CHÁVENA COM HISTÓRIA
CAPÍTULO 9
PORTO
Maciel, só muitos anos depois, soube que teve uma irmã. Por agora
e apesar da sua condição, era disputado pelas raparigas de lá da rua da Flora.
Tinha um certo encanto na forma de falar, além de ser uma figura de homem
bonito. Com o timbre de voz que possuía, em 1946 foi escolhido por um anúncio
do Portuense Rádio Clube, quando procuravam gente para fazer pequenos papéis
para o chamado, teatro radiofónico que foi o antecessor das novelas de hoje.
Conheceu nessa altura: Mena Matos, João Manuel, Fernando Gonçalves e outras
vozes da rádio. Como ganhava pouco e não era sempre, Maciel arranjou emprego
numa oficina da rua de Mártires da Liberdade, mesmo defronte à rua dos Bragas.
Seu trabalho consistia em forrar a veludo ou cetim caixas de jóias, fazia aplicações
de motivos de prata em estojos diversos, envernizava caixas de costura, montava
porta-retratos, e muitos outros artigos em madeira, decorava ainda álbuns de
fotografias com aplicações em prata. Como era da confiança do patrão, este
mandava-o muitas vezes à Contrastaria na Av. Rodrigues de Freitas, para ser
aplicado o punção do contrate nas peças de prata, que levava numa pequena saca
pendurada ao pescoço por dentro da camisa. Pertencia na época ao sindicato dos
ourives e no dia de Santo Elói tinha sempre feriado. Não ganhava muito, mas
finalmente tinha um ordenado semanal, que depois de pagar ao Sr. João do tasco
onde almoçava, por dois escudos diários, dava para entregar o restante em casa,
para ajudar a mãe nas despesas e não se sentir um inútil.
Foi por esta altura, que se mudou para a rua da Flora, mais
propriamente para a “ilha do Mesquita”, vinda do Carvalhido, fugida aos
maus-tratos que o marido lhe dava, a Maria Inês, conhecida por “Miquinhas”, com
as suas três filhas. A Zeza de 19 anos e a mais nova, a Lina de 14. A Mariana,
que era a filha do meio, tinha quase 16 anos, trabalhava como gaspeadeira de
malas na rua de Alferes de Malheiro. Em pouco tempo se tornou uma das raparigas
mais bonitas da rua. Dizia quem a conheceu: «A Mariana era uma carinha de riso,
era mesmo um encanto vê-la de caneco da água à cabeça subindo a rua, sempre com
um sorriso nos lábios e uma palavra de agrado para toda a gente».
Mariana encontrava-se com Maciel todos os dias a caminho do
trabalho, desciam a Lapa e no Campo da Republica, cada um tomava a sua
direcção. Muitas vezes ficavam a conversar no banco do jardim e em pouco tempo
se enfeitiçaram de amores, Ela, pelos seus galanteios, pela sua firmeza e
convicções. Ele, pela sua beleza e nobreza de carácter. Começaram a namorar em
segredo, com bilhetinhos às escondidas e encontros furtivos. Ele tinha 23 e
ela, 16 anos.
O Maciel na oficina onde trabalhava e como era bom em contas e a
escrever, pois fora dos melhores alunos em caligrafia, o patrão mudou-o de lugar
e pô-lo no escritório. Passou a ser empregado de escritório com toda a
responsabilidade na escrita. O cargo era melhor remunerado e mais a seu gosto.
Maciel andava feliz, agora vestia fato e gravata de acordo com a sua posição,
mas... duas coisas o traziam preocupado. A primeira, era a certeza absoluta que
o amor que Mariana lhe tinha, não queria a pena dela, mas amor verdadeiro,
queria que fosse o suficiente para nunca se arrepender, de casar com um homem
diminuído fisicamente como ele, tanto, que chegou a fazer que tropeçava de
propósito em plena rua, só para ver a reacção dela. Felizmente foi a melhor,
ajudando-o com firmeza, sem se importar com o que ouvia das pessoas que
paravam, como: “coitadinho do aleijado”, insurgindo-se mesmo, não consentindo que
o tratassem assim. A segunda coisa, que trazia Maciel preocupado, era saber se
em caso de descendência, seus filhos teriam a mesma doença que o tinha afectado
a ele. Para isso, consultou o velho Dr. Gomes de Araújo, que lhe tirou todas as
dúvidas, afirmando que a poliomielite, não é uma doença transmissível nem
hereditária. Desfeitas estas preocupações, tratou de pedir à Senhora
“Miquinhas” autorização para namorar a Mariana. Depois de ela fazer 17 anos em
Agosto, casaram em 7 de Dezembro de 1947, na Igreja de Cedofeita, tendo como
padrinhos o Sr. Lopes e a esposa, vizinhos lá da rua. Foi uma cerimónia modesta
só com a família de ambas as partes, onde nem mesmo o sogro faltou. Afastado da
família o Sr. Sousa, apresentou-se no casamento da sua Mariana, para lhe dar um
envelope com cem escudos e uma bonita caneca em vidro para o vinho. O Sr.
Sousa, era “Carrejão” de profissão e tinha poiso na Estação de Campanhã.
«“Carrejão”
era o nome que se dava aos homens, ou moços de fretes, que carregavam coisas
diversas às costas. Nas cidades, estavam normalmente junto às estações de
caminho-de-ferro, ou de camionagem. Nas aldeias, carregavam com um burro e eram
chamados de “Almocreves”. Os “Carrejões” pertenciam ao mesmo sindicato dos
estivadores e carregadores. Usavam muitas vezes um saco se serapilheira na
cabeça que lhes descia pelas costas e umas cordas com que prendiam a
carga».
Assim, com o ordenado dele e da Mariana, mais o que a mãe ganhava
na padaria, dava para viverem os três sem grandes “folestrias”. Ocuparam o
quarto do Maciel e tudo correu na normalidade, até Mariana ficar grávida,
deixando o emprego de maleira para ajudar a Clara com a venda do pão.
Pelo S. João, Mariana estava de seis meses, naquele ano ficou
sentada à porta de casa com o Maciel, vendo a festa lá na rua. Enquanto a
Clara, andava atenta à fogueira na rua, onde à meia-noite e como mandava a
tradição, se fazia o café e torrava o pão com manteiga para todos.
“Com
tradições muito antigas o S. João da Lapa, que ficou na história com a célebre
quadra:
Eu fui ao S. João a Lapa / E da Lapa
fui ao Bonfim
Estava tudo embandeirado / Com
bandeiras de cetim.
Era dos
mais populares da cidade e nesse dia de Junho, as ruas do bairro ficavam
engalanadas com ramalhos que faziam arco, presos com uma arame a meio, um balão
feito de papel de seda, era iluminado com velas. Depois um festão colorido
ligava os vários arcos de uma ponta a outra da rua.
Durante
dias, andavam os homens com rebanhos de carneiros para vender. Ali mesmo na rua,
depois de tosquiados á tesoura e a lã amarrada, os homens matavam e esfolavam
os carneiros. Na véspera de S. João, preparava-se a assadeira para levar ao
forno da padaria. O anho era temperando com azeite e colorau e sentia-se no ar
um cheiro bom a loureiro e alhos, coentros e alecrim. Os miúdos faziam as
cascatas nos passeios, com musgo, pedrinhas e um pratinho para as moedas. Havia
sempre o altar dos três santos populares, depois, pediam assim aos que
passavam:
— Meu
senhor, dê-me um tostãozinho para o S. João...
Mulheres vendiam vasos de manjerico, com
quadras de S. João impressas em papel colorido e coladas em arames finos como
se fossem bandeirinhas, vendiam também alho-porro e a erva-cidreira. Nas lojas,
vendiam-se os pirilampos e os balões feitos de papel, para serem lançados ao ar
com uma mexa embebida em petróleo depois de bem abertos á custa de abanadores
que insuflavam o ar. Eram os característicos balões de S. João e não havia rua
que não lançasse um, eram como estrelas luzidias que pairavam no ar, naquela
noite de 23 para 24 de Junho.
As fogueiras pela rua abaixo crepitavam
e faziam curiosos bailados de sombras nas paredes. Casais de namorados
saltavam-nas com cuidado para não se queimarem nem entornar a cafeteira do
café, ou a grelha das sardinhas que assavam no fogo. Dizia-se naquele tempo,
que quem saltasse a fogueira na noite de S. João, em número impar de saltos e
no mínimo três vezes, fica por todo o ano protegido de todos os males.
As Rusgas passavam rua abaixo com
alegria, ranchos de gente dançando e festejando o S. João. Vinham doutros
bairros e os homens traziam ramalhos e balões, tocavam bombo, concertina, viola
e ferrinhos e as mulheres batiam com testos e panelas, cantando:
Orvalhadas, orvalhadas / E viva o rancho
das mulheres casadas
E repenica, repenica, repenica/O S. João
a mijar em bica
Era
assim o S. João daquele tempo...”
Nessa noite, a Mariana sentiu uma vontade enorme de ir na rusga da
rua, como fazia com as irmãs, quando morava no Carvalhido, mas com aquela
barriga, nem pensar.
A 20 de Setembro de 1948, Mariana deu à luz na Maternidade de
Júlio Dinis, um menino robusto e perfeito, para alegria e alívio do pai Maciel.
Tinha dado um neto à sua mãe, a Clara era avó aos 66 anos. O rapaz foi
registado na Freguesia de Cedofeita com o nome de Marcelo de Sousa Meneses de
Castro, Filho de Maciel Meneses de Castro e de Mariana da Silva Sousa. Foi uma
alegria, embora a vida ainda não estivesse estabilizada para isso, mas como a
avó Clara dizia: “Antes de tirar a sopa, chega sempre para mais um”.
Havia uma vizinha, a dona Palmira, senhora de 32 anos que vivia
mesmo defronte com uma filha, a Filomena de dez anos, que estudava no colégio
Liverpool na rua da Torrinha. A Palmirinha era uma senhora “fina”, solteira e
resguardada pelo pai da filha, um homem da classe alta e chefe dos escritórios
da CUF. Senhora de boa índole e sempre pronta a colaborar com os vizinhos. Como
gostava muito do casal e da criança agora nascida, resolveu ajudá-los como
podia, oferecendo roupas para a caminha do bebé, etc., e assim nasceu uma
grande amizade que havia de durar pela vida fora.
Pelo S. João de 49 a Mariana ficou de novo grávida e em Fevereiro
do 1950, no dia 1, nasceu o segundo rapaz, que se veio a chamar Alberto de
Sousa Meneses de Castro. A vida não corria de feição, mas sobreviviam como
podiam até ao dia em que a Mariana adoeceu com uma inflamação do peritónio,
tendo que ser operada de urgência no Hospital de Santo António, a intervenção
cirúrgica complicou-se e a Mariana entrou em coma, vindo a falecer de uma
Peritonite aguda, no dia 1 de Setembro de 1950. Tinha apenas vinte anos e
Maciel em pranto, dizia que foi um roubo de Deus. Foi a catástrofe total para
ele, viúvo com dois filhos e a mãe com quase 70 anos.
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