CONTOS E OUTROS
O JOGO “FREE-CELL”
Aos taradinhos dos jogos de
computador
Pode-se jogar de tudo em
computador, desde os jogos mais sofisticados até àqueles mais simples, passando
pelos mais conhecidos como o xadrez, as damas, as cartas, estas de milhentas
formas.
Muitos destes jogos
compram-se, outros jogam-se pela net, mas alguns deles já vêm nos próprios
programas é o caso deste de que vos vou falar.
A
Microsoft Corp. Tem no seu ambiente do Windows, um jogo chamado “FreeCell” de
autoria de Jim Home, composto de um baralho de cartas distribuídas por 8 colunas
e tem por finalidade colocá-las por naipes ordenadamente, da mais baixa para a
mais alta em quatro casas vazias, contando para isso, com outras quatro células
vazias para ajudar na sua movimentação.
O jogo tem várias formas
diferentes à escolha, assim, pode-se seleccionar desde o 00.001 até 32.000.
Para jogar todos eles, o Daniel durante o ano de 2000 jogou 10 jogos por dia em
320 dias.
Como já se estava a
tornar um viciado neste jogo, no ano seguinte optou por jogar um por dia e sempre
o referente à data, por exemplo: No dia 24 de Agosto jogou o n.º 2408, a 11 de
Novembro o n.º 1111. Assim sucessivamente de Janeiro a Dezembro, mas... só
jogou 365 jogos dos 32.000 possíveis.
Em 2002 optou para escolher o jogo
diariamente de uma forma muito pouco ortodoxa, chegando ao disparate de fazer
dum simples jogo de entretenimento, uma obsessão doentia. O “FreeCell” passou a
ser para o Daniel um “Tarot”, ou uma forma de “ver” o que o futuro lhe
reservava. Assim, formulando pequenos desejos, o Daniel escrevia em números
(depois de fazer um simples código pessoal com palavras de cinco letras), tudo
o queria saber de maior ou menor importância, conforme o jogo demorasse mais ou
menos tempo a jogar, mesmo por vezes correndo o risco de ficar sem resposta,
quando o jogo seleccionado não era concretizado na sua finalização e era
abandonado por gastar o tempo normal para o efeito.
Um
dia, levado por uma paixão secreta que então nutria por alguém, jogou o
número1358, ou seja, o correspondente à palavra ”Amor”: O n.º 1 era o A; 13 era
o M; 15 era o O; e o 18 era o R. Assim obteve o 1131518, mas como só podia ter
cinco números, eliminou os três casas das dezenas em cada letra e ficou com o
1358. Seria sempre este o critério a adoptar futuramente noutras “perguntas” ao
seu Tarot privativo.
Ao fim do tempo por ele mesmo imposto
para a conclusão de qualquer jogo (30 minutos), não conseguiu concretiza-lo e
ficou desanimado com o desfecho. A partir dessa hora pensou que o seu amor não
era correspondido. Triste, passou o dia a cismar:
– Porquê? Será que ela ainda não
compreende quanto gosto dela? – Começou a sentir então uma ansiedade enorme que
o dia seguinte chegasse, para novamente jogar o 3158. Mas... também não
conseguiu finalizar o jogo. Quis dar mais tempo, mas pensou que não seria justo
fugir do regulamento por ele mesmo imposto, não era coerente. Por coincidência
ou não, ela não atendia os seus telefonemas, não respondia ás suas mensagens e
como residia longe, ele não a via há semanas.
Andava abatido, a sua tristeza era cada
vez maior e transformava-se em revolta, ao ponto de nem sequer jogar o seu jogo
com medo de novas recusas que só viriam aumentar a sua desolação.
Quando decidiu voltar a jogar ao fim de
quase um mês de interregno, o Daniel com toda a raiva que ainda sentia,
descarregou a sua ira no FreeCell. Assim, compôs no seu código pessoal uma
pilha de palavras insultuosas, desde “Doida” (45941), “Burra” (21881), até
“Vadia” (11491). Jogos que decifrou com facilidade, e lhe vinham dar razão que
a “tal” por quem se apaixonara, não passava disso mesmo, ela era tudo aquilo
que os seus impropérios de raiva lhe diziam, através do seu “ Tarot”
pessoal.
Daniel era agora a vítima do jogo que
ele próprio criou, a sua obsessão ia aumentando, entrou então numa fase onde só
se via na cama com a sua secreta paixão. Como o fruto proibido é sempre o mais
desejado, o sexo ocupava-lhe agora a mente ao ponto de na sua obsessão,
codificar as mais diversas posições “qual Kamasutra”, com a sua amante. Começou
então a jogar o “FreeCell” como se tratasse de sexo virtual. Trocava de posição
mais que uma vez: Cima, baixo, em pé, cama, mesa, etc. Jogando jogos e mais
jogos, até quase atingir orgasmos imaginários.
Andou assim durante semanas, até que
um dia levado pela sua utopia e sentindo um desejo louco de levar à prática os
sonhos em que se envolvera, arriscou voltar a jogar o tal número do “amor”, o
1358, aquele que o tinha levado (virtualmente) ao seu maior desgosto de amor. E
pasme-se! Com a maior das facilidades o concluiu em menos de vinte minutos.
Pôs-se então a pensar como a vida é tão simples e como nós próprios a
complicamos.
Ainda esboçou o gesto de pegar no
telemóvel, a sua vontade era telefonar-lhe, dizer-lhe que a amava e tinha
saudades dela, que lhe perdoasse a sua impaciência e falta de confiança. Mas
não, pensou melhor e sorriu falando consigo próprio:
– Sei que pertence a outro, que são felizes
(ainda ontem me vieram dizer), não tenho o direito de me intrometer na sua
vida, afinal eu fui o culpado de a ter misturado num jogo que não era o dela,
depois, como dizia a minha avó: – O que for meu à minha mão vem ter – Só tenho
uma coisa a fazer...
Daniel chegou o teclado do computador
para si e foi a “Remover Programas”, procurou o “FreeCell” e teclou, enviando-o
para “Reciclagem”, ainda foi à “Reciclagem” e teclou “Esvaziar Reciclagem” para
que não ficassem dúvidas do seu gesto. Nunca mais jogou o “FreeCell”, mas
quando ainda hoje a encontra na rua, vê nos olhos dela ases de ouros de uma cor
verde azulada e nos seus, ficam ainda copas vermelhas como corações que choram.
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