terça-feira, 27 de outubro de 2020

CHÁVENA COM HISTÓRIA


 




CAPÍTULO 8



GUIMARÃES
 
 
 
Chegou o ano de 1939 e a Noémia regressou a casa com o curso do Liceu e 18 anos feitos. Cecília, quase com 39, tinha casado com o Dr. Orlando o velho amigo e antigo advogado da família, que muito a tinha ajudado na liquidação da massa falida da fábrica e de toda a burocracia inerente à quitação. Ficou a viver lá em casa no quarto que era do falecido pai, não queria abandonar a mana mais nova. Nesse mesmo ano, enterraram a velhinha Joaquina com 73 anos, cheios de trabalho e canseira.
Leonor todos os anos passava as férias em S. Tiago, com o marido e os três filhos que agora tinha. A vida no campo corria na paz dos anjos, até que em Maio desse ano, surgem nos jornais as notícias do flagelo da Guerra na Europa, que se espalhou pelo mundo e provocou em Portugal enormes efeitos ao nível económico, social e político.
 
“Salazar no dia 1 de Setembro, declara a sua neutralidade no conflito e até 1940, o país mal sentiu os efeitos da guerra, mas a partir de 1941, começa a disputa do volfrâmio entre as potências beligerantes. A partir de 8 de Outubro de 1943, Portugal cedeu a base das Lages nos Açores aos EUA, mas continuou com a sua politica de neutralidade. Devido ao desequilíbrio dos sistemas de produção da maioria dos países europeus, Portugal ficou privado de importações e isto causou um aumento na produção nacional, mas também trouxe consigo o racionamento dos bens de primeira necessidade (arroz, açúcar, massa, etc.), o que fez disparar a inflação. Cada família, em função das pessoas que constituíam o agregado familiar, recebia mensalmente, senhas com que podiam fazer compras nas lojas tradicionais. Só havia direito a dois pães por dia por pessoa, formavam-se grandes filas às portas das padarias. As senhas eram vendidas a um preço imposto pelo Governo, mas o que é verdade, é que os produtos acabavam sempre por aparecer no mercado negro. A fome grassava nas ruas das cidades”.
 
 
 
PORTO
 
Foi neste cenário de grande privação, e depois de ter estado 11 anos no Refugio de Paralisia Infantil, que Maciel (agora com 16 anos) regressou a casa a andar de muletas. Não era o ideal, mas para quem por destino tinha andado de rastos, era uma boa maneira de enfrentar o mundo com alguma esperança. Tinha estudado até ao segundo, ano no colégio Brotéro na Foz, passou muito tempo na biblioteca do colégio, leu muito e com a inteligência que tinha, bem acima da média e com o seu dom para trabalhos manuais e desenho, não sentia medo de enfrentar a adversidade que o esperava. Não queria ser um peso para a mãe, apesar da sua condição. Sentia-se muitas vezes rejeitado pelas palavras cruas da mãe, quando desanimada da vida ficava de mau humor, mas ele nunca esmoreceu, com a simpatia pessoal, a educação e a fluência no trato adquirida no colégio, tratou de mostrar o que valia. Arranjou maneira de fazer encadernações em casa, com arte e gosto burilava as lombadas com desenhos a ouro. Depois, ainda dobrava até altas horas da noite, resmas folhas de papel para livros encomendados às tipografias. Ainda escrevia cartas e preenchia documentos quando os vizinhos lhe pediam, porque o analfabetismo, nessa altura, era de 55% no país. Começou a granjear simpatia e amigos, que já o viam como um igual sem reparem que era “aleijado”, aliás, palavra que sempre detestou pela vida fora. Em 1941, com 18 anos e a ajuda do Sr. Correia (um bom vizinho) como avalista, fez o pedido à Santa Casa de Misericórdia e obteve a chapa com número de licença para vender lotaria nas ruas do Porto e tornou-se cauteleiro. Não gostava, sentia até um grande constrangimento, mas todos os dias pela manhã, de fato de cotim e boné, com as cautelas presas por uma mola ao peito, lá ia ligeiro nas suas muletas de madeira e almofadadas por ele, apregoando a sorte grande. Era filho dum famoso industrial de Guimarães sem saber, era a sorte grande apregoada na rua, por um rejeitado da vida e sem sorte.
A Clarinha padeira, como era conhecida lá na rua, era amiga de todos, depressa se tornou considerada pela vizinhança. A carência com que se vivia naquele bairro operário da cidade, fazia crescer a solidariedade entre todos os que povoavam as chamadas “ilhas”, que eram colmeias de gente pobre. A casa de Clara resumia-se a uma sala, onde tinha o guarda-fato, a cómoda, uma mesa com dois bancos corridos, um lavatório em louça com um jarro e um divã onde dormia. No pequeno quarto onde dormia o Maciel, só cabia a cama e uma mesinha com o candeeiro de petróleo. Aos pés, uma cortina de chita num arame, escondia uma arca e algumas roupas. Não tinha porta, apenas um cortinado. A cozinha era muito pequena, mas tinha um fogão a carvão, uma mesa pequena e um louceiro na parede para os pratos e tigelas, com as prateleiras forradas de papel recortado como renda, como se usava para ornamentar as cozinhas. Entre o louceiro e a entrada, uma pequena mísula servia de suporte ao candeeiro de petróleo e num canto, um banco com o caneco de madeira com tampa, era o depósito da água que se trazia do fontanário do largo, por cima e pendurado num prego, estava o púcaro de esmalte por onde se bebia. Por baixo da mesa, uma tina esmaltada para os dias de banho. Na parede da sala, dois caixilhos com as imagens de Santo António e do Sagrado Coração de Maria. Só muito tempo depois, a Clara comprou ao Sr. Amaral adeleiro em Mártires da Liberdade (a pagar aos poucos), um móvel louceiro de portas, com duas gavetas para os talheres e toalhas, tendo por cima duas portas de vidro com prateleiras e ganchos para as canecas do café. Foi ali que Clara pendurou a chávena que dizia, ser a única prenda que o pai de Maciel lhe deixara.
       
 
“A guerra tinha terminado em 1945, deixando atrás de si, mais 50 milhões de mortos. Com o final da guerra, o governo fascista de Salazar decretou luto oficial de três dias pela morte de Hitler e encomendou mais uma manifestação “espontânea” no Terreiro do Paço, para o povo lhe manifestar agradecimento por não ter entrado na guerra, apesar dos festejos por todo o país e principalmente no Porto, serem de júbilo pela vitória dos Aliados. O ditador iniciou então uma série de reformas políticas de fachada após a derrota das ditaduras, para se manter no poder”.
       
 
       
AMARARANTE
 
 
Nesse ano em Amarante, morreu de tuberculose a Isabel com 41 anos. Não deixou filhos “porque Deus não quis”, diziam os vizinhos. Clara soube pela prima de Paranhos, um mês depois. Nunca mais tinha voltado a ver a filha, desde 1932.

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