terça-feira, 27 de outubro de 2020

CHÁVENA COM HISTÓRIA




 


CAPÍTULO 9





PORTO


Maciel, só muitos anos depois, soube que teve uma irmã. Por agora e apesar da sua condição, era disputado pelas raparigas de lá da rua da Flora. Tinha um certo encanto na forma de falar, além de ser uma figura de homem bonito. Com o timbre de voz que possuía, em 1946 foi escolhido por um anúncio do Portuense Rádio Clube, quando procuravam gente para fazer pequenos papéis para o chamado, teatro radiofónico que foi o antecessor das novelas de hoje. Conheceu nessa altura: Mena Matos, João Manuel, Fernando Gonçalves e outras vozes da rádio. Como ganhava pouco e não era sempre, Maciel arranjou emprego numa oficina da rua de Mártires da Liberdade, mesmo defronte à rua dos Bragas. Seu trabalho consistia em forrar a veludo ou cetim caixas de jóias, fazia aplicações de motivos de prata em estojos diversos, envernizava caixas de costura, montava porta-retratos, e muitos outros artigos em madeira, decorava ainda álbuns de fotografias com aplicações em prata. Como era da confiança do patrão, este mandava-o muitas vezes à Contrastaria na Av. Rodrigues de Freitas, para ser aplicado o punção do contrate nas peças de prata, que levava numa pequena saca pendurada ao pescoço por dentro da camisa. Pertencia na época ao sindicato dos ourives e no dia de Santo Elói tinha sempre feriado. Não ganhava muito, mas finalmente tinha um ordenado semanal, que depois de pagar ao Sr. João do tasco onde almoçava, por dois escudos diários, dava para entregar o restante em casa, para ajudar a mãe nas despesas e não se sentir um inútil.
Foi por esta altura, que se mudou para a rua da Flora, mais propriamente para a “ilha do Mesquita”, vinda do Carvalhido, fugida aos maus-tratos que o marido lhe dava, a Maria Inês, conhecida por “Miquinhas”, com as suas três filhas. A Zeza de 19 anos e a mais nova, a Lina de 14. A Mariana, que era a filha do meio, tinha quase 16 anos, trabalhava como gaspeadeira de malas na rua de Alferes de Malheiro. Em pouco tempo se tornou uma das raparigas mais bonitas da rua. Dizia quem a conheceu: «A Mariana era uma carinha de riso, era mesmo um encanto vê-la de caneco da água à cabeça subindo a rua, sempre com um sorriso nos lábios e uma palavra de agrado para toda a gente».       
Mariana encontrava-se com Maciel todos os dias a caminho do trabalho, desciam a Lapa e no Campo da Republica, cada um tomava a sua direcção. Muitas vezes ficavam a conversar no banco do jardim e em pouco tempo se enfeitiçaram de amores, Ela, pelos seus galanteios, pela sua firmeza e convicções. Ele, pela sua beleza e nobreza de carácter. Começaram a namorar em segredo, com bilhetinhos às escondidas e encontros furtivos. Ele tinha 23 e ela, 16 anos.
O Maciel na oficina onde trabalhava e como era bom em contas e a escrever, pois fora dos melhores alunos em caligrafia, o patrão mudou-o de lugar e pô-lo no escritório. Passou a ser empregado de escritório com toda a responsabilidade na escrita. O cargo era melhor remunerado e mais a seu gosto. Maciel andava feliz, agora vestia fato e gravata de acordo com a sua posição, mas... duas coisas o traziam preocupado. A primeira, era a certeza absoluta que o amor que Mariana lhe tinha, não queria a pena dela, mas amor verdadeiro, queria que fosse o suficiente para nunca se arrepender, de casar com um homem diminuído fisicamente como ele, tanto, que chegou a fazer que tropeçava de propósito em plena rua, só para ver a reacção dela. Felizmente foi a melhor, ajudando-o com firmeza, sem se importar com o que ouvia das pessoas que paravam, como: “coitadinho do aleijado”, insurgindo-se mesmo, não consentindo que o tratassem assim. A segunda coisa, que trazia Maciel preocupado, era saber se em caso de descendência, seus filhos teriam a mesma doença que o tinha afectado a ele. Para isso, consultou o velho Dr. Gomes de Araújo, que lhe tirou todas as dúvidas, afirmando que a poliomielite, não é uma doença transmissível nem hereditária. Desfeitas estas preocupações, tratou de pedir à Senhora “Miquinhas” autorização para namorar a Mariana. Depois de ela fazer 17 anos em Agosto, casaram em 7 de Dezembro de 1947, na Igreja de Cedofeita, tendo como padrinhos o Sr. Lopes e a esposa, vizinhos lá da rua. Foi uma cerimónia modesta só com a família de ambas as partes, onde nem mesmo o sogro faltou. Afastado da família o Sr. Sousa, apresentou-se no casamento da sua Mariana, para lhe dar um envelope com cem escudos e uma bonita caneca em vidro para o vinho. O Sr. Sousa, era “Carrejão” de profissão e tinha poiso na Estação de Campanhã.
 
«“Carrejão” era o nome que se dava aos homens, ou moços de fretes, que carregavam coisas diversas às costas. Nas cidades, estavam normalmente junto às estações de caminho-de-ferro, ou de camionagem. Nas aldeias, carregavam com um burro e eram chamados de “Almocreves”. Os “Carrejões” pertenciam ao mesmo sindicato dos estivadores e carregadores. Usavam muitas vezes um saco se serapilheira na cabeça que lhes descia pelas costas e umas cordas com que prendiam a carga». 
 
Assim, com o ordenado dele e da Mariana, mais o que a mãe ganhava na padaria, dava para viverem os três sem grandes “folestrias”. Ocuparam o quarto do Maciel e tudo correu na normalidade, até Mariana ficar grávida, deixando o emprego de maleira para ajudar a Clara com a venda do pão.
Pelo S. João, Mariana estava de seis meses, naquele ano ficou sentada à porta de casa com o Maciel, vendo a festa lá na rua. Enquanto a Clara, andava atenta à fogueira na rua, onde à meia-noite e como mandava a tradição, se fazia o café e torrava o pão com manteiga para todos.
       
“Com tradições muito antigas o S. João da Lapa, que ficou na história com a célebre quadra:
          Eu fui ao S. João a Lapa / E da Lapa fui ao Bonfim
         Estava tudo embandeirado / Com bandeiras de cetim.
Era dos mais populares da cidade e nesse dia de Junho, as ruas do bairro ficavam engalanadas com ramalhos que faziam arco, presos com uma arame a meio, um balão feito de papel de seda, era iluminado com velas. Depois um festão colorido ligava os vários arcos de uma ponta a outra da rua.
Durante dias, andavam os homens com rebanhos de carneiros para vender. Ali mesmo na rua, depois de tosquiados á tesoura e a lã amarrada, os homens matavam e esfolavam os carneiros. Na véspera de S. João, preparava-se a assadeira para levar ao forno da padaria. O anho era temperando com azeite e colorau e sentia-se no ar um cheiro bom a loureiro e alhos, coentros e alecrim. Os miúdos faziam as cascatas nos passeios, com musgo, pedrinhas e um pratinho para as moedas. Havia sempre o altar dos três santos populares, depois, pediam assim aos que passavam:
— Meu senhor, dê-me um tostãozinho para o S. João...
Mulheres vendiam vasos de manjerico, com quadras de S. João impressas em papel colorido e coladas em arames finos como se fossem bandeirinhas, vendiam também alho-porro e a erva-cidreira. Nas lojas, vendiam-se os pirilampos e os balões feitos de papel, para serem lançados ao ar com uma mexa embebida em petróleo depois de bem abertos á custa de abanadores que insuflavam o ar. Eram os característicos balões de S. João e não havia rua que não lançasse um, eram como estrelas luzidias que pairavam no ar, naquela noite de 23 para 24 de Junho.      
As fogueiras pela rua abaixo crepitavam e faziam curiosos bailados de sombras nas paredes. Casais de namorados saltavam-nas com cuidado para não se queimarem nem entornar a cafeteira do café, ou a grelha das sardinhas que assavam no fogo. Dizia-se naquele tempo, que quem saltasse a fogueira na noite de S. João, em número impar de saltos e no mínimo três vezes, fica por todo o ano protegido de todos os males.
As Rusgas passavam rua abaixo com alegria, ranchos de gente dançando e festejando o S. João. Vinham doutros bairros e os homens traziam ramalhos e balões, tocavam bombo, concertina, viola e ferrinhos e as mulheres batiam com testos e panelas, cantando:
Orvalhadas, orvalhadas / E viva o rancho das mulheres casadas
E repenica, repenica, repenica/O S. João a mijar em bica
Era assim o S. João daquele tempo...”
 
Nessa noite, a Mariana sentiu uma vontade enorme de ir na rusga da rua, como fazia com as irmãs, quando morava no Carvalhido, mas com aquela barriga, nem pensar.        
A 20 de Setembro de 1948, Mariana deu à luz na Maternidade de Júlio Dinis, um menino robusto e perfeito, para alegria e alívio do pai Maciel. Tinha dado um neto à sua mãe, a Clara era avó aos 66 anos. O rapaz foi registado na Freguesia de Cedofeita com o nome de Marcelo de Sousa Meneses de Castro, Filho de Maciel Meneses de Castro e de Mariana da Silva Sousa. Foi uma alegria, embora a vida ainda não estivesse estabilizada para isso, mas como a avó Clara dizia: “Antes de tirar a sopa, chega sempre para mais um”.
Havia uma vizinha, a dona Palmira, senhora de 32 anos que vivia mesmo defronte com uma filha, a Filomena de dez anos, que estudava no colégio Liverpool na rua da Torrinha. A Palmirinha era uma senhora “fina”, solteira e resguardada pelo pai da filha, um homem da classe alta e chefe dos escritórios da CUF. Senhora de boa índole e sempre pronta a colaborar com os vizinhos. Como gostava muito do casal e da criança agora nascida, resolveu ajudá-los como podia, oferecendo roupas para a caminha do bebé, etc., e assim nasceu uma grande amizade que havia de durar pela vida fora.
Pelo S. João de 49 a Mariana ficou de novo grávida e em Fevereiro do 1950, no dia 1, nasceu o segundo rapaz, que se veio a chamar Alberto de Sousa Meneses de Castro. A vida não corria de feição, mas sobreviviam como podiam até ao dia em que a Mariana adoeceu com uma inflamação do peritónio, tendo que ser operada de urgência no Hospital de Santo António, a intervenção cirúrgica complicou-se e a Mariana entrou em coma, vindo a falecer de uma Peritonite aguda, no dia 1 de Setembro de 1950. Tinha apenas vinte anos e Maciel em pranto, dizia que foi um roubo de Deus. Foi a catástrofe total para ele, viúvo com dois filhos e a mãe com quase 70 anos.
 

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