2º CAPITULO
A dona Constança vivia sozinha, desde que enviuvara em 1978 e seu único filho emigrara para o Canadá, já á tantos anos… que só conhecia a neta por fotografia e que devia ter quase a idade da Nádia a quem se afeiçoou como uma avó extremosa. A Nádia também nunca lhe dera problemas, era cumpridora com os costumes e os horários da casa, afectuosa com ela, e à dona Constança, sempre lha dava jeito aquele dinheirinho ao fim do mês, a reforma era parca e o que seu filho depositava religiosamente no banco, não era lá grande coisa.
A Casa era muito acolhedora com uma decoração anos 60 e uma lareira em granito, cujo lambril estava repleto de molduras antigas da família. Uma moldura maior que as outras, chamou a atenção da Nádia, a foto ter sido tirada no jardim do antigo aeroporto de Luanda o “Aeroporto Craveiro Lopes”. A senhora Constança mostrou-lhe quem eram aqueles quatro militares:
— Estes três amigos do meu marido, junto com ele, eram “Os Malucos” assim se intitulavam por andarem sempre os quatro juntos, e o nome é feito com o nome deles; Repara: “OS” do meu finado Osvaldo + “MA” de Marcelo + “LU” de Luciano + “COS” de Costa. Estes amigos vieram cá almoçar muitas vezes, são todos de cá da cidade, mas já não os vejo há muitos anos, desde o funeral do meu finado Osvaldo em Agramonte. Sabes Nádia, é curioso, como o teu amigo Joel tem muitas parecenças com o Marcelo, já estive para lhe perguntar, o rosto e o jeito dele… faz-me muito lembrar o Marcelo, depois é muito educado e simpático o teu amigo.
A escritora Margarida Rebelo Pinto tem um livro com o título: “Não Há Coincidências”, eu cá tenho as minhas dúvidas, ou então trata-se do tal destino que anda por aí… Conheci muito bem a Constança e os seus cozinhados. Era uma mulher muito bonita, trabalhou na “Fábrica de Fiação do Jacinto” ali na rua da Torrinha, que depois passou para a Maia, onde em 1974 entrou em autogestão depois de grande luta dos trabalhadores onde a Constança esteve de pedra e cal.
Claro que eu fiz parte de “Os Malucos”, esse quarteto que se conheceu na recruta na Serra da Carregueira e jamais se separou até ao final da comissão no ultramar. Éramos confidentes uns dos outros, conhecíamo-nos tão bem que bastava um ter problemas e logo os outros ajudavam no que fosse preciso, fosse o que fosse, por isso éramos os Malucos. Pertencíamos a uma geração de sacrifício, nascidos no após guerra, muitas vezes passamos fome e andamos descalços passeando por uma meninice que nunca tivemos, pois fomos adultos muito cedo. Era uma época em que muitos portugueses davam o ”salto”, emigrando e sacrificando-se a nunca mais verem a família, sem poderem entrar mais no seu país. Eram os desertores do sistema fascista, como o Sérgio Godinho, José Mário Branco, Manuel Alegre e tantos outros. Mas milhares de homens foram à guerra, na esperança de voltarem um dia inteiros. Para isso, contavam com a preciosa “ajuda” psicológica do MNF (Movimento Nacional Feminino) onde as hipócritas esposas dos grandes senhores do governo, de avental aos folhos, propagandeavam a guerra e a “caridadezinha”, oferecendo medalhinhas de Fátima em alumínio, maços de tabaco “Português Suave”, isqueiros com a cruz vermelha, (a que os militares chamavam: “fogareiros do mato”), livros da colecção “Vampiro” (vá lá!..) e “Aerogramas” azuis e amarelos. Todo este ramalhete era rematado com um: «Boa Sorte, até ao seu regresso!», e tinha como cenário o cais de Alcântara, com a Vera Cruz atracado, barreiras de ferro e muitos polícias a postos, para não deixar passar aquelas que iriam ficar viúvas, órfãos ou sem os seus filhos. Aquelas que chorando em altos gritos acenavam de lenço branco, numa despedida aflitiva dos seus ente queridos. Muitas mordendo os lábios de raiva, inconformadas mas impotentes perante o roubo que lhe faziam, sem arredarem o pé, até o paquete da C.C.N. Companhia Colonial de Navegação, (com capacidade para 800 passageiros, transformado em transportador de carne para canhão, levava agora 2000 homens para a guerra), desaparecer no horizonte. Quanto às senhoras “caridosas” do MNF, essas voltavam aos seus lares palacianos, aos chás dançantes, às tardes de “canastra”, ao escândalo do Ballet Rose, às “Misses" da Vera Lagoa, às comemorações do 10 de Junho (com medalhas a titulo póstumo), ao nacional cançonetismo dos reis e rainhas da rádio, ao Benfica e ao Sporting que eram sempre campeões, a Fátima que era a guardião dos “ventos de leste”, aos inquisidores da Pide que assassinaram Humberto Delgado, á censura dos filmes, dos livros, das exposições e peças de teatro. Longe, muito longe dos bairros de lata, da fome e das cadernetas de sanidade das prostitutas. Da emigração clandestina para França, (a pé, atravessando a raia por montes e rios fugindo da GNR, guiados por “passadores” que ganhavam a vida abusando das mulheres dos outros e untando as mãos dos guardas fronteiriços). Enfim, aos brandos costumes e ao marasmo dum povo amordaçado, vivendo no medo de ser “bufado” por um vizinho e ser acordado de madrugada, para um passeio até à rua do Heroísmo, para ser interrogado sobre coisas que não sabia se sabia. Mas o demónio da guerra existiu: Que o diga o Arnaldo que tem um furo no pé; O Augusto que chorava às escondidas, com remorsos de ser obrigado a atirar granadas para uma cubata cheia de gente “turras”; O Seixas que ainda anda em tratamento na hospital Magalhães Lemos; O Zeca alentejano, que roubou uma Walther e na enfermaria deu um tiro boca, por ter a cabeça da piça a cair de podre com um esquentamento apanhado no BO (Bairro Operário); Ou o Fernando que se enforcou com o cinto nos ferros do beliche, quando soube que a mulher lhe pôs os cornos e estava grávida de cinco meses, quando ele estava na guerra à ano e meio. Tudo isto, só porque foram obrigados a lutar numa terra distante, no outro lado do mar, para morrer nas emboscadas no mato, pelas minas, pelo paludismo, pela sede e pela saudade. Tudo para defender um chão que não era nosso, dando a vida pela riqueza dos outros, defendendo as sanzalas e as costas, dos grandes senhores, dos mesmos que diziam aos soldados: «Vão-se embora, não os chamámos cá» mas que fugiram a sete pés para a metrópole, quando os militares abandonaram Angola depois da independência, para serem sustentados anos e anos, com os subsídios do célebre IARN (Instituto de Apoio aos Retorno de Nacionais) em hotéis, pensões, etc. Os chamados “Retornados” que mais tarde se auto-denominaram: ”Espoliados das ex-colónias”, quando exigiram ao estado indemnizações por todas as perdas que tiveram com a descolonização. Sei que houveram muitos com razão, conheci alguns desesperados com a desgraça que os atingiu, mas a maior parte eram egotistas e mais oportunistas. Se não queriam a descolonização para que fugiram? Não se davam bem com os naturais da terra? Não os tratavam como se fossem da família? Porque não ficaram lá? Claro que não falam da forma como maltrataram (os pretos, como diziam), durante anos e anos de colonização, levando-os ao ódio, escravizando-os ao ponto de os fazerem revoltar contra nós, em busca da dignidade que dia a dia lhe roubavam. Muitos desses colonos que choram o património que lá deixaram, muito à custa de manobras duvidosas, e do trabalho de escravos, dizem hipocritamente que não havia racismo, enquanto lhes davam “porrada” e repressão, em troca de meia dúzia de tostões e latas de restos para dar de comer aos filhos. Explorando-os com tudo, até com o artesanato de madeira, comprando (a dez reis de mel coado) na esplanada da “Portugália”, obras escultóricas que faziam crer que nada valiam, para depois decorarem as suas vivendas na metrópole. Por exemplo: Não seria por causa da cor da pele, que o sargento Ramos, na repartição do quartel, mandava o “canuco Zézé”, engraxar as botas dos oito militares da repartição, e depois lhe pagava apenas vinte e cinco tostões de um par, em vez de vinte e cinco vezes oito? E depois... durante muitos anos, alguns desses retornados viveram à grande, com criados para tudo, desde amas para os filhos, até às que abriam as pernas para saciar os senhores feudais de chicote em punho. Durante centenas de anos viveram assim, nessa terra abençoada, que desde o marisco à fruta tudo era a rodos. Enquanto na metrópole a maioria do povo vivia á mingua, destroçado, triste e com fome, calados pela PIDE, amordaçados pela censura e o “aviso prévio”, obrigado a lutar para defender um império podre onde a teoria fascista de Salazar em relação às províncias ultramarinas era: ”Portugal Uno e Indivisível”.
Sem comentários:
Enviar um comentário