CONTOS E OUTROS
ALMA ROSA
Dedicado à memória de
Alzira Maria Moreira
dos Santos
Falecida em 5-01-1997
O ambiente era de consternação, na sede da
antiga Associação de Fadistas do Norte e hoje simplesmente, “Casa do Fado do
Norte”.
Ouvia-se muito baixinho em todas as salas,
fados que “ela” cantava. A dor de a perder tão repentinamente, tinha-nos abalado
a todos, embora fosse de esperar tal desenleasse, olhando aos caminhos que
ultimamente trilhava. Tinha sido agarrada pelo flagelo do vício. Longe iam os
tempos de esplendor, como aquela entrada fulgurante na sala do famoso
“Kilumba”, de vestido vermelho e sapato alto, de xale negro, cabelo cumprido
num rosto lindo de lábios cor de carmim, a cantar com raça e altivez: “Era o
que faltava”.
A sala principal do restaurante estava
deserta, apenas uma ténue luz vermelha, sobre o estrado onde normalmente
tocavam os guitarristas, iluminava as duas cadeiras onde numa delas, repousava
uma guitarra, e nas costas da outra, um xale negro bordado a prata, com longos
frocos de seda que chegavam ao chão, e sobre ele, um lindo par de brincos de
filigrana em ouro, ao lado de uma rosa branca onde finas gotas de orvalho
teimavam em não secar.
Na sala onde funcionava o bar
e a cafetaria, local de maior assiduidade e principal ponto de encontro dos
sócios, podia-se ver na parede, junto aos retratos do Aurísio Gomes, do José
Loureiro, do Tony Gomes e outros, mais uma moldura, (adornada de camélias
brancas) que vinha aumentar a denominada: ”Galeria da saudade”, por baixo, tal
como as outras que a procediam, tinha uma etiqueta de prata onde se podia ler:
“ Alzira Maria Moreira dos Santos (Alma Rosa) Fadista” (9.Julho.1958 –
5.Janeiro.1997).
Tinha sido assim, roubada à
vida, uma das maiores fadistas desta cidade, oriunda do bairro da Sé e filha de
uma grande senhora do fado a América Rosa.
Eram 15h de terça-feira dia 6 de Janeiro,
quando ao sair da Capela dos Alfaiates na rua do Sol, para o cemitério do Prado
do Repouso, a Alma Rosa levou (na morte), a mais estrondosa salva de palmas de
toda a sua vida. Da Sé à Praça da Batalha o trânsito parou, para homenagear a
maior voz do fado que o Porto teve. Havia lágrimas nos olhos, não só daqueles
que gostavam de a ouvir, mas também dos que com ela conviveram mais de perto;
Guitarristas que para ela tocaram; Colegas que com ela cantaram; Poetas que
para ela escreveram e dela fizeram a sua musa e paixão mais secreta; Gente
anónima que pedia os seus discos nas rádios, e comprava as sua cassetes nas
feiras e discotecas.
Não faltaram até
representantes de todas as casa de fado da cidade por onde ela passou, desde o
“Fado”, a “Mariquinhas”, o “Pátio”, o “Mal Cozinhado”, a “Taverna”, o “Moleiro”
e tantas mais.
Registei ainda com agrado, a
presença de algumas rádios da região do Grande Porto; O José Neves director da
Rádio Festival, e coordenador do famoso programa “ O Senhor Fado”; A Florência
directora da Rádio de Matosinhos e insigne fadista; O Adelino Peixoto, autor e
coordenador do Programa “Vamos ao Fado” da Rádio Atlântica de Matosinhos. E
muita, muita gente que de uma maneira ou de outra com ela conviveu, desde
operadores de som a simples empregados de mesa dos mais diversos restaurantes e
casas da espectáculos. Claro não podia faltar, toda a direcção e mais
associados da prestigiada “Casa do Fado do Porto”, digna representante do fado
no norte.
A nível autárquico, tomaram
parte na cerimónia fúnebre, os presidentes das Juntas de freguesia da Sé,
Campanhã e S. Nicolau, assim como a Dra. Manuela de Melo em representação da
C.M. do Porto. Ausente do país, estava o Senhor Governador Civil do Porto, que
via fax, ordenou que a bandeira estivesse a meia haste no edifício do Governo
Civil, que fica defronte da Capela dos Alfaiates, enquanto durassem as
cerimónias fúnebres.
Naquela tarde de Janeiro um
cortejo fúnebre de centenas de pessoas, prosseguia pelo jardim de S. Lázaro,
atrás do carro funerário, quatro guitarristas tocavam o “Nocturno” em surdina e
as pessoas nos passeios acenavam com lenços brancos. Junto ao portão do
cemitério muita gente se tinha aglomerado, o largo Baltazar Guedes era pequeno
para tantas pessoas se despedirem da grande voz do Fado do norte. As
autoridades tentavam suster a multidão, que apesar que não arredava pé. À
chegada do cortejo o povo entoava em coro: “Fui Falar de Paz ao Mundo”, um
lindo fado que terminava com: — Minha mãe maldita a hora....
Depois de repente o silêncio.
A urna coberta com a bandeira do “Rosas da Sé” entrava no campo santo, levada
por seis amigos. Uma voz na multidão cantou:
Anda ver, vem daí
Anda
ver... É a Sé que linda a passar...
E de novo o silêncio, só o
arrastar dos pés e o soluçar dos peitos. A América Rosa toda de negro, amparada
por uma das netas e pelo Nicolau Rocha, seguia logo atrás. As guitarras
calaram-se, e já no local onde ia ser depositado o féretro, Carlos M. Cruz fez
o elogio fúnebre da Alma Rosa, onde enalteceu a sua voz e culpou o destino do
seu prematuro desaparecimento. Leu em seguida um poema meu, que no entender
dele, retracta fielmente a falecida, assim:
A alma que a Alma tinha
Na sua voz donairosa.
Era a raça que lhe vinha
De ser mais Alma que Rosa
Cantou o fado dos fados
O “menor” como ninguém
Cantou de olhos fechados
No ventre de sua mãe
Depois a vida enganou-a
Ao dar-lhe caminho errado
Deu-lhe glória e a coroa
E
destino desgraçado
E como o luar d’Agosto
Que encerra tanta beleza
Se o fado tivesse um rosto
Era
o dela com certeza
No final, terminou com:
— Que a Alma da Alma, descanse em Paz!
Todos os presentes responderam: Amem!
A urna descia à terra, ao som do pranto das
filhas e mais parentes, quando por entre lágrimas e de voz embargada, a mãe
disse:
— Deus ma deu, Deus ma levou.
A
bandeira azul escura, de guitarra dourada sob a imagem da senhora da Vandoma ao
centro, e no canto superior direito uma meia-lua evocando a noite, com letras
douradas em arco, lia-se: CASA DO FADO DO PORTO, e ainda em letras mais
pequenas: Associação Fundada em 11 de Novembro de 1996. Esteve esta bandeira,
sete dias a meia haste, porque assim foi aprovado por unanimidade, em reunião
de direcção.
Todos os anos pelos fiéis, vou
à secção 21 do Cemitério do Prado do Repouso, pôr uma flor na campa de mármore
N.º 2400/97.
Ninguém ouve, quando lhe digo
(se bem que não deve ser só a minha opinião!) muito baixinho:
— Sabes Alma Rosa, ainda és a
rainha do Fado no norte, o trono está vazio, ainda não apareceu quem cante o
fado com o estilo como tu cantavas.
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