Tinham
passado duas semanas, desde o funeral que Helga não voltara àquele apartamento.
O porteiro logo que a viu entrar no prédio, deu-lhe as condolências:
–
Perdoe-me de não ter ido ao funeral, nunca posso deixar esta portaria. Aceite
os meus pesamos menina Helga. Não sabe como lamento imenso o triste
desaparecimento do pai da menina, era um homem bom e muito generoso. Agora
acabaram as suas preocupações em vir cá todos os dias e a menina era-lhe tão
dedicada...
Todos
no prédio estavam convencidos que Maciel era seu pai (tinha mais vinte anos que
ela!), desde a vizinha defronte, ao casal Pascoal do rés-do-chão, porteiros do
prédio.
Helga
subiu no elevador até ao quinto e último andar, meteu a chave à porta. Ele
tinha-a dado já há muitos anos, desde que enviuvara de sua mãe e se refugiara
naquele estúdio longe do mundo (como dizia), para fazer o que mais gostava na
vida: Pintar, escrever e amar.
As
persianas estavam corridas, abriu-as, e o sol da manhã invadiu aquele que tinha
sido o seu paraíso de amor. Uma sala enorme cheia de quadros, alguns no chão
por acabar e no cavalete, um de pequenas dimensões mas que era o seu preferido,
“O Anjo Vermelho”: Uma mulher em posição fetal (ela sabia, que era ela), de
vestido vermelho e asas da mesma cor.
Junto
à janela na mesa de trabalho, o computador, a impressora, livros, os óculos e a
sua caneta Waterman, pousados num caderno de papel pautado. Uma lata de lápis,
canetas e esferográfica. O cinzeiro onde repousava o cachimbo e na base do
candeeiro um monte de clipes. No cadeirão, uma almofada e a manta que punha nos
joelhos, quando escrevia noite fora. Ao lado e junto ao cavalete, uma mesinha
mais pequena com pincéis, espátulas, bisnagas de guaches e óleos de cores
diversas e ainda a paleta, onde misturava as cores da sua imaginação.
No
resto da sala, além de estantes cheias de livros e CD’s, cassetes de vídeo e
DVD’s, havia também um velho sofá de couro, uma mesinha coberta de revistas,
uma mesa de chá carregada de copos e garrafas com diferentes bebidas. Num
canto, uma velha salamandra e noutro, um divã coberto com uma colcha amarelo-torrado,
quase ocre.
Além
das confortáveis, casa de banho e cozinha, havia ainda um quarto de dormir,
totalmente mobilado mas que raramente era usado. As fotos de ambos estavam por
toda a casa, verdadeiras testemunhas daquele amor de tantos anos, feito de
loucura e muita perdição. Havia uma cómoda onde num dos gavetões, repousavam as
roupas íntimas dela, lingerie de seda de cores pastel, as preferidas do Maciel
que tinha um enorme fetiche por essas peças femininas. Ela sempre comprava
lingerie nova para seu prazer, mas sabia o fascínio que exercia nele ao vê-la
vestida com essas peças glamourosas, quando passeava os dedos pelo seu corpo,
sentindo as texturas lisas e sedosas como se fosse a sua segunda pele e o
prazer imenso que sentia em possui-la assim vestida.
Noutro
gavetão com roupas dele, havia um álbum com muitas fotos do seu tempo de menina
junto com a mãe. É verdade... Dividiu com Maciel uma vida de muito anos, quase
dezassete… Sempre o amou apesar da diferença de idades, tinha por ele amor e um
encanto deslumbrante que seu marido não lhe causava. Viveu sempre com o medo de
um dia o seu segredo ser descoberto, embora tudo fizesse para que a discrição
imperasse no seu relacionamento extraconjugal. Morava no sentido oposto da
cidade e era muito raro passar por ali com a família, mas todo o cuidado era
pouco. Agora... Tudo acabou.
Era
filha única, o marido e o filho sabiam que sua mãe jazia num gavetão perpétuo
no cemitério de Lordelo desde 1973, morreu com 39 anos, enquanto de seu pai,
nem o nome tinha, no seu BI apenas se lia: Filha de pai incógnito. Esta era
versão familiar e a politicamente correcta. Assim, quando o seu filho perguntava
pelos avós, era sempre aquela prova oficializada pelo arquivo distrital que
prevalecia.
Maciel
era o avô de seu filho e sogro do seu marido, apenas por ter casado com sua
mãe. A versão inventada, é que tinha desaparecido para parte incerta, no
turbilhão da revolução de Abril, levado por ideologias de extrema-esquerda. Ao
contrário da maioria de esquerda que voltou do exílio com o fim da ditadura,
Maciel fez o percurso ao contrário apenas por amor. Era dado como verdade, que
viajara para um país da América do Sul e por lá ficara como professor
universitário e ideólogo político. “Um profeta pronto a pregar direito, por
linhas de esquerda”, como dizia num dos seus livros.
Como
tudo que escrevia ou pintava assinava com pseudónimo, era muito restrito o
leque de pessoas que o ligavam a Maciel Canavarro. Mesmo no prédio onde
residia, era conhecido pelo senhor: Osmar Wilson. Por isso o casal Pascoal,
assim como os restantes vizinhos, ficaram escandalizados ao verem que nem o
anúncio do seu funeral, vinha na página de necrologia da Gazeta do Porto. — Uma
figura tão importante e nem veio no jornal, francamente! — Comentou a madame
Pascoal
A
Helga Ramalho era uma competente bióloga e investigadora no Instituto Molecular
da Universidade do Porto. Ali, coordenava cientificamente um projecto sobre
águas residuais e tinha que visitar frequentemente diversas ETAR’s da região
norte, o que lhe dava uma certa mobilidade, no espaço e no tempo que sempre
arranjava para estar com Maciel.
Ele
tinha levado por opção própria, uma vida de eremita, era muito raro sair de
casa (nunca esteve presente no lançamento dos seus livros, para desespero de
Tomé Ferrão, seu amigo pessoal escritor/editor, que sempre tinha que inventar
desculpas pelas suas ausências), apenas ia esporadicamente à tabacaria da
esquina, quando não tinha tabaco ou para comprar o jornal, quando Helga não o
trazia a horas de se informar sobre o mundo. De resto, ela tudo lhe levava,
desde a fruta ao pão, da pasta dos dentes ao gel de banho, de guardanapos ao
papel higiénico. O porteiro trazia-lha a correspondência e levava-lhe alguma
para pôr no correio. Ultimamente, muitas das coisas que precisava para pintar
ou escrever, como telas, tintas ou livros, ganhou o hábito de comprar pela
Internet. Também toda a correspondência que trocava com a SPA (Sociedade
Portuguesa de Autores), era feita através de emails e os seus royalties pagos
por transferência bancária. Deixava para a Helga, toda a burocracia da sua
conta bancária e demais pagamentos de primeira necessidade. Até o seu médico,
amigo de infância, dos seus tempos de liceu, ia lá a casa para fazer exames de
rotina (o que acontecia regularmente de seis em seis meses), passando pelo
barbeiro, que todas as primeiras sextas-feiras do mês, lhe aparavam o cabelo e
lhe acertava a barba. Era um perfeito eremita do século XX, rodeado de toda a
tecnologia moderna, desde o DVD ao microondas, do Hi-Fi à máquina de café
expresso, passando pelo computador, impressora, fax e o seu inseparável
telemóvel. Mas o seu mundo era os
livros, os filmes, os quadros, a poesia e as letras que escrevia para fado, mas
principalmente o corpo de Helga, a sua ternura e o seu encanto. Para mais nada
tinha vontade de viver. Tinha os olhos dela como o Sol que guiava a sua vida e
do umbigo à sua pélvis como o centro do universo, assim como seus braços eram
um perfeito paraíso naquela autoclausura.
Helga desfez a cama para apanhar ar e pôs toda a
roupa para lavar na máquina. Lavou também toda a louça que se juntara em cima
da banca. Tinha tirado aquele dia para arrumar e limpar todo o apartamento,
teria que voltar com caixas para empacotar os livros. Era desejo de Maciel,
distribuir a maior parte da sua biblioteca, por lares da terceira idade. Embora
uma parte, rigorosamente escolhida e que constava de uma pequena lista, iria
engrossar a já fabulosa biblioteca da Casa Museu José Ferreira. Quanto aos
filmes em cassetes de vídeo e DVD, assim como todos os seu CD’s de música e
principalmente, aqueles onde diversos fadistas, tinham dado voz às suas
palavras, seriam doados a uma Associação Cultural, que Maciel tinha ajudado a
fundar à muitos anos atrás para os lados de Aldoar e cujo à entrada do salão
Nobre, ostentava gravado em caracteres dourados numa pedra mármore sob a porta:
“Sala – Maciel Canavarro”.
Helga, lembrou aquele dia fatídico em que o encontrou
caído e quase sem respirar, depois foi o 112, o hospital, o pânico e o fim. Uma
síncope, que segundo o médico, provocado por uma insuficiência cardíaca
congestiva e da entrada em taquicardia não acudida a tempo, provocado talvez
por excesso de cafeína ou tabaco, mas principalmente por stress emocional.
Alguma má noticia, por exemplo. O que quer que fosse levou à morte de Maciel e
ao fim prematuro de um escritor, dum amante maravilhoso, de um ser humano de
excepção. Helga recordou algo que Maciel escreveu há muito tempo atrás:
Há
palavras por nascer / No meio do labirinto / Dos poemas que te fiz.
Saudade,
eu sei dizer / Mas não define o que sinto / Quando me sinto infeliz.
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