terça-feira, 20 de outubro de 2020

O ANJO VERMELHO




TERCEIRO



 
Todos aqueles autores das estantes, tinham-lhe sido apresentados por Maciel. De alguns, guarda boas recordações. Ali estava a Lolita de Vladimir Nobokov, que muita a impressionou pela (quase) semelhança consigo. No grande amor que Maciel lhe devotava e principalmente no aceitar de total e livre vontade aquela relação (quase?) incestuosa, pelo grande amor que tinha a Maciel, mas que fazia toda a diferença de Lolita.
Helga nunca conheceu o seu pai, Maciel era apenas o homem com quem sua mãe viveu durante alguns anos, numa relação um pouco ambígua de marido e amante, pois sempre notara da parte de sua mãe, um certo mistério, uma ténue fragrância a segredo por revelar, que se notava por entre palavras que nunca eram ditas mas insinuadas levemente pelo subconsciente da mãe. Nunca conseguiu decifrar o enigma, umas vezes para não ferir a susceptibilidade dela com perguntas sobre um passado que não lhe dizia respeito, outras por manter a indelével esperança que um dia se saberia.     
Muitos anos depois, numa conversa com Maciel, ainda aludiu a esta impressão sua, mas nada soube, pois Maciel também de nada sabia, embora, acabou por confessar, sentisse uma vaga impressão desse mesmo mistério, principalmente quando Mariana parecia lhe querer dizer algo que nunca chegou a dizer. Como sempre na vida acontece, quando adiamos as coisas indefinidamente, a vida acaba um dia sem fazermos o que gostávamos de fazer.
Enquanto empacotava cuidadosamente os livros que ia tirando da estante, Helga recordava em cada um as personagens, os momentos em que foram lidos e aquele encanto especial que se sente (quem aprecia ler um bom livro), de entrar nele, fazer parte e viver nele durante o tempo da sua leitura. Depois, sentir o vazio de chegar ao fim como se perdesse alguém muito querido, fechá-lo e ficar a olhá-lo com olhos de afago saboreando aquela sensação tão boa de quem viveu noutra galáxia. Embora o melhor que têm os livros, é que sempre podemos voltar para dentro deles, basta pegar da estante, abri-lo, relê-lo e tornar a fazer parte dele como por encanto.
Distraída, Helga passava as mãos por eles com ternura, com a saudade já colada ao corpo e aos olhos, por momentos que nunca mais iriam voltar. Nada seria igual sem Maciel. Recordava Camilo, Eça, Eugénio, Sophia, Nobre, Cesário e Botto. Acariciava Malraux e Sartre, Víctor Hugo e Camus. Lembrava-se de Gorky, Tolstoy, Pasternak (e a sua Lara). Começava agora a sentir a solidão de Garcia Marques, a tristeza de Isabel Allende e a nostalgia de Steibeck.
Na vida, sem Maciel a seu lado, Morávia, Kundera, Hemingway ou Borges, não tinham o mesmo sentido. Terminara o livro mais importante para ela, uma história de amor, tal como outras histórias de amor, Maciel e Helga tinha uma capa de couro com letras gravadas a ouro, narrando uma vida feita de desejos concedidos, felicidade partilhada, prazeres atingidos, cumplicidades vividas e amor, muito amor á mistura. Restava-lhe a saudade e as suas pesquisas científicas, mas também o filho e o marido, talvez agora os pudesse compensar de tantos momentos de menos atenção. Embora com Dário houvesse quase um pacto, ele sabia que não o amava, tinha sido uma ligação “arranjada” entre as suas mães, conveniência que agradou aos dois, ele porque era divorciado e vinha de uma relação bastante tortuosa, a mulher tinha-o abandonado dezoito meses depois de casado. Ela porque lhe convinha tapar-o-sol-com-a-peneira, para poder manter aparências e pretextos (naquele tempo era assim!). Desde a sua estada em Londres que tudo se precipitara, tinha engravidado depois de uma noite numa louca festa de alunos, onde não faltou muito álcool com marijuana à mistura e sobretudo sexo.       
Helga entre 70/72, fez a sua especialização em bioquímica de investigação, com uma bolsa de estudo conseguida com as boas notas que obteve no seu curso, as melhores desse ano na faculdade. Nas férias de 72, tinha vinte anos, contou à mãe o sucedido, estava com quase 6 semanas de gravidez. Mariana sem entrar em pânico, levou-a à mesma mulher que à vinte anos atrás conheceu e quase impediu a Helga de nascer. Pegou nas economias que tinha e levou-a a fazer um aborto clandestino, como centenas deles infelizmente se fazem, sem a devida protecção médica, só porque neste país adiado o aborto ainda era tabu. Maciel só soube depois do acto consumado, quando Mariana tirou férias no mesmo mês de Julho para olhar pela filha até lhe restituir as cores de menina saudável.
Sem hesitar, Mariana congeminou maneira de convidar a sua amiga Ondina e o filho Dário para um almoço lá em casa. Foi num domingo de calor e minha mãe caprichou na sua receita de frango com cerveja, que deixou todos a chorar por mais. O Maciel tratou dos vinhos e no final, no momento das sobremesas, como pela boca morre o peixe, palavra puxa intenção e a Helga partiu para Londres noiva do Dário. Este era corrector de seguros, ganhava razoavelmente bem, era uma figura de homem aceitável, educado, afável e discreto como convinha. No natal desse mesmo ano, Helga casou na conservatória e foi viver com o marido para o apartamento que este tinha de vago, desde o seu desastre conjugal.       
Helga voltou de Londres dois meses depois, para terminar a sua especialização e completar o seu doutoramento, regressou com o canudo e com um empurrão de Maciel, ingressou no I.M. do Porto como estagiária e aí consolidou a sua posição como investigadora até aos dias de hoje. Do seu curriculum fazem parte alguns prémios, mas o principal é o de Jovem Investigadora da Organização Suiça de Biologia Molecular em 1975.

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