CONTOS E OUTROS
O ALBERTINO
Aos que comigo viveram esses
tempos
O Pessoal era muito pouco naquela zona de
guerra, resumia-se a um Plutão de 30 homens, por tal, tinha-mos que fazer
“serviços” dia-sim-dia-não. Um dos piores, era o de plantão ou guarda à
pista da base militar, vedado por arame farpado e com quatro peças de
artilharia anti-aérea de 40 milímetros, estrategicamente colocadas em volta.
Eram vinte e quatro horas, das oito da manhã até ao dia seguinte à mesma hora.
Como éramos sempre dois em cada posto, que
se revezavam de duas em duas horas, durante o dia conversava-se, sobre tudo que
nos vinha à cabeça (isto se o par fosse de conversas), senão, lia-se enquanto o
outro estava de sentinela. À noite era bem pior, principalmente quando a noite
arrefecia e o cacimbo não nos largava, mas as horas mais difíceis de passar,
eram os três turnos entre a meia-noite e as seis da manhã. Nestas horas da
madrugada, a atenção era redobrada e estava-se completamente só naquela
escuridão, sentado no caixote dos cunhetes, encostado ao casebre de madeira
onde o colega dormia, com o cigarro na concha da mão para não se ver ao longe o
lume, tendo a cerca de arame farpado e a sombra fantasmagórica da peça da
artilharia por companhia.
Nessas ocasiões, pensava-se no
lar que deixamos para trás, na mulher, nos filhos, nos pais. Depois contava-se
os passos do barraco ao arame, do arame ao barraco, olhava-se pela
quinquagésima vez o relógio e quantas vezes, se beijava (mesmo os ateus), a
cruz que trazíamos ao peito, na esperança que não houvesse um ataque e que a
noite passasse depressa.
Foi numa dessas noites (que
por acaso era de natal), quando a ronda passou, o sargento de dia disse a senha
correcta quando gritei:
— Quem vem lá que faça alto – levando a G3 à
anca. O sargento vinha acompanhado de um cabo, que só reconheci quando chegaram
mais perto, era o Albertino que andava à minha procura, não era do meu pelotão,
mas era um amigo que já não via à muito tempo, tinha chegado do Negage no dia
anterior para uma consulta no hospital militar. Naquela noite veio do Grafanil
(Campo militar próximo de Luanda, para quem estava em transito) e perguntou por
mim no Bar do Soldado.
Dei-lhe um atrapalhado e
comovido abraço, o sargento continuou a sua ronda e o meu amigo ficou comigo a
conversar em voz baixa. Trazia uma “Cuca” fresca e um pão com queijo, que me
soube bem aquela hora.
Trazia novidades da nossa
cidade do Porto, (tinha lá estado de licença), da nossa rua e da malta que
parava no café. O Zé Camilo tinha morrido na Guiné e o Manel Zé tinha chegado
de vez. A Rosa engravidou do Jaime e assim pôs os cornos ao Delfim, que mal
chegou de Moçambique abandonou a mulher e partiu para França. Lá na cidade,
naquele buraco ao lado da Câmara, estão a fazer o palácio dos Correios e as
ilhas da rua do Paraíso foram todas abaixo. Trouxe-me ainda uma carta da minha
mulher, onde me dizia que tudo ia bem com os meninos, que tinha muitas
saudades, ansiava meu regresso para recomeçarmos a vida interrompida. Dentro do
envelope, uma nota de cinquenta escudos e pedia desculpa por ser pouco.
Eram quase duas da manhã, não
foi preciso acordar o meu colega para o próximo turno até ás seis, ele acordou
estremunhado e cumprimentou o meu amigo Albertino, também o conhecia, tinham
tirado a recruta juntos no GACA 3 em Espinho. Claro que não fui dormir e
acabamos por passar os três à conversa até ás oito. O Sol já ia alto quando
fomos rendidos. A viagem de Unimog era
curta e de volta à caserna, dirigi-me ao gabinete do nosso Plutão, onde estavam
sempre o nosso comandante, Alferes Oliveira e o escriturário Vicente. Pedi ao 1º
Sargento Amado, um ” toque de ordem” para o resto do dia, tomei um banho e fiz
a barba, depois de mudar de farda fui com o Albertino até Luanda, ele estava no
Grafanil e só tinha consulta no dia seguinte às nove da manhã.
Recordamos coisas e lugares
que já eram saudade, desde as sessões no Terço aos jogos de futebol nos Águias
da Areosa, até os bailes do Bairro Airoso passando pelo S. João no bairro do
Outeiro.
Falamos muito enquanto
comia-mos uns chocos com tinta no Amazonas, demos depois uma volta pela
Restinga e para rematar, bebemos dois finos cada um, sempre acompanhados pelos
respectivos pratinhos de camarão na cervejaria Portugália (no “puto” só se
fosse de tremoços... Dizia o Albertino), bem, com o jornal ABC, um maço AC e
café no Biker, lá foi a nota que a minha mulher mandou! Ora...Também era dia de
Natal...
Despedi-me do amigo Albertino
na Mutamba (praça central de Luanda), onde apanhou uma berliet para o Grafanil, voltava no dia seguinte ao fim da tarde para
o seu destacamento. Deu-me o SPM dele para lhe escrever e um abraço apertado.
Despediu-se com uma frase que não mais me esqueci: “O que importa é estar vivo,
porque viver é um prazer, se lhe juntar-mos umas Francesinhas e umas cervejas
frescas, então é o máximo.
Antes de voltar à base ainda
passei pela Maianga, onde na cervejaria Mexicana encontrei a Nana (claro que
não foi casual, passei de propósito para a ver), sabia que aquela hora ia
buscar a filha à escola. Era bom passar algum tempo a falar com ela, era bom
ouvir a voz de uma mulher, ainda para mais a Nana que era culta, tinha cor de
canela e era muito bonita, natural de S. Tomé e dona de uns olhos verdes
lindíssimos (que ficavam azulados junto ao mar). Mas naquele dia tinha que
trabalhar, ia fazer a matiné das cinco ao teatro Avenida onde era arrumadora.
Despedimo-nos com um beijo (ainda) na face, cheirava a alecrim e estava sempre
fresca, apesar do calor que fazia. Eu fiquei a vê-la descer a Serpa Pinto,
tinha um andar elegante de manequim.
Era a minha madrinha de
guerra, tinha-a conhecido num programa dedicado aos soldados, organizado pela
emissora católica de Luanda. Coisas que inventavam para passar o tempo. Mas
esta tinha sido uma boa invenção...
Atravessei todo o bairro do
Prenda, tinha chuviscado e o cheiro da terra molhada é tão bom! Ainda hoje me
lembro desse cheiro bom da terra vermelha de Luanda. Dá-me tantas
saudades...
Cheguei à base à hora de
jantar, era sexta-feira e o prato era sempre frango assado no churrasco (embora
de artilharia, ainda bem que estava adido à Força Aérea, comia-se melhor).
No bar do soldado tomei café,
por acaso não paguei, porque o Seixas me desafiou para uma partida de dominó e
perdeu. Compramos bilhetes no balcão do bar (era a vinte e cinco tostões) e fomos
os dois ao cinema da base aérea. O filme naquele dia era “A Servidão Humana”
com Laurence Harvey e Kim Novak. Gostei muito porque já tinha lido o livro do
W. Somerset Maugham, a adaptação ao cinema era muito rigorosa e depois, a
relação do Philip com a Mildred fascinava-me, assim como a coincidência do seu
gosto pelo desenho.
Passei dois Natais na tropa e
este Natal de 1971 tinha sido mais um, não foi mau de todo, comparado com os
resto dos dias passados dentro daquele camuflado, sem saber o que fazia ali e
principalmente a defender o quê? De quem? Como dizia o Seixas: “Era diferente
se estivesse a defender o meu quintal”. Eram estes momentos que punham em causa
o conceito de Pátria. Pátria é a Mãe. Mãe é a nossa terra e... A nossa terra,
definitivamente, não era aquela.
Voltei a ver o Albertino em Julho de 72 no
aeródromo de Ambrizete. Tinha ido de
boleia num Barriga-de-ginguba que fazia a entrega do correio e
mercadorias. Estive com ele até à volta do avião” que veio do Negage ás cinco
da tarde. Bebemos umas “Nocais” pois no bar do aquartelamento não havia cerveja
Cuca. Fiquei a saber que a ida do Albertino ao hospital, tinha sido por apanhar
um “esquentamento” com uma negrinha, filha de uma lavadeira lá da vila.
Despedi-me com um forte abraço
e recados para a família, eu acabava a comissão em Agosto, estava de embarque
marcado para o dia 10, só voltaria a vê-lo na metrópole.
Mas… Nunca mais o vi... Uma
mina numa emboscada, roubou-lhe a vida, soube pelo Faria condutor, que tinha
ido ao mato num Unimog com outros camaradas para caçar uma Pakaça, os turras
apareceram e foi o fim, com ele foram mais dois. Não podia pensar, que os
hélios que levantaram da base há poucos dias (estava eu de serviço), tinham ido
em auxílio do Albertino.
“Lerpei” (em gíria militar), mais
quatro meses, à espera de embarque e só parti com o pelotão, a 10 de Novembro
num avião da Força Aérea.
Como ia encarar a família do
Albertino não sabia. Mais tarde vi a mãe dele, abraçou-me com muita força, o
silêncio guardava a revolta contida contra essa guerra de mentira.
Mas tudo acabou dois anos
depois, a 25 de Abril de 1974, quando o meu Alferes que agora era capitão,
junto com outros militares, resolveram repor a verdade, neste país com um
império de mentira, amordaçado durante quase cinquenta anos, onde as pessoas
eram cinzentas, vivendo no obscurantismo, com um enorme índice de analfabetismo
e pobreza. Sobrevivendo no terror da ditadura, calados pela Censura, com medo
da PIDE, do campo de concentração do Terrafal, das prisões e dos bufos.
Finalmente iam-se rasgar os
letreiros nos barbeiros que diziam: “É proibido discutir politica nesta casa”.
Iam-se poder ver os filmes, as peças de teatro e ler os livros que eram
proibidos como a Coca-Cola.
Já não era proibido o direito
de associação e finalmente acabou a guerra do ultramar, deram-se vivas à
liberdade e o 1º de Maio festejou-se com muita alegria. Foi o fim do fascismo e
o começo da esperada na democracia. Ficaram estas feridas na memória desse
tempo que me roubaram, não só a mim, mas aos meus filhos, à minha mulher, aos
meus pais e aos meus amigos. Mas ao Albertino roubaram mais, muito mais, e ele
só tinha vinte e dois anos...
Sem comentários:
Enviar um comentário