quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTOS E OUTROS

 





O QUIM MANQUINHO
(Prémio “27 Anos do 25 Abril”, JN / 2001)
 
 
Ao Joaquim Martins (Relojoeiro)
 
 
Prudente como sempre, o Quim Manquinho só no dia 27 de Abril depois de jantar, mancando com o seu pé boto, entrou no café onde há muitos anos nos juntávamos noite após noite. Sentou-se e depois de pedir o pingo do costume, pousou na mesa o manifesto do PCP e disse:
— Pronto meus amigos, já perdemos muito tempo vamos tratar da nossa vida! E logo ali foi pondo as suas ideias em prática — Tu Deolindo estás no sector dos metalúrgicos, trata de fazeres uma reunião na oficina com os teus camaradas, é preciso fazer um caderno reivindicativo, acabou a mama dos patrões. Temos agora que conseguir um mês de férias e subsídio igual, como á muito tempo já há lá fora. E falando para o Lino:
— Agora podes por em prática tudo quanto temos conversado sobre as justas reivindicações dos pintores de automóveis, a lista é enorme, desde a obrigatoriedade de beber leite para desintoxicar até ás máscaras, passando pelo aumento de salários. Acabou o medo, trata de promoveres forma de te elegerem delegado sindical. Escreve para França e diz ao teu primo Zeca que vai poder voltar de vez.  
— E tu Silva? Já podes organizar a tal Associação de Moradores, não dês descanso ao senhorio, esse latifundiário que tem uma fortuna em terrenos no Douro por cultivar. Organizem-se e obriguem-no a fazer obras naquelas espeluncas. Nunca esqueças que o teu pai morreu ali naquela humidade, num quarto onde as paredes reviam água... A “ilha” não tem saneamento, falta água potável e os candeeiros a petróleo já não são solução nos tempos que correm, é preciso meter a electricidade!
O Quim estava eufórico, tinha passado finalmente aquele tempo medonho, o momento era de alegria e como dizia, também de “limpeza”:
— Temos que acabar com essa corja de pides e bufos! Recordo bem em que termos se dirigiu ao emgraixador do café:
— Ouça lá seu grande bufo, não tem remorsos de tantos amigos nossos que meteu no “Casarão do Heroísmo”, como o Zé barbeiro que lá morreu? Abandone este local e não apareça mais aqui seu fascista de merda.
A liberdade tinha chegado, acabaram as idas ao WC do café para ler o Avante, depois deixá-lo dobrado em oito e preso com elástico por debaixo da sanita. Já não teríamos que nos esconder debaixo daquele camião ali em Visconde Setúbal, quando o Peugeot da “Judite” passou ás duas da madrugada, naquela noite em que distribuíamos panfletos pelas portas, para eleições de 1969. Eu tinha vindo de fim-de-semana da tropa, e estava mobilizado para Angola. Como me recordo bem o abraço de despedida que o Quim me deu quando parti para lá do mar... Mais tarde, muito mais tarde escrevi:
         
          Quando parti com o vento
          Nessa guerra sem verdade
          Se demorava mais tempo
          Eu morria de saudade.
        
       Já lá vão 27 anos! Viva o 25 de Abril
 

Sem comentários:

Enviar um comentário

ENQUANTO ME LEMBRO...