quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTOS E OUTROS


 



O TEMPO E OS SENTIDOS


 
 
 
Em memória do meu amigo Edgar
 
 
 
 
Faz tempo que passo as noites assim, quedo no silêncio, como quem pensa no que está a fazer, não querendo fazer nada e querendo fazer tudo.
Organizo-me, como quem tem a certeza que vai partir um dia e tem que deixar tudo arrumado, separado (O Edgar deixou tudo por fazer...), tudo no lugar para não andarem à procura de nada: Documentos, Fotos, Livros, Filmes, Discos, tudo o mais que lhes vou deixar e os vai fazer recordar como eu era (sou) e possam assim ver o quanto lhes quis (Se é que ainda há dúvidas...) e quero, tanto que gostaria de lhes ter deixado mais, mas por falta de sorte a vida poucas vezes me deu o que desejei.
Fortuna não deixo (nunca tive lá muitas boas relações com dinheiro...) por isso, a minha lista de sonhos está quase intacta, foram tantos, que mais de metade deles, hoje não tinham cabimento de tão desfasados no tempo. Que ridículo seria (ou não?) fazer amor com ela ao som da Elis Regina cantando a “Fascinação”... (No entanto, era tão simples de concretizar...).
Mas voltando às minhas noites silenciosas, passadas à mesa de caneta em punho, munido de cigarros e na companhia duma garrafa de whisky que lentamente diminui de quantidade, aumentando proporcionalmente o fumo nos pulmões e o álcool no sangue. Vou escrevendo, ás vezes letras para fado, outras poesias, não, não é a mesma coisa! Procuro é que o letrista ás vezes seja poeta.
A poesia nasce do nada, mas também do sofrimento e da dor, do amor e da paixão, da fragilidade e do medo, da solidão e do silêncio. Da sensibilidade em ver aquilo que muitos não vêem nas coisas mais simples, mas também mais importantes que a vida tem. Na susceptibilidade de sentir o arranhar da pele, o engolir a dor, do soluçar da humilhação. De ter lágrimas nos olhos e continuar a sorrir. De ouvir os outros sem nunca os outros nos ouvirem. De fantasiar a vida e sonhar sempre sem descorar a realidade. Ser capaz de ter e ser, sem ter nem ser. De conviver com a insatisfação constante, de nunca ser capaz de dizer o que se quer dizer, daí a procura incessante das palavras. Muitos, ás vezes conseguem, outros nunca.        
Vivo com a imaginação numa luta constante contra o tempo, sim porque, o que mais me atormenta é fazer aquilo que penso não ter tempo de fazer, assim, tudo que faço tenho medo de nunca acabar por não ter tempo.
A vida não me deu muito e a maior parte do que tenho, fomos nós, eu ela, que conseguimos à custa de muito trabalho (Haja saúde p’ra trabalhar) e canseira, enchendo os bolsos dos outros e tentando sobreviver nesta luta diária, iludindo-me com a esperança de dias melhores e a felicidade prometida (Quem prometeu, os astros?) ou ouvir sempre os outros dizer: Vais ver que a vida vai melhorar, tem esperança... Esperança que já nem sei se ainda é verde, porque com o tempo, as cores desbotam.
Trabalha-se uma vida inteira, sempre numa resignação constante, esperando uma melhoria de vida que vai tendo altos e baixos. Mais baixos que altos: Nos altos compra-se o frigorifico a prestações. Nos baixos, deixa-se cortar o telefone, não se paga a prestação do frigorífico e ficam-se três dias de cama com gripe e a caixa não paga (Leis que não compreendo...) Um dia vêem os filhos que não têm culpa de nada, pode ser que haja mais altos e eles crescem em harmonia (Como cresceram...Até me deram netos...) fazendo-nos companhia nesta luta desgastante pela sobrevivência, de um dia-a-dia cansativo, repetitivo, sim repetitivo:
O mesmo autocarro pela manhã, as mesmas pessoas, o mesmo jornal com mais ao menos as mesmas noticias, as mesmas conversas fúteis mecânicas, como aquela que está agora na moda: Então tudo bem? Igual, sempre tudo igual com os mesmos problemas doze vezes por ano, todos os anos duma vida. Depois vem a saturação das coisas, dos gestos e dos actos. Estou farto de ser (Se te portares bem, vais ser alguém na vida...) o bom rapaz, o gajo porreiro, o bom chefe de família, trabalhador, sério, educado; Ora foda-se!.. Que ganho eu com isso?
Apetecia-me prevaricar, calcar o risco, comportar-me mal ser uma merda, mas chegar onde os outros chegam, sem escrúpulos, passando por cima de tudo e todos para alcançar o bem-estar (Os fins justificam os meios). Tenho sentido nas costas as botas de tantos que passaram por mim, tenho tantas marcas de mágoas contidas, (Este mundo é p’rós finos...) de palavras sufocadas, de gritos calados. Com esta minha mania de ser sempre o segundo em tudo, passar a vida despercebido, sem fazer ondas, acomodado, feliz pelos os outros. Ora merda, e eu?...
Estou cansado de viver gregário, ser social, militante das causas dos outros, quero ser egoísta, gostar de mim como Narciso, gritar ao mundo que existo e não pedir-lhe desculpa de existir. Gostava de apagar as nuvens cinzentas do meu céu, vê-lo azul e ao Sol? Senti-lo no rosto, quente, muito quente, mas não sou capaz e depois, o Sol nem sabe que eu existo (Será que brilha para todos?).
       
Depois não tenho jeito para não ser eu, sinto-me melhor nesta concha de resignação, à espera não sei de quê (o eterno sebastianismo?), mas sempre com esta maldita raiva de não ser o que gostava de ser, fazendo na maior parte das vezes aquilo que não gostava de fazer.
Há quanto tempo não sinto aquela alegria boa de viver, de peito ao vento e chuva no rosto, como quando se é criança e se mete os pés nas poças por prazer. A quanto tempo não saltito pela rua, nem me sento na berma do passeio a jogar o jogo do galo! Há quanto tempo eu não assobio pela rua de contente! A vida tem tantas coisas boas e lindas que deixa-mos de utilizar, ás vezes por preconceito, ou simplesmente porque nem reparamos que a vida é tão simples só porque a complicámos demais.Sinto saudades de uma gargalhada bem dada, de rir com os amigos duma anedota com piada, enfim, já não se brinca como antigamente. Se calhar, também já não amigos como havia antigamente...
Um dia quando o fim chegar, vão muitos daqueles que me conhecem faltar ao trabalho, comprar um ramo, dar os sentimentos à viúva e aos filhos, comentar uns com os outros elogios de amigos, recordar momentos vividos. Sim porque nesse dia vão ser todos meus amigos: Amigos dos copos, do fado, dos passeios, das agremiações culturais e desportivas, etc., etc. Só faltavam para descaramento, uma bandeira sobre a urna. No trabalho fazia-se sempre uma colecta para uma coroa de flores, como fizemos um dia para o Armindo. E juntos, eu e ele, já fizemos para outros...
Se ainda trabalhar, o patrão manda alguém para representar a firma.Talvez eu venha a ter foto no jornal, para mais uns tantos lerem e comentarem:
— Ainda ontem falei com ele!
Alguns ficam abalados (Mais um que partiu e deixou tudo por fazer...) porque alguns, quero acreditar que ainda são amigos de verdade, outros quiseram ser e não souberam (Ou foi eu que não soube fazer amigos?).
Outros vão-se cumprimentar efusivamente:      
   — Ó fulano! Ao tempo que não te via... Está tudo bem contigo? O outro vai responder:
   — Vamos indo! Lamento é a gente se encontrar só nestas ocasiões. Mais um que se foi! Depois aparece mais outro conhecido, mais outro e outro e a conversa é sempre a mesma. Até que um deles pergunta:
  — Afinal de que é que ele morreu? Há um que sempre responde:
  — Segundo a viúva, estava a ver televisão no sofá e ficou-se. Mas já ouvi dizer que foi doença... Então um deles olha o relógio e diz:
  — Isto ainda está demorado, quem quer vir beber um copo à saúde? Há sempre alguém que vai.
Os rituais dos funerais têm sempre este lado informal de apego á vida. Foda-se! Vamos comendo e bebendo que qualquer dia vamos c’ocaralho...Sem esquecer aqueles que vão para ver quem vai: Já viste fulano? Estou admirado por fulano não vir! Fulano disse que vinha e não veio! Fulano não vem, já esteve cá ontem no velório. Olha fulano... Nunca pensei que viesse, nem falavam...
Passamos a vida distraídos com coisas tão pequenas, que não reparamos nas coisas maiores, naquelas que nos dariam a tal alegria de viver.
 
Vou passando a maioria do tempo fechado, não me abro com ninguém, Vou perdoando (não esquecendo), vou morrendo sufocado na agonia dos sentidos.  Os cigarros são apenas os substitutos de tudo o que já não tenho. Colegas, amigos, tudo... As minhas observações e vivências como solitário (mesmo no seio da família), o modo como ás vezes falo comigo próprio, são mais sentidas do que um homem socialmente normal. Refiro-me àquele que pensa e fala no trivial: Futebol, carros e mulheres. Que nunca leu um livro, jornais só os desportivos, não tem preocupações pelo que se passa no mundo, o seu horizonte é limitado pelas banais preocupações do dia a dia. Sabe o nome da capital dum país apenas porque o clube da sua simpatia vai lá jogar. Conhece os nomes de todos os jogadores da sua equipa e das outras, mas não sabe o nome dos dois português com prémio Nobel.
Que lhes importa se os meus pensamentos são mais graves, mais cultos, mais fantasiosos ou mais melancólicos? Que lhes importa que eu veja imagens ou tenha impressões que eles poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário. Criticam-me se me ocupo mais do que é devido com qualquer coisa.
Há coisas que se tornam profundas no silêncio, que ganham outro significado, transformam-se num acontecimento, numa aventura cheia de emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho, cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o absurdo e o proibido. A beleza é o caminho do homem sensível para o espírito, é aí que existe o amor verdadeiro pelas coisas como a natureza. A beleza é um fascínio ardente, sentido por quem é sensível.
Quando faço uma viagem pela beleza. Seja num quadro, numa paisagem, num retrato, numa palavra, num dito, num sentimento, numa rima, numa voz, num som, num gesto, sinto-me grato pelos meus sentidos existirem.
Pode-se achar que não, mas mesmo no humor acredito com alguém disse: Rir é uma expressão de inteligência. Mas claro, quem não entende não ri. Mas... não é feliz? É com certeza.
Esse é o meu protesto, a minha dúvida nesta tão curta viagem que é a vida. Não quero queimar todos os livros que li, não quero acreditar que não vale a pena tê-los lido. Não quero ser mais feliz que ninguém, só gostava de SER FELIZ.
       

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