terça-feira, 20 de outubro de 2020

O ANJO VERMELHO

 




QUATRO
 



Depois de fazer a entrega de todos os livros e filmes, como era desejo de Maciel, queimou todas as fotos que tiraram juntos e fez desaparecer tudo que fosse suscetível de comprometer a sua relação. Era sua intenção, guardar todos aqueles anos como uma bela recordação. Agora que a outra metade da laranja não existia, iria pôr um ponto final naquele romance de amor e escrever a palavra fim.
Meteu num saco de viagem alguns peças antigas e o álbum de família, alguns livros e pequenos quadros, documentos pessoais mais importantes como se de um espólio se tratasse. Diria lá em casa que o saco lhe foi entregue pelo hotel. Para isso, tinha marcado à duas semanas atrás, um quarto em nome de Maciel Canavarro (que ele nunca ocupou), mas que tornava mais convincente a sua história, uma vez que até uma etiqueta do Hotel em questão consegui para colocar no saco.
Depois Helga cobriu os quadros, para mais tarde os levar para galeria que habitualmente comercializava as obras do artista. Cobriu os móveis e sofás com panos. Tinha contactado a instituição de S. Vicente de Paulo e levado caixas de roupa dele e dela, combinando o dia para lhe desocuparem o apartamento de todos os móveis.
Olhou em volta e aquela casa parecia-lhe agora habitada por fantasmas. Sentou-se à escrivaninha pronta a rever as contas e o saldo do banco. O Apartamento estava em seu nome e logo o poria à venda, para isso, já tinha contactado uma agência imobiliária, assim como todos os direitos de autor das obras de Osmar Wilson, que também doaria à tal associação cultural, através da SPA. As contas da luz, água, gás, Internet e telefone estavam em dia, iria a seguir dar baixa de todas estas coisas para evitar complicações futuras.
Faltava agora “limpar” o computador. Como tinha conhecimento da palavra-chave para aceder a todas as pastas, com facilidade entrou digitando a palavra HELGA. Começou por abrir a pasta de “As minhas fotos” e depois de as ver uma a uma, apagou-as. Muitas delas eram fotos antigas e de ambos, tiradas com a máquina automática assente no tripé aos pés do divã da sala. Algumas tinham anos. Era uma mania dele, guardar estas fotos que gostava de as ver e rever sem nunca se cansar. Algumas delas eram maravilhosamente ousadas, e irradiavam a paixão fervorosa que os unia, mas eram também e principalmente muito, mas mesmo muito comprometedoras.
— Era-mos tão loucos naquele tempo… Se aquelas fotografias caíssem nas mãos de alguém, era um desastre. — Pensava Helga. Maciel tinha uma imaginação prodigiosa e a nossa sexualidade era vivida em plena. Tudo era permitido até ao limite do respeito por nós próprios e um pelo outro. A moral de muita gente ainda não aceita este aspecto da sexualidade, por isso muitos casais não são felizes principalmente porque não falam, não contam um ao outro as suas fantasias, as suas obsessões, os seus prazeres mais íntimos às vezes tão simples de realizar. Quando duas pessoas se amam de verdade, não deve haver barreiras ou limites no desfrutar desse amor.
Era já fim de tarde, quando finalmente apagou a última foto, eram as que tinham tirado em Paris à nove anos atrás. Apagou também a pasta, foi ainda à “Reciclagem” e teclou em “Delete”, apagando definitivamente aquele passado feito de fotografias digitais. Voltaria no dia seguinte para levar os quadros e continuar a “limpeza” ao computador.
Em casa houve da parte do filho Diogo, já com 18 anos, uma certa curiosidade em saber como tudo se tinha passado em relação à morte do “avô”. É verdade que mal o conhecia, tinha perto de dois anos quando o Maciel “partiu para o estrangeiro”, mas tinha curiosidade, nada que Helga não tivesse previsto, assim como, aproveitava para que Dário também ficasse “esclarecido”. 
Helga contou-lhes como Maciel tinha chegado em segredo e depois de se hospedar num hotel, deu imediatamente entrada no hospital, com um AVC. Talvez tivesse regressado com a ideia legítima de morrer na sua terra. Helga continuou com a mentira que inventara, dizendo que só teve conhecimento do seu falecimento por um telefonema do hotel, uma vez que encontraram nas coisas dele o seu contacto. Maciel tinha deixado uma carta para o caso de uma fatalidade, onde dizia que não queria incomodar ninguém, pois era desejo dele, que a cerimónia fúnebre fossem o mais simples possível e sem publicidade. O que a levou a tratar de tudo sozinha, uma vez que o marido se encontrava ausente em Roma, apenas o editor de Maciel lhe prestou a ajuda burocrática e necessária nestas ocasiões. Restava aquele saco que lhe foi entregue pelo próprio hotel, pois era a única bagagem do escritor desaparecido, tirando uma mala de roupa que logo se desfez, entregando-a a uma instituição de caridade da cidade.
Ficou assim esclarecido todo o mistério da morte de Maciel. Dário absorvido pelo seu trabalho, nunca mais pensou no assunto mas… Diogo não ficou muito convencido da explicação da mãe, apenas por um pormenor que foi a grande falha de Helga nesta enorme mentira. Naquele saco não havia, um passaporte, um postal, uma foto do local onde Maciel tinha vivido, nada que “disse-se”, por onde andou tantos anos.

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