quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTOS E OUTROS

 




COERÊNCIAS


 
Dedicado a um “Amigo”
 
 
        Em conversa com meu amigo Marcelo, num dia em que notei que ele andava muito em baixo, devido a sérios problemas que afectavam a sua vida, contou-me em jeito de desabafo (afinal, é para isso que servem os amigos), porque andava tão deprimido. Tratavam-se de problemas no trabalho com alguns colegas que o queriam tramar, com inveja de serem ultrapassados por alguém mais competente.
        O Marcelo, embora fizesse parte da empresa à menos tempo que os outros colegas, tinha adquirido em pouco anos, um estatuto especial aos olhos das chefias (o que deixava os colegas irritados), à custa da sua inteligência, visão e capacidade organizativa, assiduidade ao trabalho e coerência. É verdade que ganhava mais a chefiar a secção de informática, mas trabalhava o dobro e assim, produzia o máximo para justificar a sua posição na empresa, era a sua mania de ser coerente. Claro que a trama, vinha dos colegas nas mais variadas formas, desde enganos por negligência, excesso de tempo em trabalhos simples que eram propositadamente complicados e até serviços parados por ausências inventadas.
        Contra todas estas coisas o Marcelo lutava, sem querer entrar em delações ou ferir alguém. Mas tudo isso trazia-o preocupado e ás vezes sem alento para continuar o seu trabalho. Quando se começou a sentir uma quebra de produção na empresa, foi chamado aos chefes para esclarecer o caso, deu uma desculpa plausível e prometeu chamar à atenção da secção para o facto. Quase a desistir, pensou mais uma vez por coerência, ter que tomar uma atitude. Convocou uma reunião de secção com conhecimento da administração, para esclarecer de vez o que estava a afectar a produção.
         Nessa reunião, o Marcelo depois de dar conhecimento do problema, propôs a todos um pouco de compreensão e entreajuda, para melhorar a subida de produção, dando a cada um a palavra para que dissessem de sua justiça e sem deixar mal entendidos, aquilo que cada um pensava em relação à sua pessoa. Pediu sinceridade, sem receios de ferir a sua susceptibilidade, prometendo ser sensível à opinião de cada um e até ponderar, se fosse caso disso, na sua demissão do cargo.
       Contou-me o meu amigo Marcelo, que notou neles além de um pouco de desconforto, o alívio de se verem livres dele. Expuseram as suas ideias atabalhoadamente, onde a tónica principal recaía na mágoa que sentiam, em serem ultrapassados por um colega mais novo na empresa, mas deixaram claro que pessoalmente nada tinham contra ele, embora dois deles, dissessem claramente que não viam o meu amigo com perfil adequado para o cargo, uma vez que eles até tinham cursos de informática com conhecimentos de programas de desenho. Depois de os ouvir atentamente, o Marcelo contrapôs com os conhecimentos que tinha de desenho, arte que possuía por dom e em especial a sua visão estética, elemento imprescindível na área em que trabalhavam, mas principalmente, o seu grande poder criativo, vertente indiscutivelmente necessária na área de publicidade.   
        Nada os demoveu, chegaram mesmo ao ponto de insinuarem, que o lugar só tinha sido ocupado por ser amigo de um dos administradores da empresa. Foi a gota de água... Marcelo concluiu que nada os demovia e a ilação final que tirou, é que nunca lhe haveriam de dar o seu verdadeiro valor como competente profissional, sendo assim, só havia uma coisa a fazer, demitir-se.
        Os chefes não queriam aceitar, tentaram até demove-lo dos seus intentos, por fim, aceitaram com a condição de ele continuar a fazer parte da equipa de criativos e não nomearem ninguém para o cargo agora de vago. Os colegas ficaram decepcionados mas ao mesmo tempo, confortáveis com a ideia de que ninguém mais novo na empresa mandava neles. 
         O meu amigo Marcelo andava triste, desiludido com o mundo, corroído por estes males de inveja, incompreensão e injustiça. A sua maneira de ser íntegra, vertical e coerente consigo mesmo, não o deixava ser feliz. O Marcelo é muito programático e exigente consigo. Nem repara que ás vezes exige dos outros o que não pode. Para quem é tão organizado, o caos é das coisas em que não consegue viver. Ser injusto é impensável para ele e não se coíbe de pedir desculpa seja a quem for, se comete uma falta.
        Conheço bem o Marcelo e como amigo, tentei apelar ao seu bom senso, mostrei-lhe que este é o mundo em que vivemos e não adianta de nada estar-mos contra “ele”. A felicidade é efémera, apenas em alguns momentos da vida nos bate à porta, ás vezes nas coisas mais simples. Mas isso? O Marcelo já sabia, para quem a sensibilidade aos pormenores é tão importante, não pode passar em claro este facto. O Marcelo respondeu-me:
        “ — Sabes, esta mania de ser coerente, de ver, ler e pensar sobre as coisas e delas ter uma opinião (a minha opinião), mesmo sem poder compartilha-la com alguém ás vezes com medo de ferir a susceptibilidade, mantenho a minha ideia e muito raramente ou então subtilmente a afloro, só para que fique definido de que lado estou. Muitas vezes a conversa fica por ali, às vezes por notar que não vale a pena contrapor com argumentos. Então, faço uma coisa que me tem dado muito gozo. Espero... É verdade! Espero por um momento adequado em que alguém fale no assunto e aí, abordo a questão por outro ângulo e deixo a pessoa compreender o meu raciocínio. Como nunca foi minha intenção converter quem quer seja e muito menos lutar contra obsessões ou fanatismos exacerbados. Deixo que as pessoas entendam à sua maneira, pelo seu ponto de vista e até perceberem que também tenho razão.  
       Não sou profeta nem sequer dono da verdade, depois, dou sempre o beneficio da dúvida até os outros exporem com clareza as suas ideias, mas sou sempre coerente comigo e como diz o poeta: (...este pode não ser o melhor caminho, mas foi o caminho que escolhi...).  
        Pior que tudo isto, é quando sou o atingido pela ingratidão ou pela insensibilidade das pessoas, pior ainda, é quando essas pessoas são aquelas que eu pensava serem meus amigos. Queres ver um exemplo? — E o Marcelo continuou — Um nosso amigo comum (perdoa-me por não te dizer quem) fez anos, como sei que gosta muito de fado, passei uma tarde de sábado a gravar-lhe uma cassete de vídeo com três horas de fados diversos. No dia do aniversário fiz-lhe a oferta com os parabéns da praxe. Ele agradeceu e passados dias até gabou o meu bom gosto e que esposa também tinha gostado muito. Uns meses depois ligou-me, disse-me que tinha umas cassetes de vídeo com jogos de futebol e outras coisas sem interesse gravadas, como estava cheio de as ver, pensou em deitá-las fora mas antes, lembrou-se se eu as queria para mim, para gravar por cima o que eu quisesse. Disse-lhe que me fazia jeito (na época tinha uma grande videoteca de filmes e gastava muitas cassetes), combinei passar por casa dele para as trazer.
         Quando chego a casa e abro o saco, no meio do monte considerável de cassetes, qual é o meu espanto ao ver a cassete que lhe tinha dado com tanto prazer, sem falar no tempo que gastei o no trabalho que tive em grava-la. Podes entender a desilusão que senti? “
         Claro que compreendo o Marcelo...
         Como se pode ser tão insensível...
         Incoerências!
         

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