quarta-feira, 21 de outubro de 2020

CONTOS E OUTROS


 



ALMA ROSA

 
 
 
Dedicado à memória de
Alzira Maria Moreira dos Santos
Falecida em 5-01-1997
 
 
                                         
 
 
    O ambiente era de consternação, na sede da antiga Associação de Fadistas do Norte e hoje simplesmente, “Casa do Fado do Norte”.
    Ouvia-se muito baixinho em todas as salas, fados que “ela” cantava. A dor de a perder tão repentinamente, tinha-nos abalado a todos, embora fosse de esperar tal desenleasse, olhando aos caminhos que ultimamente trilhava. Tinha sido agarrada pelo flagelo do vício. Longe iam os tempos de esplendor, como aquela entrada fulgurante na sala do famoso “Kilumba”, de vestido vermelho e sapato alto, de xale negro, cabelo cumprido num rosto lindo de lábios cor de carmim, a cantar com raça e altivez: “Era o que faltava”. 
   A sala principal do restaurante estava deserta, apenas uma ténue luz vermelha, sobre o estrado onde normalmente tocavam os guitarristas, iluminava as duas cadeiras onde numa delas, repousava uma guitarra, e nas costas da outra, um xale negro bordado a prata, com longos frocos de seda que chegavam ao chão, e sobre ele, um lindo par de brincos de filigrana em ouro, ao lado de uma rosa branca onde finas gotas de orvalho teimavam em não secar.
   Na sala onde funcionava o bar e a cafetaria, local de maior assiduidade e principal ponto de encontro dos sócios, podia-se ver na parede, junto aos retratos do Aurísio Gomes, do José Loureiro, do Tony Gomes e outros, mais uma moldura, (adornada de camélias brancas) que vinha aumentar a denominada: ”Galeria da saudade”, por baixo, tal como as outras que a procediam, tinha uma etiqueta de prata onde se podia ler: “ Alzira Maria Moreira dos Santos (Alma Rosa) Fadista” (9.Julho.1958 – 5.Janeiro.1997).
   Tinha sido assim, roubada à vida, uma das maiores fadistas desta cidade, oriunda do bairro da Sé e filha de uma grande senhora do fado a América Rosa.
           
   Eram 15h de terça-feira dia 6 de Janeiro, quando ao sair da Capela dos Alfaiates na rua do Sol, para o cemitério do Prado do Repouso, a Alma Rosa levou (na morte), a mais estrondosa salva de palmas de toda a sua vida. Da Sé à Praça da Batalha o trânsito parou, para homenagear a maior voz do fado que o Porto teve. Havia lágrimas nos olhos, não só daqueles que gostavam de a ouvir, mas também dos que com ela conviveram mais de perto; Guitarristas que para ela tocaram; Colegas que com ela cantaram; Poetas que para ela escreveram e dela fizeram a sua musa e paixão mais secreta; Gente anónima que pedia os seus discos nas rádios, e comprava as sua cassetes nas feiras e discotecas.
   Não faltaram até representantes de todas as casa de fado da cidade por onde ela passou, desde o “Fado”, a “Mariquinhas”, o “Pátio”, o “Mal Cozinhado”, a “Taverna”, o “Moleiro” e tantas mais.
   Registei ainda com agrado, a presença de algumas rádios da região do Grande Porto; O José Neves director da Rádio Festival, e coordenador do famoso programa “ O Senhor Fado”; A Florência directora da Rádio de Matosinhos e insigne fadista; O Adelino Peixoto, autor e coordenador do Programa “Vamos ao Fado” da Rádio Atlântica de Matosinhos. E muita, muita gente que de uma maneira ou de outra com ela conviveu, desde operadores de som a simples empregados de mesa dos mais diversos restaurantes e casas da espectáculos. Claro não podia faltar, toda a direcção e mais associados da prestigiada “Casa do Fado do Porto”, digna representante do fado no norte.
   A nível autárquico, tomaram parte na cerimónia fúnebre, os presidentes das Juntas de freguesia da Sé, Campanhã e S. Nicolau, assim como a Dra. Manuela de Melo em representação da C.M. do Porto. Ausente do país, estava o Senhor Governador Civil do Porto, que via fax, ordenou que a bandeira estivesse a meia haste no edifício do Governo Civil, que fica defronte da Capela dos Alfaiates, enquanto durassem as cerimónias fúnebres.  
   Naquela tarde de Janeiro um cortejo fúnebre de centenas de pessoas, prosseguia pelo jardim de S. Lázaro, atrás do carro funerário, quatro guitarristas tocavam o “Nocturno” em surdina e as pessoas nos passeios acenavam com lenços brancos. Junto ao portão do cemitério muita gente se tinha aglomerado, o largo Baltazar Guedes era pequeno para tantas pessoas se despedirem da grande voz do Fado do norte. As autoridades tentavam suster a multidão, que apesar que não arredava pé. À chegada do cortejo o povo entoava em coro: “Fui Falar de Paz ao Mundo”, um lindo fado que terminava com: — Minha mãe maldita a hora....
   Depois de repente o silêncio. A urna coberta com a bandeira do “Rosas da Sé” entrava no campo santo, levada por seis amigos. Uma voz na multidão cantou:
   Anda ver, vem daí
   Anda ver... É a Sé que linda a passar...
   E de novo o silêncio, só o arrastar dos pés e o soluçar dos peitos. A América Rosa toda de negro, amparada por uma das netas e pelo Nicolau Rocha, seguia logo atrás. As guitarras calaram-se, e já no local onde ia ser depositado o féretro, Carlos M. Cruz fez o elogio fúnebre da Alma Rosa, onde enalteceu a sua voz e culpou o destino do seu prematuro desaparecimento. Leu em seguida um poema meu, que no entender dele, retracta fielmente a falecida, assim:
        A alma que a Alma tinha
        Na sua voz donairosa.
        Era a raça que lhe vinha
        De ser mais Alma que Rosa
           
        Cantou o fado dos fados
        O “menor” como ninguém
        Cantou de olhos fechados
        No ventre de sua mãe
        Depois a vida enganou-a
        Ao dar-lhe caminho errado
        Deu-lhe glória e a coroa
        E destino desgraçado
            
        E como o luar d’Agosto
        Que encerra tanta beleza
        Se o fado tivesse um rosto
        Era o dela com certeza
       
  No final, terminou com:
  — Que a Alma da Alma, descanse em Paz!
  Todos os presentes responderam: Amem!
  A urna descia à terra, ao som do pranto das filhas e mais parentes, quando por entre lágrimas e de voz embargada, a mãe disse:
  — Deus ma deu, Deus ma levou.
  A bandeira azul escura, de guitarra dourada sob a imagem da senhora da Vandoma ao centro, e no canto superior direito uma meia-lua evocando a noite, com letras douradas em arco, lia-se: CASA DO FADO DO PORTO, e ainda em letras mais pequenas: Associação Fundada em 11 de Novembro de 1996. Esteve esta bandeira, sete dias a meia haste, porque assim foi aprovado por unanimidade, em reunião de direcção.
   Todos os anos pelos fiéis, vou à secção 21 do Cemitério do Prado do Repouso, pôr uma flor na campa de mármore N.º 2400/97.
   Ninguém ouve, quando lhe digo (se bem que não deve ser só a minha opinião!) muito baixinho:
   — Sabes Alma Rosa, ainda és a rainha do Fado no norte, o trono está vazio, ainda não apareceu quem cante o fado com o estilo como tu cantavas.
 

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