CONTOS E OUTROS
COERÊNCIAS
Dedicado a um “Amigo”
Em conversa com meu amigo
Marcelo, num dia em que notei que ele andava muito em baixo, devido a sérios
problemas que afectavam a sua vida, contou-me em jeito de desabafo (afinal, é
para isso que servem os amigos), porque andava tão deprimido. Tratavam-se de
problemas no trabalho com alguns colegas que o queriam tramar, com inveja de
serem ultrapassados por alguém mais competente.
O Marcelo, embora fizesse parte da empresa à menos tempo que os outros
colegas, tinha adquirido em pouco anos, um estatuto especial aos olhos das
chefias (o que deixava os colegas irritados), à custa da sua inteligência,
visão e capacidade organizativa, assiduidade ao trabalho e coerência. É verdade
que ganhava mais a chefiar a secção de informática, mas trabalhava o dobro e
assim, produzia o máximo para justificar a sua posição na empresa, era a sua
mania de ser coerente. Claro que a trama, vinha dos colegas nas mais variadas
formas, desde enganos por negligência, excesso de tempo em trabalhos simples
que eram propositadamente complicados e até serviços parados por ausências
inventadas.
Contra todas estas coisas o Marcelo lutava, sem querer entrar em
delações ou ferir alguém. Mas tudo isso trazia-o preocupado e ás vezes sem
alento para continuar o seu trabalho. Quando se começou a sentir uma quebra de
produção na empresa, foi chamado aos chefes para esclarecer o caso, deu uma
desculpa plausível e prometeu chamar à atenção da secção para o facto. Quase a
desistir, pensou mais uma vez por coerência, ter que tomar uma atitude.
Convocou uma reunião de secção com conhecimento da administração, para
esclarecer de vez o que estava a afectar a produção.
Nessa reunião, o Marcelo depois de dar conhecimento do problema, propôs
a todos um pouco de compreensão e entreajuda, para melhorar a subida de
produção, dando a cada um a palavra para que dissessem de sua justiça e sem
deixar mal entendidos, aquilo que cada um pensava em relação à sua pessoa.
Pediu sinceridade, sem receios de ferir a sua susceptibilidade, prometendo ser
sensível à opinião de cada um e até ponderar, se fosse caso disso, na sua
demissão do cargo.
Contou-me o meu amigo Marcelo, que notou neles além de um pouco de
desconforto, o alívio de se verem livres dele. Expuseram as suas ideias
atabalhoadamente, onde a tónica principal recaía na mágoa que sentiam, em serem
ultrapassados por um colega mais novo na empresa, mas deixaram claro que
pessoalmente nada tinham contra ele, embora dois deles, dissessem claramente
que não viam o meu amigo com perfil adequado para o cargo, uma vez que eles até
tinham cursos de informática com conhecimentos de programas de desenho. Depois
de os ouvir atentamente, o Marcelo contrapôs com os conhecimentos que tinha de
desenho, arte que possuía por dom e em especial a sua visão estética, elemento
imprescindível na área em que trabalhavam, mas principalmente, o seu grande
poder criativo, vertente indiscutivelmente necessária na área de
publicidade.
Nada os demoveu, chegaram mesmo ao ponto de insinuarem, que o lugar só
tinha sido ocupado por ser amigo de um dos administradores da empresa. Foi a
gota de água... Marcelo concluiu que nada os demovia e a ilação final que
tirou, é que nunca lhe haveriam de dar o seu verdadeiro valor como competente
profissional, sendo assim, só havia uma coisa a fazer, demitir-se.
Os chefes não queriam aceitar, tentaram até demove-lo dos seus intentos,
por fim, aceitaram com a condição de ele continuar a fazer parte da equipa de
criativos e não nomearem ninguém para o cargo agora de vago. Os colegas ficaram
decepcionados mas ao mesmo tempo, confortáveis com a ideia de que ninguém mais
novo na empresa mandava neles.
O meu amigo Marcelo andava triste, desiludido com o mundo, corroído por
estes males de inveja, incompreensão e injustiça. A sua maneira de ser íntegra,
vertical e coerente consigo mesmo, não o deixava ser feliz. O Marcelo é muito
programático e exigente consigo. Nem repara que ás vezes exige dos outros o que
não pode. Para quem é tão organizado, o caos é das coisas em que não consegue
viver. Ser injusto é impensável para ele e não se coíbe de pedir desculpa seja
a quem for, se comete uma falta.
Conheço bem o Marcelo e como amigo, tentei apelar ao seu bom senso,
mostrei-lhe que este é o mundo em que vivemos e não adianta de nada estar-mos
contra “ele”. A felicidade é efémera, apenas em alguns momentos da vida nos
bate à porta, ás vezes nas coisas mais simples. Mas isso? O Marcelo já sabia,
para quem a sensibilidade aos pormenores é tão importante, não pode passar em
claro este facto. O Marcelo respondeu-me:
“ — Sabes, esta mania de ser coerente, de ver, ler e pensar sobre as
coisas e delas ter uma opinião (a minha opinião), mesmo sem poder
compartilha-la com alguém ás vezes com medo de ferir a susceptibilidade, mantenho
a minha ideia e muito raramente ou então subtilmente a afloro, só para que
fique definido de que lado estou. Muitas vezes a conversa fica por ali, às
vezes por notar que não vale a pena contrapor com argumentos. Então, faço uma
coisa que me tem dado muito gozo. Espero... É verdade! Espero por um momento
adequado em que alguém fale no assunto e aí, abordo a questão por outro ângulo
e deixo a pessoa compreender o meu raciocínio. Como nunca foi minha intenção
converter quem quer seja e muito menos lutar contra obsessões ou fanatismos
exacerbados. Deixo que as pessoas entendam à sua maneira, pelo seu ponto de
vista e até perceberem que também tenho razão.
Não sou profeta nem sequer dono da verdade, depois, dou sempre o
beneficio da dúvida até os outros exporem com clareza as suas ideias, mas sou
sempre coerente comigo e como diz o poeta: (...este pode não ser o melhor
caminho, mas foi o caminho que escolhi...).
Pior que tudo isto, é quando sou o atingido pela ingratidão ou pela
insensibilidade das pessoas, pior ainda, é quando essas pessoas são aquelas que
eu pensava serem meus amigos. Queres ver um exemplo? — E o Marcelo continuou —
Um nosso amigo comum (perdoa-me por não te dizer quem) fez anos, como sei que
gosta muito de fado, passei uma tarde de sábado a gravar-lhe uma cassete de
vídeo com três horas de fados diversos. No dia do aniversário fiz-lhe a oferta
com os parabéns da praxe. Ele agradeceu e passados dias até gabou o meu bom
gosto e que esposa também tinha gostado muito. Uns meses depois ligou-me,
disse-me que tinha umas cassetes de vídeo com jogos de futebol e outras coisas
sem interesse gravadas, como estava cheio de as ver, pensou em deitá-las fora
mas antes, lembrou-se se eu as queria para mim, para gravar por cima o que eu
quisesse. Disse-lhe que me fazia jeito (na época tinha uma grande videoteca de
filmes e gastava muitas cassetes), combinei passar por casa dele para as
trazer.
Quando chego a casa e abro o saco, no meio do monte considerável de cassetes,
qual é o meu espanto ao ver a cassete que lhe tinha dado com tanto prazer, sem
falar no tempo que gastei o no trabalho que tive em grava-la. Podes
entender a desilusão que senti? “
Claro que compreendo o Marcelo...
Como se pode ser tão insensível...
Incoerências!
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