terça-feira, 27 de outubro de 2020

CHÁVENA COM HISTÓRIA


 




CAPÍTULO 5



PORTO 
 
A 20 de Janeiro de 1923, por coincidência ou destino, no mesmo dia do pai, a Clara deu à luz no Hospital de Santo António no Porto, um rapaz. José Medeiros mal soube, apresentou-se no Porto desvairado de alegria, não lhe faltou com nada e proporcionou-lhe toda a assistência necessária. Passado alguns dias, ordenou de novo ao motorista Macedo que o levasse ao Porto, transportando na mala do carro um enxoval completo para o filho. Na altura tinha um “Panhard” modelo “Labory” de 1920, que em pouco mais de duas horas e meia, o pôs de Guimarães a Vilar. Não cabia em si de contente, finalmente tinha um filho! Deixou algum dinheiro á Clara e a promessa que mal pudesse e os negócios o deixassem, viria visitá-la de novo, ou mandaria o Macedo com novas provisões. Não queria que nada lhe faltasse, a ela e ao filho, mas... explicou-lhe que era melhor para já, registar o menino como filho de pai incógnito, com a promessa de mais tarde o perfilhar, era só até poder acautelar o património das filhas em relação às dívidas que entretanto se tinham acumulado com o banco. Clara registou a criança na Junta de Freguesia de Vilar como: Maciel Meneses de Castro, filho de Clara Meneses de Castro, viúva e natural de Lindar, Amarante, sendo filho de pai incógnito. 
Clara tinha muitas vezes a visita de Macedo com o envelope lacrado com dinheiro e palavras escritas, que dava à dona Rosinda para ler por ser analfabeta. José Medeiros, apenas a visitava mês a mês, sempre para passar a noite, leva-a a passear a Cadouços e à praia dos ingleses, acompanhado de Rosinda que levava o Maciel num carrinho de bebé. Deixava o aluguer pago, e partia depois de beijar o filho, babado por finalmente ter a quem deixar o seu império, que embora periclitante, tinha fé que as coisas melhorassem de novo.
Mas no ano de 1924, os negócios não andavam nada bem, as dividas ao banco e mesmo a alguns fornecedores, acumulavam-se.
 
“A Crise no país agudizou-se, com um crescendo de insegurança e da instabilidade política. A carestia de vida afectava essencialmente os operários, que mobilizados pelas correntes sindicais, provocavam manifestações como a 22 de Fevereiro que descambou em violência e confrontos. A 14 de Julho registam-se em Lisboa confrontos entre militares, envolvendo o Exército e a Guarda Nacional Republicana, a que se dizia, não estarem alheias movimentações de tendência fascista. Em 1925 os golpes militares sucederam-se e a crise agudizou-se”.
 
José Medeiros repara que seu filho, agora com dois anos, não anda bem e pede a Clara que o leve a uma consulta ao Dr. Aragão, seu velho amigo de Guimarães, a exercer medicina no Hospital da Ordem da Trindade. O menino, além de chorar muito, tem febre alta, vómitos, diarreia e não se tem de pé. Ele que já começava quase a andar... O médico, depois de o ver atentamente, envia-o com urgência para o Hospital de Santo António, onde é diagnosticado ao pequeno Paralisia Infantil.
      
“Na época ainda não se tinha descoberto a cura para esta infecção viral causada pelo poliovírus, que deu o nome à Poliomielite. Não haviam antibióticos específicos para esta doença que geralmente afecta as pernas  atrofiando os músculos. Só muito mais tarde, em 1955 Albert Sabin e Jonas Salk descobrem a vacina que ainda hoje (a de Sabin) é administrada por via oral e obrigatória a todas as crianças”.  
José Medeiros desanimava, mais uma vez Deus lhe negou o herdeiro que ele queria, ou seria castigo? Ou seria mais um desafio na sua vida? Não, ele não queria ver um aleijado à frente do seu império e começou lenta e covardemente a desviar-se das suas obrigações. Muitas vezes no quarto, sozinho com a sua consciência, soluçava de impotência e raiva. Joaquina ouvia através da porta o pranto abafado do patrão, batia levemente para lhe levar uma tisana de cidreira, com o intento de acalmá-lo.
Clara tinha agora 43 anos, sofria ao ver desmoronar-se o seu sonho. Tinha dado à luz, com muito custo devido à sua idade, o filho que José tanto queria, mas... Deus castigou-a, lembrava-se agora tanto de seu marido, naquela cadeira de rodas e da pouca atenção que lhe dera. Lembrava-se da filha que não via há muito tempo. Só o motorista Macedo ainda a visitava com o envelope cada vez mais leve a mando de patrão. Dona Rosinda acabou por ir embora, sentia-se constrangida pela desgraça que assolava aquela triste casa, depois, compreendia perfeitamente qual seria o destino daquela mãe, quando lia nas entrelinhas das cartas que José Medeiros lhe mandava, pois muitas das coisas que lia, mas não lhe dizia para não lhe destruir a ilusão em que Clara vivia. Rosinda acabou por inventar uma desculpa com saudades da família e voltou para Nevogilde. Clara ficou só a chorar a sua vida desdita, com o pequeno Maciel a gatinhar, arrastando os joelhos pelo soalho da casa.
Em Janeiro de 1926 Maciel fez três anos. O tempo foi passando e seu pai, o grande industrial de Guimarães, estava cada vez mais debilitado economicamente e não lhe podia valer, como lhe chegou a aconselhar o Dr. Aragão, para que metesse o pequeno num hospital de reabilitação, até ser possível adaptar um aparelho ortopédico às pernas. A crise económica era tal, que José Medeiros chegou a vender, com muita pena sua e das filhas, a propriedade do Solar de Gesta e mudou-se para uma propriedade mais pequena em Colares, com as filhas e a boa Joaquina. Cecília tinha agora 16 anos, as irmãs, 12 e 5.       
  
“Coincidindo com o momento crítico para o governo presidido por António Maria da Silva. No ambiente de frenética intriga política que se vivia, pois os boatos de um golpe de estado desde há muito que corriam, sendo seguro que existiam múltiplos convites ao general Gomes da Costa para dirigir esse golpe, como sempre “regenerador”, que “salvasse a Pátria”. No dia 28 de Maio de 1926, pelas 6:00 da madrugada, iniciou-se uma sublevação militar, com acompanhamento e apoio civil, incluindo do operariado da região, organizando-se uma coluna que partiu de Braga sobre Lisboa.
A 3 de Junho as tropas de Gomes da Costa chegaram a Sacavém de comboio e entraram em Lisboa sem resistência. Nesse mesmo dia em Lisboa, Mendes Cabeçadas organizou o novo governo, entregando a Gomes da Costa as pastas da Guerra e interino da Marinha e Colónias. Para as Finanças escolhe António Oliveira Salazar. Estava preparado o cenário para o Estado Novo. A 7 de Junho, o general Gomes da Costa tomou posse das pastas para que fora nomeado e comandou um impressionante desfile militar de vitória ao longo da Avenida da Liberdade. Desfilam 15 000 homens perante o aplauso de centenas de milhar de pessoas. Gomes da Costa tomou depois, posse como Chefe de Estado e como Presidente do Ministério, assumindo interinamente todas as pastas. A 8 de Julho, as forças mais conservadoras, agora lideradas por Óscar Carmona, assumem a liderança e o general Gomes da Costa é feito prisioneiro no Palácio de Belém, sendo posteriormente deportado para Angra do Heroísmo, nos Açores. A revolução acabou por destruir o seu principal obreiro e criador. Tinha começado o Estado Novo, que viria a durar 48 anos de opressão e fascismo”.
      
A crise estava instalada no país, há muitas indústrias não aguentaram. Em S. Tiago do Gesta, na fábrica de Lanifícios, os efectivos operários foram reduzidos, a produção baixou e muitas máquinas pararam. José Medeiros quase esqueceu a Clara, agora, apenas lhe pagava o aluguer de casa e pouco mais. Deixou de a visitar.
Clara começou a pensar em trabalhar mas não tinha onde deixar o filho, arranjou serviço como criada de servir, numa casa onde duas senhoras idosas lhe deixavam levar o menino durante o dia e à noite, regressava a casa com ele ao colo, cada vez mais pesado, nunca mais andou pelo seu pé, nem havia esperança de alguma vez vir a andar. Viveu assim quase dois anos, até que por intermédio dessas bondosas senhoras, teve conhecimento que um doutor, de nome Henrique Gomes de Araújo, tinha fundado na Foz do Douro o “Refúgio da Paralisia Infantil”.
 
“Tratava-se de uma instituição de assistência aos deficientes motores com poliomielite. Este médico dedicou-se ao tratamento, primeiro com choques eléctricos, pesos e outras experiências, depois com a obtenção do soro antipoliomielítico (que passou a ser aplicado a partir de 1940), até obter resultados satisfatórios como por exemplo, virem a andar com aparelhos ortopédicos ou muletas”.
 
Clara conseguiu o internamento do filho nessa instituição em 1928, tinha o Maciel cinco anos.
Trabalhava na casa das boas senhoras em Aldoar e visitava o pequeno, todas as semanas. Eram visitas dolorosas, custava muito vê-lo deitado com aqueles pesos presos às pernas. Por esta altura só o Macedo ainda a visitava, até lhe trazer uma carta onde José Medeiros lhe dava conta que não conseguia mais satisfazer o compromisso de a sustentar, apenas continuava a pagar-lhe o aluguer de casa. Como sabia que ela agora trabalhava e que o pequeno está bem entregue, pedia-lhe que aceitasse as suas desculpas e o perdão, por não conseguir ser mais coerente como gostava.
Clara, infeliz com esta forma de abandono, encheu-se de orgulho, pediu às duas senhoras, se a deixavam viver lá em casa até tomar novo rumo para a sua vida. As senhoras aceitaram e Clara, agora com 46 anos e a ajuda das senhoras na venda de algum mobiliário, instalou-se num quarto dos fundos com a mobila de quarto que tinha, uma mala de roupa e um saco de pertences, entre eles, a chávena de porcelana que guardou para o filho como recordação do pai.
 

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