de tecidos “Raione”. Havia uma secção de montagem, outra de pintura. Nas traseiras um parque de máquinas para trabalhar madeira aceitável para as necessidades do momento. Tínhamos a residência por cima da fábrica. Aumentaram os postos de trabalho e chegamos em 1974 a ter 12 empregados na produção, além de vendedor e escritório.  
   Vendíamos para bazares de todo o país, mas principalmente para grandes armazenistas como o A. Lopes Coelho de Sousa no Porto (que entretanto se tornara armazenista e importador de brinquedos) e em Lisboa o armazenista A. Fresco, que exportava os nossos artigos em grande escala para as províncias ultramarinas. Com a chegada da revolução de Abril, este mercado desapareceu num ápice, deixando-nos completamente desprevenidos e com mercadorias abandonadas na alfandega que nunca mais recebemos o seu valor. Depois começaram as justas reivindicações por parte dos operários, com aumentos de ordenados, subsídios de férias e de Natal, coisas que até então não havia. Conseguimos aguentar com muito custo, pois tínhamos entretanto, adquirido uma carrinha para transporte de mercadoria, uma vez que o então ”Costa Ramos”, nos levava grande parte dos lucros em transportes.
     Em 1975, com o mercado de brinquedos em crise, avançamos com uma linha de montagem de Armários de quarto de banho, onde chegamos a atingir uma produção de 600 por mês. Todos os armazenistas de Paços Brandão, Cortegaça e arredores, compraram-nos muito, pois a nova legislação, proibia os armários em chapa esmaltada, devido à corrente eléctrica nas casas de banho.
      Em meados de 1977 e com o EAPMEI a atribuir financiamentos às pequenas e médias empresas, fizemos uma proposta para o desenvolvimento da nossa fábrica, uma vez que tivemos conhecimento que ia ser feito um empréstimo a fundos perdidos de 50.000 contos, para uma nova fábrica de brinquedos “A BRINCÁFRICA” no Parque de Celeiros em Braga. Depois de muita burocracia, a resposta foi: Que não viam viabilidade no nosso projecto e preferiam atribuir a verba a uma fábrica de raiz, sem se importarem com a experiência de tantos anos neste sector industrial, em detrimento de outra sem qualquer experiência.
     Foi quando no começo de 1978, um grande armazenista de Lisboa, o “J. Sousa Guimarães”, que tinha agregado a si a empresa “Dinamização” que já no Natal de 1977 tinha lançado uma campanha publicitária na TV para o lançamento do celebre “Jogo da Assembleia”, (com os partidos no semicírculo), contactou-nos para nos fazerem uma proposta tentadora. Comprarem-nos toda a produção mensal, com modelos de brinquedos impostos por eles. Numa altura de crise, com a promessa de todos os meses ter-mos o necessário para os nossos compromissos, sem preocupações em vender… Aceitamos a proposta e entregamos toda a nossa carteira de clientes, depois de assinado o contrato da compra mensal de toda a nossa produção. No começo foi bom, quanto mais fazíamos melhor, só que tivemos que adaptar novos moldes, formas de fabrico diferentes para madeiras ao natural, exigências na troca da madeira de pinho por plátano, amieiro e outras. Adquirimos então uma nova carrinha Mercedes para transportar semanalmente os artigos para Lisboa.
    Vieram depois as exigências legislativas sobre segurança dos brinquedos para as crianças, coisas que até então ninguém se tinha preocupado. Claro que eram razões mais que justas: Nada de arestas, objectos cortantes ou de tamanhos fáceis de engolir. Tudo leis importantes que tão rapidamente aderimos, mas que nos obrigaram a fazer novos ajustes no modo de fabricação.
   Surgiu então a ideia de visitar a maior Feira de Brinquedos do mundo em Nuremberga na Alemanha, com a intenção de conhecer novos modelos e formas de fabrico. A viagem foi paga pelo nosso cliente e durante uma quinzena documentamo-nos e adquirimos todos os conhecimentos possíveis para implementar a “Cindita”.
  Novas técnicas foram introduzidas, como a serigrafia com estampagem mecânica, pintura à pistola com cortina de água, etc. Aumentamos a produção com novos modelos de Matraquilhos, Quadros escolares, Cavalo de Baloiço, Jogos de Xadrez, etc. Entramos depois no campo do brinquedo didáctico, construído sempre com o intuito da criança aprender brincando, com uma apresentação apelativa de cores vivas.
    As coisas correram bem até ao ano de 1979, quando a firma nosso cliente em Lisboa começou a dar sinais de que qualquer coisa não corria bem. Atrasando os pagamentos e deixando de cumprir o acordado. Até que em 1980 abriu falência arrastando-nos para o abismo. Ainda aguentamos a crise que se generalizara a todos os sectores da fábrica. Os clientes antigos tinham agora outros fornecedores, tentamos dar a volta mas fomos impotentes. O pessoal foi abandonando o trabalho com justa causa, quando a falta de pagamento acontecia. Corremos mais uma vez ao IAPMEI mas de nada valeu a crise estava instalada. Até que em 16 de Dezembro de 1981 a “Cindita” entrou em falência técnica e foi o fim.
      

Fundada em 1952, a firma durou quase 30 anos. Meu pai tudo vendeu para cumprir compromissos. Deu entrada com minha mãe Gracinda no Lar do Comércio. Ela não aguentou o desaire e faleceu em 1986. Meu pai veio a falecer a 15 de Setembro de 2002, não sem antes ter tido uma pequena oficina no próprio Lar do Comércio, onde consertava objectos de outros internos e colaborava com a construção do presépio e outras actividades nos eventos que o Lar organizava. Como prémio destas tarefas, chegou a visitar a Madeira a expensas do Lar. Ainda casou pela 3ª vez com a telefonista da instituição.
Nunca parava, só parou quando o coração deixou de trabalhar, ao fim de 77 anos.
 
 
        Um abraço amigo, até qualquer dia
                   Sempre ao dispor
                    Manuel Carvalho
 

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