terça-feira, 20 de outubro de 2020

O ANJO VERMELHO


 


SÉTIMO




 

Andava ansiosa por ver aquela disquete que tinha encontrado, mas queria ler com calma e para isso, tinha que acabar de vez com a limpeza do computador. Depois da palavra-chave, teclou para abrir a pasta “Poemas”. Apenas um poema sem título se encontrava na pasta e dizia assim:
     Quando teu corpo é moldado / No meu de um certo jeito
     É um verbo conjugado / No tempo mais que perfeito
     Perfeito?
     Perfeitos são os teus seios /Onde em gostosos passeios
     Meus dedos andam /Esmagam, apertam
     Ligam teu corpo ao meu
     Com nossas bocas / Ávidas de desejo, loucas
     Colam-se, beijam-se
     Em perfeita comunhão /De prazer, exaltação
     De amor, sequiosas / Esfomeadas gulosas
     Perdidas.
     Então, sem palavras, mudo / No silêncio de tudo
     Em harmonia extrema / Nasce um poema
     Enleiam-se nossos braços / Como finos sargaços
     Que acende, ateia /A chama, o calor
     O gosto, o sabor / O clímax, o orgasmo
     O máximo, o pasmo /O rebentar do dique
     E por fim o clique.
     Depois
     Num delicioso cansaço / Num eterno abraço
     Um cigarro, o fumo /E a volta ao mundo
 
Este original seria só dela, ninguém mais o conheceria, Gravou-o numa disquete, guardou-a no bolso e apagou a pasta.
Restavam apenas duas pastas: “Agenda” e “Correspondência”. A primeira tratava-se de endereços, números de telefone, etc. Como não tinha interesse para ela, depois de dar uma vista d’olhos apagou-a. Na segunda, havia muitas cartas enviadas a diversos escritores amigos, a artistas plásticos e ao editor, resolveu salvar esta correspondência, gravando um CD com todo o conteúdo da pasta. Apagou todo o arquivo, não restavam pastas no computador.
Lembrou-se de um lugar importante e foi até ao “Outlook Express”. Não havia nada no Item “Rascunhos”. Leu então a pasta dos “Recebidos” e entre muitos sem importância para ela, Helga reparou em alguns que lhe chamaram a atenção…
Por data de entrada, Helga foi lendo uma a um:
        
Quinta-feira: 13 de Julho/1991
“Querido Mano
Finalmente resolveste falar comigo. Fiquei muito feliz quando soube que me procuravas. Sempre gostei de ti meu querido irmão e nunca aprovei a tua saída de casa. Já lá vão quarenta anos e mesmo sem saber por onde andavas, nunca perdi a esperança de um dia te encontrar. Como já estou com sessenta e dois anos, vivo ansiosa por te ver, agora mais que nunca. Um beijo”.
 
Sábado: 15 de Julho/1991
“Querido irmão
Quanto á minha prole, depois de me formar em direito, casei com o teu amigo Tobias (que certamente recordas), que entretanto tinha acabado de se formar em gestão. Tive uma filha que casou e deu uma linda neta, a Joana. Está a viver comigo desde que os pais faleceram num desastre de viação. Eu e meu marido tomamos em nossas mãos o destino das empresas de meu genro, expandimos o negócio de confecções e abrimos boutiques em diversas cidades. Foi numa filial do Porto que encontrei a Mariana, trabalhava no balcão e ficou muito admirada por voltar a ser empregada da família Canavarro, o destino tens destas coisas… Perguntei por ti, mas não me soube dizer nada, não te via há muitos anos, mas soube que a vossa menina estava com doze anos na altura. A nossa mãe teria gostado de a conhecer, mas tinha falecido um ano atrás.
Foi uma pena nosso pai não aceitar a vossa relação e por isso, teres abandonado a casa tão novo. A Mariana era boa rapariga, fiquei muito triste com a injustiça de nosso pai, quando a despediu mesmo sabendo que estava grávida. A menina deve ter agora uns quarenta anos. Da Mariana nunca mais soube, desde que se despediu em 1973.
Temos que marcar um encontro, tenho muitas saudades tuas e temos muito para contar um ao outro, depois as nossas idades já não dão para muitas esperas. Vives cá no Porto, ou ainda estás por Coimbra?”
        
Segunda-feira: 18 de Julho/1991
“Maciel
Fiquei muito admirada e com certeza cometi uma inconfidência, nunca imaginei que não tivesses conhecimento que a Mariana tinha uma menina tua.
Perdoa-me meu irmão pelo impacto que a notícia te causou. Dizes que te sentiste muito mal, deve ser a comoção natural ao saberes quem tens uma filha. Consulta o médico, não descores essas coisas do coração. Sempre foste desprendido, mas nunca pensei que não tivesses a curiosidade de saber da “nossa” empregada Mariana, depois do vosso curto namorico, mas que tanta incompreensão e tristeza despoletaram.”
 
Sexta-feira: 20 de Agosto/1991
“ Mano Maciel
Já passou um longo mês desde o meu último e-mail. Que se passa contigo? Tinha a esperança que nos encontrássemos. A tua sobrinha/neta, está ansiosa por te conhecer. A tua saúde como vai? Diz-me algo.”
 
Helga ficou estática, durante muito tempo ficou a digerir todas aquelas novidades. Agora compreendia tudo. Maciel era mesmo seu pai. Tinham vivido inconscientemente um incesto durante todo este tempo. Porque será que sua mãe nunca lhe contou a verdade, mesmo depois de ter casado? Afinal... O tal segredo escondido sempre existia... Longe dela incriminar alguém, mas a sua mãe, porque não lhe disse, se a relação com ela foi sempre tão boa, pensaria que eu não compreenderia? Qual seria a sua intenção? Teria pensado em me contar e a fatalidade da morte não a deixou? E por pensar em morte, seria esta notícia que “matou” o Maciel?
Tantas interrogações, e não havia ninguém para responder, para dar uma explicação.
Um manto negro cobria agora aquele romance, tapando num luto forçado de tristeza, uma vida feita de felicidade aparente, ou não? Ele não sabia, eu muito menos. Que Deus nos perdoe, (mas Ele sabia) e nem um anjo enviou à terra para nos avisar.
A Helga não sabia, que pelas mãos do Maciel, esse anjo vivia numa tela que ela gostava muito, só que nunca tinha compreendido o seu verdadeiro significado até a esse dia, era O ANJO VERMELHO.

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