quarta-feira, 7 de outubro de 2020

PALAVRAS SENTIDAS "POEMAS" 1

 1ª FASE

 


1968 – O MEU PAÍS

Oh gente!

Inventem outras palavras mais verdadeiras

Ò então

Troquem por outras mais certeiras

Chamai hipocrisia à caridade

Ao altruísmo, falsidade

E á guerra, trampa

E às mulheres? Chamai-lhes “máquinas de parir”

               ou não geram elas seres para destruir

               nessa guerra de verdade (a fingir)?

Chamai cegos, aos petulantes

Felizardos, aos ignorantes

E aos pacíficos, covardes

E vós homens!

Que misturais suor com sémen

Lágrimas com pão e calos com tristeza

Só tendes uma certeza!

Que viveis neste pais autista e mudo

Sabeis que aqui não sois nada

E no entanto, sois TUDO.

 

 

1969 - TENS DESCULPA

Então amigo, estás triste?

Porquê?

Acaso não estás inteiro?

Olha aquele  que ficou sem pernas

         na guerra do ultramar.

Não és feliz?

Olha aquele que a mulher enganou

         por não saber esperar.

Dinheiro?

Não vês que não podes exigir mais!

Não te ensinaram na escola

Que é tão bonita a casinha dum pobre

         que basta haver, pão e vinho sobre a mesa

         á entrada um azulejo de santo António

         e é o que basta numa casa portuguesa?

Vai gastar a merda do salário da semana

Come, bebe e dá pancada na mulher

Não vês que tens desculpa meu sacana!

O teu clube até perdeu!

 

 

1970

(Dia em que uma mãe estrangulou o filho)

 

Não quero que as flores nasçam

        hoje diante de mim.

Recuso-me ouvir os pássaros cantar

        e quero que as árvores se vistam de luto.

O Sol que não venha hoje

        e os homens venham descalços

        sentir o silêncio das pedras.

Quero que todos os olhos de mulher

        chorem lágrimas até inundar esta terra

        onde há mães que estrangulam os filhos

Ah quem dera!

Que a pílula fosse de graça

        neste país onde o aborto é proibido

        e os cardeais vivem em estado de graça

 

 

1971 - DESABAFO

 

Rasga o peito

Mostra o coração

      e deixa-o falar pela boca

Ele que proclame de viva voz

      a liberdade e a paz

Deixa-o ser o porta-voz

      do que sentes meu hipócrita

Abre os braços

      e faz deles um asilo

      de multidões sedentas de paz e amor

Juntas as mãos e reza ao teu Deus

      para que em vez de chuva caía pão

E mate a fome às bocas cansadas

     de pedir liberdade.

 

 

1972 - VERMELHO

 

Hoje vi uma borboleta enorme

         num jardim de Luanda

De asas lindas, vermelhas

         como a cor da nossa bandeira

O Sol escondia-se, enorme

        na baía de Luanda

Redondo, muito vermelho

        como a cor da nossa bandeira

 

 

1973 - NATAL ADIADO


Mãos que se juntam

    e em coro perguntam

    não sabem a quem

    pela paz que não vem

Arredada a esperança

    perdeu a criança

    o sorriso que tinha

    e vagueia sozinha

Porque na terra rasgada

    de sangue manchada

    há gente que dorme

    com olhos de fome

 

Não eras tu que querias

    que todos os dias

    fosse Natal?

 


1974 – 25 DE ABRIL

Ò Luciano! Ò Franco!

Ò Couto! Ò Elias!

Dai-me as vossas mãos

Ò Daniel! Ó Jeremias

Ò Pinheiro! Ò Castilho!

Venham também

Vamos voltar agora (voluntariamente)

         a ser militares outra vez

Vamos por cravos nas G3

Que ciúmes eu tenho

        de não ser militar neste dia...

Mas vou pôr um cravo no galhardete

        do pelotão de artilharia

        que trouxe de Angola

 

Viva a liberdade!

 

 

1974 – 1º DE MAIO

 

Finalmente nas ruas vi gente!

         sem PIDE ou agente

         para mandar “dispersar”.

Finalmente nas ruas vi povo!

         sem o Estado Novo

         para nos mandar calar.  

Finalmente nas ruas vi gente!

        de mãos dadas, contente

        na minha cidade.

Finalmente nas ruas vi gente!

        lançando a semente

        para a liberdade.

Dá-me o teu braço amigo operário

        anda daí amigo agrário

        vamos à frente, mete-me o braço.

Dá-me o teu braço ó pescador

        Venha daí senhor professor

        vamos à frente, mete-me o braço.

E tu que nos olhas dessa varanda

        não dizes nada? Anda!

        ou então, grita, faz desacato

        porque hoje é o 1º de Maio

        de mil novecentos e setenta e quatro.

 

 

ENQUANTO…

 

Enquanto houverem crianças

                                com a fome pendurada na boca

Enquanto houverem barracas

                                com gente dentro que sonha

Enquanto houverem mulheres humilhadas

                                por monstros possessivos à solta

Enquanto houverem homens com lágrimas

                                 porque não lhes dão trabalho

Enquanto houverem velhos abandonados

                                 a viveram num canto por decreto

Enquanto houverem grandes barrigas

                                 com charutos e anéis nos dedos

Enquanto houverem corruptos e usurário

                                 vivendo em liberdade injustamente

Enquanto a balança da justiça

                                 pender sempre para o lado dos ricos

Enquanto os operários não compreenderem

                                 as palavras escritas nas paredes

Abril será sempre, uma revolução incompleta

 

 

VINGO-ME

Vingo-me

Vingo-me de mim

Quando dou aos meus filhos

            os “Legos” para brincarem.

Vingo-me de mim

Ao vê-los comer batatas fritas com bife

Igual ao que minha avó me deu

           quando fiz seis anos.

Vingo-me de mim

Quando os vejo ler à luz do candeeiro

Mas não de petróleo como era o meu.

Vingo-me de mim

Quando eles ligam o aquecedor na sala

E não aquecem as mãos no borralho.

Vingo-me

Nessas alturas vingo-me

De tudo que não tive.

 

 

SÓIS

Hoje não sei porquê…

Acordei feliz!

Passo na rua e dou a todos

Os sóis que me queimam o bolso

— Olá minha gente!

— Bom dia operário!

— Boa tarde pedinte!

— Olá menino da escola!

— Boa noite prostituta!

Dou a todos os sóis que trago no bolso

De alguns, recebo luas

Que importa!

As luas também são belas

E quem me dera pendurar muitas no céu

Só para enganar as mulheres e os poetas.

 

 

 

CONSCIÊNCIA

— Porque choras filho?

— Porque o pai bateu na mãe

— Não filho, não bati, só ralhei

— Não batas, não pai?

— Não, não bato. Agora vai nanar, vá

Anda consciência, bate-me!

Ò então

Dá-me dinheiro para pagar ao senhorio

Ela gastou-o!

 

 

MAGIA

Magia…

     Só pode ser magia

     O frio, o calor

     A amizade, o amor

     O receber, o dar

     O rir, o cantar

Magia…

     Só pode ser magia

     Haver até nesse dia

     Tristeza, alegria

     Dor, caridade

     Mentira e verdade

Magia…

     Só pode ser magia

     Ou então é dia de Natal

     Porque do céu chovem esperanças

     E ouvem-se os risos das crianças.

 

 

 

 

MANIFESTO

Nossas vidas meus amigos

           São feitas de riscos, de perigos

Vivemos na corda bamba

Remamos contra a maré

           num rio que não tem pé

Para alcançar a outra banda

Já ninguém tem a certeza

Até mesmo a natureza

          anda connosco zangada

A esperança já não é verde

Já não se ganha nem perde

         chegou ao fim a jogada

Agora das duas uma

Ou morremos na espuma

         num mar sem fé e salgado

Ou damos na mesa um murro

Soltamos à vida um urro

        e lutamos lado a lado

Chega de esperança perdida

Nem tudo é mau nesta vida

        ainda há Sol, estrelas e mar

Com justiça amor e pão

Vamos todos dar a mão

        que ainda há muito p’ra lutar.

 

 

QUERER E NÃO QUERER

 

Queria tanto

Que a fraternidade invadisse o mundo

          matasse a vaidade

          e a enterrasse bem fundo

E que o aroma das floras

          exalasse de paz a atmosfera

          e que impregnada de amor

          nascesse uma nova era.

Não queria

Que a fome matasse os olhos das crianças

          e os abutres pairassem

          sobre os corpos sem esperança

E nunca ninguém partisse sem concretizar

          todos os ideais que têm vindo a sonhar.

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