terça-feira, 27 de outubro de 2020

CHÁVENA COM HISTÓRIA





CAPÍTULO 14




Epílogo da História
 
 
Era uma manhã fria de Fevereiro, Maciel desceu a rua Mousinho da Silveira de casacão, cachecol e boné, à procura da casa “Meireles”. Encontrou o nome numa tabuleta esmaltada corroída pela ferrugem própria de muitos anos ao tempo e dizia em caracteres góticos: “Meireles Antiquário” Compra e venda de ouro, quadros, porcelanas e mobiliário de estilo”, por baixo, em letras mais pequenas: Estabelecimento desde: 1936.
Marcelo entrou, olhando com admiração todas aquelas obras de arte espalhadas ao acaso. Uma distinta senhora que aparentava ter mais de quarenta anos veio ter com ele e perguntou:
 — Bom dia! Em que posso ajudá-lo? Marcelo tirou o boné e cumprimentando a senhora, respondeu:
— Bom dia minha senhora, Gostava de saber o valor de algumas peças de porcelana que tenciono vender. E tirando as fotos do bolso, entregou à senhora. Para isso, trago algumas fotos para que possa fazer uma avaliação prévia. Ao que a senhora respondeu:
— Como pode imaginar, é muito difícil fazer uma avaliação perfeita por estas fotos, o senhor...
— Marcelo Castro. Disse com uma pequena vénia. Ao que a senhora correspondeu estendendo a mão:
— Eunice Meireles. E continuou: — Como lhe dizia senhor Castro, é necessário saber a origem, o seu estado de conservação e os anos de antiguidade, etc., para poder fazer uma apreciação mais correcta. Mas o senhor quer vender?  
— Perfeitamente, são peças que estão na família há alguns anos, mas... com a crise que atravessamos vejo-me, infelizmente, na contingência de as vender por necessidade. Trago aqui uma das peças que pode avaliar com mais exactidão. Marcelo tirou do bolso o embrulho de papel de seda e mostrou a Eunice, dizendo:
— Por exemplo, esta chávena tem pelo menos, 100 anos! 
Eunice segurou a chávena com delicadeza, e um sobressalto percorreu-lho o corpo como um tremor, pousou-a na mesinha que tinha ao lado, segurando-se ao balcão com um ar pálido e respiração ofegante. Marcelo acudiu-a prontamente, ajudando-a a sentar num cadeirão que havia ao pé.
— Sente-se mal minha senhora!? Ao que Eunice respondeu:
— Já passou! Obrigada... É que esta peça se é o que eu penso, trata-se de uma chávena que tem uma longa história para contar.
Marcelo ser compreender, ainda disse:
— História, mas como? Que história? Eunice apenas lhe perguntou:
— Diga-me senhor Marcelo Castro, como veio esta chávena parar à sua mão? Marcelo, ainda sem compreender o que se passava, respondeu:
— Trata-se de uma recordação de família, tem passado de geração em geração.
Eunice, levantou-se já recomposta do susto, dirigiu-se às portas do estabelecimento, fechou-as e virou um pequeno cartão que estava preso ao vidro por uma ventosa e que dizia “fechado”. Em seguida dirigindo-se a Marcelo:
— Espero que não tenha muita pressa, gostava de lhe contar a história desta chávena, mas primeiro, gostava que o senhor me contasse, que recordação de família é essa que me fala? 
Marcelo com toda a sinceridade, respondeu:
— Posso contar-lhe o que sei, o que ouvi de meu pai e de minha avó, mas diga-me a senhora: Como sabe que é essa a chávena, que como diz, tem uma história para contar?
Eunice, convidando Marcelo a segui-la, subiu a um pequeno escadote e retirou uma caixa de madeira que entregou a Marcelo. — Por favor, pouse em cima da mesa.
Depois de descer, passou um pano de flanela para limpar o pó e abriu-a.
— Vê este estojo? Está incompleto, falta precisamente a sua chávena. Repare como são iguais à sua. Repare também por baixo, no logótipo da fábrica alemã de porcelanas Heinrich, e têm a marca “Germânia”.
— É verdade, são iguais, mas... este estojo...
— Foi uma prenda que meus avós receberam em 1906, quando se casaram e como o senhor mesmo disse, têm mais de 100 anos. Faz, para ser mais precisa, no dia 15 de Agosto 103 anos.
— Sim, mas... como é que minha avó tinha esta chávena com ela?
— Isso é uma das histórias que as chávenas nos podem contar, para já vou contar-lhe o que se passou com elas até 1922, data em que “a sua chávena”, desapareceu deste estojo. Sente-se e ouça...
Eunice descreveu, tal como sua mãe lhe contou, toda a história daquele estojo, até à altura do desaparecimento da chávena. No final, mostrou a Marcelo os pires com os nomes da família Medeiros:  
— Como lhe disse, cá está a primeira: José, o meu avô; A segunda: Amélia, a minha avó; A terceira: Cecília, a minha tia mais velha: A quarta: Leonor, minta tia do meio; A quinta: Noémia, a minha mãe. A sexta como o senhor Castro vê, não tem nome.
— Então pelo que me diz, esta chávena saiu do estojo depois de sua avó falecer?
— Exactamente, logo depois de minha mãe nascer em 1921.
— A mãe da senhora faleceu há muito? É que só ela nos podia desvendar este mistério.
— Minha mãe faleceu há sete anos com 81 anos de idade. Mas contou-me todo que sabia sobre este estojo, até mesmo um certo segredo de família que veio a lume muitos anos depois, quando fomos visitados por um velhinho, antigo motorista de meu avô, um tal Macedo Reis.
— E esse segredo tem a ver com o resto da história que estamos a falar?
— Tem, mas... gostava de ouvir primeiro o Marcelo, desculpe de chamá-lo assim, contar agora a sua parte da história, para fazermos depois uma associação com o resto. Quer-me contar o que sabe?
— Com certeza Eunice, vamos lá... Eunice, pressentindo que o que ia ouvir, iria coincidir com tudo que já sabia, convidou:
— Que tal irmos almoçar? Tenho muito gosto em convidá-lo! Estão sendo horas e eu costumo almoçar aqui perto num restaurante muito acolhedor. Lá enquanto almoçamos, pode-me contar tudo com calma, aceita?
— Pois sim, deixe-me só ligar para casa, a dizer que não vou almoçar. Marcelo avisou a esposa Matide que não ia almoçar.
Eunice pôs o casaco, fechou a porta à chave e desceram os dois a rua a caminho do “Solar do Mouzinho”. O restaurante era de facto acolhedor, sentaram-se, escolheram com a ajuda e a sugestão de Eunice, depois de fazerem o pedido continuaram.
— Então conte lá Marcelo. Sua avó...
— Minha avó era natural de Amarante... E continuou contando todos os factos passados, claro está, sem saber do essencial, ou seja, como a Clara tinha recebido aquela celebre chávena, mas... a Eunice completou a história que soube pelo velho motorista o Macedo, que tinha até deixado a sua mãe o seu testemunho em atestado.
— Pois foi Marcelo, meu avô trouxe a sua avó de Guimarães para o Porto em 1922, grávida do seu pai, que agora sei se chamar Maciel. Está a ver como tudo se encaixa?
— Então... Isso quer dizer que somos primos!
— Exactamente, seu pai era meu tio e minha mãe sua tia, irmã de seu pai.
— Veja lá “prima” Eunice como as coisas são. Eu só queria tentar fazer algum dinheiro, pois estou a passar por uma situação bem difícil, desempregado há quatro anos e não é agora, com quase sessenta e um, que vou arranjar trabalho, ainda por cima, não tenho idade para ser reformado com estas novas leis... Mas valeu a pena, ganhei uma prima.     
— É a vida com as suas esquinas do tempo! Mas quanto à situação que atravessa, compreendo mas... não se preocupe, posso ajudá-lo, afinal somos primos! Não tenho muito, apenas a casa onde vivo e o estabelecimento que era de meu avô paterno e meu pai me deixou. Minhas tias já não são vivas. A tia Cecília não teve filhos, apenas “temos” três primos em Vila do Conde, filhos da nossa tia Leonor. O Francisco que está aposentado da Caixa Geral de Depósitos, o Fernando que é vereador na câmara e a Anabela que é advogada e mais ao menos da minha idade. Todos têm filhos mas a prole do primo Marcelo parece ser maior, já com um bisneto? Aliás, meu priminho em terceiro grau.
— È verdade que casei muito cedo, tive mais tempo, são três filhos, seis netos e um bisneto, só é pena, como lhe disse atrás, que os filhos não tenham tido muita sorte.
 
 

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