quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTOS E OUTROS

 




O JOGO “FREE-CELL”
 
 
 

Aos taradinhos dos jogos de computador


 
  Pode-se jogar de tudo em computador, desde os jogos mais sofisticados até àqueles mais simples, passando pelos mais conhecidos como o xadrez, as damas, as cartas, estas de milhentas formas.
   Muitos destes jogos compram-se, outros jogam-se pela net, mas alguns deles já vêm nos próprios programas é o caso deste de que vos vou falar.
  A Microsoft Corp. Tem no seu ambiente do Windows, um jogo chamado “FreeCell” de autoria de Jim Home, composto de um baralho de cartas distribuídas por 8 colunas e tem por finalidade colocá-las por naipes ordenadamente, da mais baixa para a mais alta em quatro casas vazias, contando para isso, com outras quatro células vazias para ajudar na sua movimentação.
  O jogo tem várias formas diferentes à escolha, assim, pode-se seleccionar desde o 00.001 até 32.000. Para jogar todos eles, o Daniel durante o ano de 2000 jogou 10 jogos por dia em 320 dias.
  Como já se estava a tornar um viciado neste jogo, no ano seguinte optou por jogar um por dia e sempre o referente à data, por exemplo: No dia 24 de Agosto jogou o n.º 2408, a 11 de Novembro o n.º 1111. Assim sucessivamente de Janeiro a Dezembro, mas... só jogou 365 jogos dos 32.000 possíveis.
  Em 2002 optou para escolher o jogo diariamente de uma forma muito pouco ortodoxa, chegando ao disparate de fazer dum simples jogo de entretenimento, uma obsessão doentia. O “FreeCell” passou a ser para o Daniel um “Tarot”, ou uma forma de “ver” o que o futuro lhe reservava. Assim, formulando pequenos desejos, o Daniel escrevia em números (depois de fazer um simples código pessoal com palavras de cinco letras), tudo o queria saber de maior ou menor importância, conforme o jogo demorasse mais ou menos tempo a jogar, mesmo por vezes correndo o risco de ficar sem resposta, quando o jogo seleccionado não era concretizado na sua finalização e era abandonado por gastar o tempo normal para o efeito.
   Um dia, levado por uma paixão secreta que então nutria por alguém, jogou o número1358, ou seja, o correspondente à palavra ”Amor”: O n.º 1 era o A; 13 era o M; 15 era o O; e o 18 era o R. Assim obteve o 1131518, mas como só podia ter cinco números, eliminou os três casas das dezenas em cada letra e ficou com o 1358. Seria sempre este o critério a adoptar futuramente noutras “perguntas” ao seu Tarot privativo.
    Ao fim do tempo por ele mesmo imposto para a conclusão de qualquer jogo (30 minutos), não conseguiu concretiza-lo e ficou desanimado com o desfecho. A partir dessa hora pensou que o seu amor não era correspondido. Triste, passou o dia a cismar:  
   – Porquê? Será que ela ainda não compreende quanto gosto dela? – Começou a sentir então uma ansiedade enorme que o dia seguinte chegasse, para novamente jogar o 3158. Mas... também não conseguiu finalizar o jogo. Quis dar mais tempo, mas pensou que não seria justo fugir do regulamento por ele mesmo imposto, não era coerente. Por coincidência ou não, ela não atendia os seus telefonemas, não respondia ás suas mensagens e como residia longe, ele não a via há semanas.
   Andava abatido, a sua tristeza era cada vez maior e transformava-se em revolta, ao ponto de nem sequer jogar o seu jogo com medo de novas recusas que só viriam aumentar a sua desolação.
   Quando decidiu voltar a jogar ao fim de quase um mês de interregno, o Daniel com toda a raiva que ainda sentia, descarregou a sua ira no FreeCell. Assim, compôs no seu código pessoal uma pilha de palavras insultuosas, desde “Doida” (45941), “Burra” (21881), até “Vadia” (11491). Jogos que decifrou com facilidade, e lhe vinham dar razão que a “tal” por quem se apaixonara, não passava disso mesmo, ela era tudo aquilo que os seus impropérios de raiva lhe diziam, através do seu “ Tarot” pessoal.                         
   Daniel era agora a vítima do jogo que ele próprio criou, a sua obsessão ia aumentando, entrou então numa fase onde só se via na cama com a sua secreta paixão. Como o fruto proibido é sempre o mais desejado, o sexo ocupava-lhe agora a mente ao ponto de na sua obsessão, codificar as mais diversas posições “qual Kamasutra”, com a sua amante. Começou então a jogar o “FreeCell” como se tratasse de sexo virtual. Trocava de posição mais que uma vez: Cima, baixo, em pé, cama, mesa, etc. Jogando jogos e mais jogos, até quase atingir orgasmos imaginários.
  Andou assim durante semanas, até que um dia levado pela sua utopia e sentindo um desejo louco de levar à prática os sonhos em que se envolvera, arriscou voltar a jogar o tal número do “amor”, o 1358, aquele que o tinha levado (virtualmente) ao seu maior desgosto de amor. E pasme-se! Com a maior das facilidades o concluiu em menos de vinte minutos. Pôs-se então a pensar como a vida é tão simples e como nós próprios a complicamos.
  Ainda esboçou o gesto de pegar no telemóvel, a sua vontade era telefonar-lhe, dizer-lhe que a amava e tinha saudades dela, que lhe perdoasse a sua impaciência e falta de confiança. Mas não, pensou melhor e sorriu falando consigo próprio:
   – Sei que pertence a outro, que são felizes (ainda ontem me vieram dizer), não tenho o direito de me intrometer na sua vida, afinal eu fui o culpado de a ter misturado num jogo que não era o dela, depois, como dizia a minha avó: – O que for meu à minha mão vem ter – Só tenho uma coisa a fazer...
  Daniel chegou o teclado do computador para si e foi a “Remover Programas”, procurou o “FreeCell” e teclou, enviando-o para “Reciclagem”, ainda foi à “Reciclagem” e teclou “Esvaziar Reciclagem” para que não ficassem dúvidas do seu gesto. Nunca mais jogou o “FreeCell”, mas quando ainda hoje a encontra na rua, vê nos olhos dela ases de ouros de uma cor verde azulada e nos seus, ficam ainda copas vermelhas como corações que choram.
 

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