quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTOS E OUTROS


 

 


O ALBERTINO
 
 
 
Aos que comigo viveram esses tempos


 
   O Pessoal era muito pouco naquela zona de guerra, resumia-se a um Plutão de 30 homens, por tal, tinha-mos que fazer “serviços” dia-sim-dia-não. Um dos piores, era o de plantão ou guarda à pista da base militar, vedado por arame farpado e com quatro peças de artilharia anti-aérea de 40 milímetros, estrategicamente colocadas em volta. Eram vinte e quatro horas, das oito da manhã até ao dia seguinte à mesma hora.   
   Como éramos sempre dois em cada posto, que se revezavam de duas em duas horas, durante o dia conversava-se, sobre tudo que nos vinha à cabeça (isto se o par fosse de conversas), senão, lia-se enquanto o outro estava de sentinela. À noite era bem pior, principalmente quando a noite arrefecia e o cacimbo não nos largava, mas as horas mais difíceis de passar, eram os três turnos entre a meia-noite e as seis da manhã. Nestas horas da madrugada, a atenção era redobrada e estava-se completamente só naquela escuridão, sentado no caixote dos cunhetes, encostado ao casebre de madeira onde o colega dormia, com o cigarro na concha da mão para não se ver ao longe o lume, tendo a cerca de arame farpado e a sombra fantasmagórica da peça da artilharia por companhia.
   Nessas ocasiões, pensava-se no lar que deixamos para trás, na mulher, nos filhos, nos pais. Depois contava-se os passos do barraco ao arame, do arame ao barraco, olhava-se pela quinquagésima vez o relógio e quantas vezes, se beijava (mesmo os ateus), a cruz que trazíamos ao peito, na esperança que não houvesse um ataque e que a noite passasse depressa.
   Foi numa dessas noites (que por acaso era de natal), quando a ronda passou, o sargento de dia disse a senha correcta quando gritei:
  — Quem vem lá que faça alto – levando a G3 à anca. O sargento vinha acompanhado de um cabo, que só reconheci quando chegaram mais perto, era o Albertino que andava à minha procura, não era do meu pelotão, mas era um amigo que já não via à muito tempo, tinha chegado do Negage no dia anterior para uma consulta no hospital militar. Naquela noite veio do Grafanil (Campo militar próximo de Luanda, para quem estava em transito) e perguntou por mim no Bar do Soldado.
   Dei-lhe um atrapalhado e comovido abraço, o sargento continuou a sua ronda e o meu amigo ficou comigo a conversar em voz baixa. Trazia uma “Cuca” fresca e um pão com queijo, que me soube bem aquela hora.                  
   Trazia novidades da nossa cidade do Porto, (tinha lá estado de licença), da nossa rua e da malta que parava no café. O Zé Camilo tinha morrido na Guiné e o Manel Zé tinha chegado de vez. A Rosa engravidou do Jaime e assim pôs os cornos ao Delfim, que mal chegou de Moçambique abandonou a mulher e partiu para França. Lá na cidade, naquele buraco ao lado da Câmara, estão a fazer o palácio dos Correios e as ilhas da rua do Paraíso foram todas abaixo. Trouxe-me ainda uma carta da minha mulher, onde me dizia que tudo ia bem com os meninos, que tinha muitas saudades, ansiava meu regresso para recomeçarmos a vida interrompida. Dentro do envelope, uma nota de cinquenta escudos e pedia desculpa por ser pouco.
   Eram quase duas da manhã, não foi preciso acordar o meu colega para o próximo turno até ás seis, ele acordou estremunhado e cumprimentou o meu amigo Albertino, também o conhecia, tinham tirado a recruta juntos no GACA 3 em Espinho. Claro que não fui dormir e acabamos por passar os três à conversa até ás oito. O Sol já ia alto quando fomos rendidos. A viagem de Unimog era curta e de volta à caserna, dirigi-me ao gabinete do nosso Plutão, onde estavam sempre o nosso comandante, Alferes Oliveira e o escriturário Vicente. Pedi ao 1º Sargento Amado, um ” toque de ordem” para o resto do dia, tomei um banho e fiz a barba, depois de mudar de farda fui com o Albertino até Luanda, ele estava no Grafanil e só tinha consulta no dia seguinte às nove da manhã.   
    Recordamos coisas e lugares que já eram saudade, desde as sessões no Terço aos jogos de futebol nos Águias da Areosa, até os bailes do Bairro Airoso passando pelo S. João no bairro do Outeiro.
    Falamos muito enquanto comia-mos uns chocos com tinta no Amazonas, demos depois uma volta pela Restinga e para rematar, bebemos dois finos cada um, sempre acompanhados pelos respectivos pratinhos de camarão na cervejaria Portugália (no “puto” só se fosse de tremoços... Dizia o Albertino), bem, com o jornal ABC, um maço AC e café no Biker, lá foi a nota que a minha mulher mandou! Ora...Também era dia de Natal... 
    Despedi-me do amigo Albertino na Mutamba (praça central de Luanda), onde apanhou uma berliet para o Grafanil, voltava no dia seguinte ao fim da tarde para o seu destacamento. Deu-me o SPM dele para lhe escrever e um abraço apertado. Despediu-se com uma frase que não mais me esqueci: “O que importa é estar vivo, porque viver é um prazer, se lhe juntar-mos umas Francesinhas e umas cervejas frescas, então é o máximo.
    Antes de voltar à base ainda passei pela Maianga, onde na cervejaria Mexicana encontrei a Nana (claro que não foi casual, passei de propósito para a ver), sabia que aquela hora ia buscar a filha à escola. Era bom passar algum tempo a falar com ela, era bom ouvir a voz de uma mulher, ainda para mais a Nana que era culta, tinha cor de canela e era muito bonita, natural de S. Tomé e dona de uns olhos verdes lindíssimos (que ficavam azulados junto ao mar). Mas naquele dia tinha que trabalhar, ia fazer a matiné das cinco ao teatro Avenida onde era arrumadora. Despedimo-nos com um beijo (ainda) na face, cheirava a alecrim e estava sempre fresca, apesar do calor que fazia. Eu fiquei a vê-la descer a Serpa Pinto, tinha um andar elegante de manequim.  
   Era a minha madrinha de guerra, tinha-a conhecido num programa dedicado aos soldados, organizado pela emissora católica de Luanda. Coisas que inventavam para passar o tempo. Mas esta tinha sido uma boa invenção...
    Atravessei todo o bairro do Prenda, tinha chuviscado e o cheiro da terra molhada é tão bom! Ainda hoje me lembro desse cheiro bom da terra vermelha de Luanda. Dá-me tantas saudades...                    
    Cheguei à base à hora de jantar, era sexta-feira e o prato era sempre frango assado no churrasco (embora de artilharia, ainda bem que estava adido à Força Aérea, comia-se melhor).
   No bar do soldado tomei café, por acaso não paguei, porque o Seixas me desafiou para uma partida de dominó e perdeu. Compramos bilhetes no balcão do bar (era a vinte e cinco tostões) e fomos os dois ao cinema da base aérea. O filme naquele dia era “A Servidão Humana” com Laurence Harvey e Kim Novak. Gostei muito porque já tinha lido o livro do W. Somerset Maugham, a adaptação ao cinema era muito rigorosa e depois, a relação do Philip com a Mildred fascinava-me, assim como a coincidência do seu gosto pelo desenho.
   Passei dois Natais na tropa e este Natal de 1971 tinha sido mais um, não foi mau de todo, comparado com os resto dos dias passados dentro daquele camuflado, sem saber o que fazia ali e principalmente a defender o quê? De quem? Como dizia o Seixas: “Era diferente se estivesse a defender o meu quintal”. Eram estes momentos que punham em causa o conceito de Pátria. Pátria é a Mãe. Mãe é a nossa terra e... A nossa terra, definitivamente, não era aquela.  
   Voltei a ver o Albertino em Julho de 72 no aeródromo de Ambrizete. Tinha ido de boleia num Barriga-de-ginguba que fazia a entrega do correio e mercadorias. Estive com ele até à volta do avião” que veio do Negage ás cinco da tarde. Bebemos umas “Nocais” pois no bar do aquartelamento não havia cerveja Cuca. Fiquei a saber que a ida do Albertino ao hospital, tinha sido por apanhar um “esquentamento” com uma negrinha, filha de uma lavadeira lá da vila.
   Despedi-me com um forte abraço e recados para a família, eu acabava a comissão em Agosto, estava de embarque marcado para o dia 10, só voltaria a vê-lo na metrópole.
   Mas… Nunca mais o vi... Uma mina numa emboscada, roubou-lhe a vida, soube pelo Faria condutor, que tinha ido ao mato num Unimog com outros camaradas para caçar uma Pakaça, os turras apareceram e foi o fim, com ele foram mais dois. Não podia pensar, que os hélios que levantaram da base há poucos dias (estava eu de serviço), tinham ido em auxílio do Albertino.
   “Lerpei” (em gíria militar), mais quatro meses, à espera de embarque e só parti com o pelotão, a 10 de Novembro num avião da Força Aérea.
   Como ia encarar a família do Albertino não sabia. Mais tarde vi a mãe dele, abraçou-me com muita força, o silêncio guardava a revolta contida contra essa guerra de mentira.
   Mas tudo acabou dois anos depois, a 25 de Abril de 1974, quando o meu Alferes que agora era capitão, junto com outros militares, resolveram repor a verdade, neste país com um império de mentira, amordaçado durante quase cinquenta anos, onde as pessoas eram cinzentas, vivendo no obscurantismo, com um enorme índice de analfabetismo e pobreza. Sobrevivendo no terror da ditadura, calados pela Censura, com medo da PIDE, do campo de concentração do Terrafal, das prisões e dos bufos.  
   Finalmente iam-se rasgar os letreiros nos barbeiros que diziam: “É proibido discutir politica nesta casa”. Iam-se poder ver os filmes, as peças de teatro e ler os livros que eram proibidos como a Coca-Cola.
   Já não era proibido o direito de associação e finalmente acabou a guerra do ultramar, deram-se vivas à liberdade e o 1º de Maio festejou-se com muita alegria. Foi o fim do fascismo e o começo da esperada na democracia. Ficaram estas feridas na memória desse tempo que me roubaram, não só a mim, mas aos meus filhos, à minha mulher, aos meus pais e aos meus amigos. Mas ao Albertino roubaram mais, muito mais, e ele só tinha vinte e dois anos...             

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