CHÁVENA COM HISTÓRIA
CAPÍTULO 11
Da renovada fábrica de brinquedos, começaram a fazer parte nomes
de grandes armazenistas da cidade do Porto e da capital. A fábrica começou a
laborar com 8 postos de trabalho, atingindo 12 no segundo ano, distribuídos por
um parque razoável de máquinas para madeira, além de uma secção de pintura à
pistola, secção de montagem, acabamentos, embalagem, armazém e escritório.
Mandou construir um elevador para ter melhor acesso à residência no primeiro
andar. A enteada, entretanto de maior idade, resolve ir viver com o pai para
Santo Tirso.
Em 1966, adquiriu um veículo comercial de transporte de
mercadorias, que veio dar mais mobilidade há entregas dos produtos. Emancipou o
filho Alberto, deu-lhe a carta de condução para o conduzir. Neste mesmo ano,
Maciel concretizou um dos seus maiores sonhos, tirou a carta especial de
condução, adquiriu um automóvel importado da Craysler que veio totalmente
adaptado às suas necessidades físicas e pela primeira vez conduziu um veículo
como qualquer pessoa normal. Tratou-se de uma vitória inigualável para o
Maciel, tinha vencido e provado que podia ser um homem igual aos outros. Não
sabia, mas... seu pai devia-se orgulhar dele, afinal tinha herdado os seus
genes de tenacidade e querer, como forma de vencer pelo trabalho.
Nos finais de 1966, o filho mais velho de Maciel, o Marcelo agora
com 18 anos, frequentava a escola Industrial Infante D. Henrique no curso de
desenhador. Conheceu em Abril de 1966 aquela que viria a ser a mãe dos seus
filhos, namoraram até a 18 de Março de 1967, data em que casou na igreja de
Paranhos, com Matilde Moreira Silva, tecedeira na Empresa Manuel de Azevedo e
foram viver para a casa duma irmã de Matilde em Pedrouços, na Maia, depois dele
se desentender com o pai e madrasta, que além de não verem com bons olhos este
casamento precipitado, não entendiam que Marcelo agora tinha que ter um
ordenado condigno. Foi assim que um dia seu pai, logo pela manhã lhe disse: —
Toma o jornal, vai arranjar trabalho. Marcelo saiu da firma do pai e passou uns
bons meses desempregado, amargurado e a viver com grandes dificuldades.
Trabalhou numa fábrica de olaria na marginal do Douro e aos fins-de-semana,
carregava camionetas de sal para um armazenista da Areosa.
Nesse mesmo ano, a 15 de Maio, dá-se início à 4ª geração dos
Castros e nasceu o seu primeiro filho, um bebé loirinho a quem deram o nome:
Telmo Moreira de Castro.
Marcelo, depois de passar pelas profissões de ajudante de desenhos
para tecidos e de gravação de chapas em serigrafia, vivendo ainda com
dificuldades, mas já numa casa alugada, teve a alegria de ver nascer o segundo
filho, uma menina morena e linda a quem deram o nome de Lara Moreira de Castro.
Foram tempos de sacrifício para Marcelo. No armazém onde
trabalhou, passava horas nos montes de sal, descalço e de pá em punho,
carregando os sacos para a camioneta, com os pés gretados que ardiam com o
salitre. Na fábrica de louça, transportava em tronco nu e ao ombro, tábuas com
obra de barro para cozer no forno, o calor era muito e a fome apertava naqueles
dias que ia a pé da Areosa para a marginal do Douro, junto á ponte de D. Maria.
A marmita? Só mais tarde a teve, até aí, passava o dia sem comer, morto por
chegar a casa derreado das costas, para ainda fazer uns desenhos para tecidos
até altas horas.
Por esta altura, a firma de brinquedos do pai precisava de alguém
com conhecimento da arte, que conduzisse a secção de criação e produção, então,
a pedido do pai, Marcelo deitou para trás a lembrança dos dias maus e regressou
à fábrica como criativo e chefe de produção, com um ordenado ajustado e
compatível com o seu trabalho. Enquanto o irmão Alberto no escritório, tomava
conta da facturação e entregas de mercadorias, ficando o expediente normal da
firma a cargo do pai Maciel. Novos modelos de brinquedos surgem pela criatividade
de Marcelo, ajustados a novos matérias do mercado e a fábrica progrediu com o
orgulho e entusiasmo de Maciel.
Com a guerra do Ultramar no auge, Salazar enviou para as chamadas
Províncias Ultramarinas, milhares de homens para morrerem numa guerra de
mentira, por uma pátria em decadência, governada pela ditadura, pelo fascismo e
pela censura, principalmente com a ilusão de um Império já podre. Marcelo foi
chamado às fileiras com vinte anos, depois de assentar praça na Serra da
Carregueira em 1969 e passar pelo RAAF em Queluz, regressou ao norte e foi
integrado no Gaca3 em Espinho, com o curso de operador na especialidade de
artilharia antiaérea. Mas logo a seguir foi mobilizado para a guerra e embarcou
no paquete Vera Cruz, a 25 de Julho de 1970. Foi e desaire de mais uma vida
decepada na flor da idade e tirada á família como tantos outros naquele tempo.
Dois meses antes de partir, mais propriamente a 5 de Maio de 1970,
estava a prestar serviço como cabo no GACA 3 em Espinho, nasceu o seu terceiro rebento,
uma linda sardenta de olhos bonitos, a quem deram o nome: Célia Moreira de
Castro. Mas Marcelo foi obrigado a partir, deixando a mulher e os três filhos
para trás. Matilde a braços com tanta responsabilidade, passou a trabalhar na
fábrica de brinquedos a convite dos sogros, ficando a viver provisoriamente com
duas das três crianças na cave, enquanto esperava pela volta do marido. A filha
do meio, a Lara de 2 anos, ficou a viver com a avó materna em Rio Tinto.
Marcelo passou por algumas privações durante aqueles dois anos em
Angola, mas por sina, ou por alguma boa estrela, regressou sem mazelas no
corpo, apenas com algumas no espírito mas… são e salvo. Muitos não puderam
dizer o mesmo, ao serem ceifados pelas emboscadas no mato, dizimados por minas e
mortos pela malária ou o paludismo. Marcelo passou aqueles dois anos de
comissão militar obrigatória, em Luanda, adido a uma Base da Aeronáutica onde o
seu pelotão fazia a defesa aérea do local. Em Luanda, passeava entre a baia e a
Ilha, entre “Cucas” e camarão, entre Belas e o Farol das Lagostas. Ou então, ao
Sol nessa praia linda de palmeiras na areia, ou jogando xadrez na “Bikar”. Só a
beleza desses lugares puderam compensar a saudade que sentiu da mulher e dos
filhos. Do resto da família, Marcelo sentia um certo alívio com o afastamento,
a pressão tinha sido muita desde criança, tinha começado a trabalhar aos dez
anos, na sua vida conheceu muitos domingos a trabalhar, noites às vezes
inteiras e esse não-saber-dizer-que-não, com as palavras do pai matraqueando os
ouvidos com a frase mais que gasta: — Isto um dia vai ser teu, tens que
trabalhar! Fez com que a sua partida fosse um alívio, até mesmo o casamento
tinha sido a única forma de escapar àquelas grilhetas. Tinha pelo pai uma
admiração enorme, às vezes sentia mesmo vergonha de não ser como ele, assim
obstinado pelo trabalho, tinha a inteligência do pai, desenhava e criava como
ele, até tinha as pernas que o pai não “tinha”, mas... não era como ele, talvez
tivesse mais genes da mãe, era cauteloso, reservado e sem feitio para
aventuras, arrepiava-o cada vez que via o pai ou a madrasta esbanjar dinheiro
com coisas desnecessárias, às vezes supérfluas, apenas para “mostrar” que
viviam bem, numa vida feita de fachada. Marcelo sentia que o trabalho era inglório,
tentava compreender o pai em querer ter tudo igual aos outros, era legítimo,
mas... quando não podia? Quando o dinheiro não chegava para coisas mais
importantes? Eram os bancos, a Segurança Social, os impostos e os fornecedores
quem ficavam para trás. A preocupação com as aparências chegou a tal ponto, que
mesmo no momento da falência, bastava entregar a carrinha à “Mercedes” para
saldar a divida que tinham com ela, mas não o fizeram, porque parecia mal os
vizinhos deixarem de ver o veículo estacionado à porta da fábrica. Procuravam
atalhos, para poder chegar mais depressa onde queriam e quem se mete em
atalhos...
Marcelo regressou em Novembro de 1972, na fábrica por essa altura,
não se notavam progressos, os modelos começavam a cansar e foi preciso um novo
incremento. Marcelo logo que chegou deitou mãos à obra. Desenhou e pôs em
andamento, depois de testar protótipos e novos matérias, novos modelos de
utilidades domésticas e uma nova linha de modelos de armários de casa de banho,
que foram um sucesso, as encomendas começaram a surgir de novo e a empresa
voltou a entrar numa nova fase.
Logo no ano seguinte e depois de algumas vicissitudes emocionais,
que foram ultrapassadas a muito custo, Marcelo e Matilde alugaram uma casa,
reúniram finalmente todas as crianças e foram viver para Ermesinde em finais de
Abril de 1973. Os filhos cresceram, Telmo tinha agora 6 anos, Lara 5 e Célia 3.
Foram comprando os móveis conforme podiam, estabelecendo uma ordem de
prioridades, mas durante esse ano, além do fogão, mesa e duas camas e um berço,
apenas um sofá mobilou a sala. O Natal desse ano de 1973, ainda foi passado na
casa dos pais de Marcelo. O avô Maciel resplandecia de felicidade, com a mesa
cheia com a sua prole de filhos e netos. Falaram de tempos idos e das recordações
de família, dona Palmira mostrou as de maior valor estimativo, como a caneca de
vidro, prenda de casamento de Maciel e Mariana, uma caneca de porcelana com
desenhos a ouro, como sua prenda de casamento, assim como a chávena que sua a
avó Clara tinha guardado durante mais de sessenta anos.
“Com a revolução de Abril de 1974, muitas
empresas, apesar de comodamente identificadas com as leis do regime,
sentiram-se abaladas nos seus alicerces. Pior ainda para centenas de pequenas
empresas, sem meios para aguentar o impacto. Os sindicatos de operários
começaram a dar largas às suas reprimidas liberdades, reivindicando
legitimamente aumentos de ordenados e regalias a que tinham direito e surgiu a
nova lei do trabalho, com o décimo terceiro mês, o subsídio de férias com 22
dias de férias pagas. O horário laboral foi estabelecido em 48 horas com
descanso semanal aos domingos. Houveram empresas que não aguentaram este choque
reivindicativo dos operários e começam a fechar, outras ainda aguentam o impacto
inicial, mas mais tarde vieram a sucumbir. Os patrões insurgiram-se, começaram
as greves por toda a parte, era a liberdade no seu auge, depois de mais de meio
século de repressão”.
A fábrica de brinquedos “Mirita”, a muito custo, continuou de pé,
pois muitas das regalias agora introduzidas, já eram valores adquiridos pelos
empregados, apenas o horário de trabalho mudou. Em 1975, com o mercado de
brinquedos em crise, derivado ao aumento de exportações da Alemanha e do Japão,
a fábrica avançava com a sua linha de montagem de Armários de quarto de banho,
onde chegou a atingir uma produção mensal de 800 unidades, que grandes
armazenistas de Cortegaça e Vila da Feira escoavam com facilidade. A procura,
devia-se à nova legislação que proibia os armários em chapa esmaltada, devido à
corrente eléctrica nas casas de banho, assim toda a produção estava vendida com
por natureza.
Em meados de 1977 e com a criação do EAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à
Inovação), que atribuía financiamentos às pequenas e médias empresas,
Maciel fez uma proposta àquele organismo para o desenvolvimento da fábrica, mas
depois de muita burocracia, a resposta foi negativa: O EAPMEI respondeu que não
via viabilidade no projecto e preferiam atribuir verbas a fábricas de raiz, sem
se importarem com a experiência de tantos anos neste sector industrial, em
detrimento de outra sem qualquer experiência no sector.
No começo de 1978, um grande armazenista de Lisboa, que tinha
agregado a si outras empresas do mesmo sector, contacta a “Mirita” para fazerem
uma proposta tentadora. Compravam toda a produção mensal, com modelos de
brinquedos impostos por eles. Numa altura de crise, com a promessa de todos os
meses ter o necessário para a sobrevivência da fábrica e dos postos de
trabalho, Maciel aceitou a proposta e entregou toda a carteira de clientes que
possuía. A empresa em causa, ainda exigiu que os dois filhos de Maciel,
fizessem parte da sociedade, como forma garantirem a continuidade do contrato
em caso de morte. Alberto e Marcelo ficaram com um cota a realizar de 5% cada
um, sendo o restante dividido por Palmira e Maciel, com 45% cada. Depois de
assinado o contrato da compra mensal de toda a sua produção, iniciou-se a nova
programação de entregas semanais. No começo tudo corria bem, quanto mais se
produzia mais se vendia. Mas aos novos modelos tiveram-se que adaptar novas
formas de fabrico, novos moldes, produtos diferentes e a troca da madeira de
pinho por plátano, amieiro e outras. A firma empenha-se com mais uma máquina
“universal” e adquire uma nova carrinha para transportar semanalmente os
artigos para Lisboa.
Vieram depois as exigências legislativas sobre segurança dos
brinquedos para as crianças, coisas que até então ninguém se tinha preocupado.
Claro que eram razões mais que justas: Nada de arestas, objectos cortantes ou
de tamanhos fáceis de engolir. Tudo leis importantes a que rapidamente a
fábrica aderiu, mas que obrigaram a fazer novos ajustes nos modelos e no modo
de fabricação. Surgiu a possibilidade de visitar a maior Feira de Brinquedos do
mundo em Nuremberga, na Alemanha, a convite da firma colaboradora, com a
intenção de conhecer novas técnicas e novas formas de fabrico. Em Fevereiro de
1978, Marcelo visitou aquele certame internacional, tomando conhecimento do
máximo possível. A viagem foi um êxito e no regresso, Marcelo começou por
implementar novas técnicas no fabrico, introduzindo a estampagem por serigrafia
e a pintura com cortina de água, etc. A produção aumenta com os novos modelos e
jogos didácticos, obtendo resultados bastante satisfatórios.
As coisas correram bem até ao ano de 1979, quando a firma com sede
em Lisboa, começou a dar sinais de que qualquer coisa não corria bem, atrasando
os pagamentos e deixando de cumprir o acordado. Até que em 1980 abriu falência
arrastando para o abismo todas as firmas anexadas. A “Mirita” ainda aguentou
algum tempo, mas crise que se generalizara a todos as fábricas com quem tinham
contratos, semeou o caos. Os clientes antigos da “Mirita” tinham agora outros
fornecedores, Maciel tenta tudo, fez pedidos a bancos, dando promessas que no
íntimo, não sabia se podia cumprir, era o desespero que o levava a isso, a
derrocada estava próxima, era preciso sobreviver a todo o custo. O pessoal vai
abandonando o trabalho com justa causa, quando a falta de pagamento acontece,
Maciel faz tudo para continuar, hipoteca o carro, penhora coisas de valor como
o ouro que Palmira tinha, a TV e outras aparelhagens que nessa época tinham
valor. Maciel recorre mais uma vez ao IAPMEI mas de nada valeu a crise estava
instalada. Até que em 16 de Dezembro de 1981 a “Mirita” entrou em falência técnica e
foi o fim. Os empregados que restavam saem, os filhos, que agora eram sócios
minoritários, também foram para a rua sem nada e passam o natal mais triste de
sempre.
Fundada em 1952,
a firma durou quase 30 anos. Foi decretada a insolvência
e lacrada a fábrica, mesmo depois de leiloada a massa falida, ainda ficou
devedor ao estado, então Maciel, vendeu quase tudo o que tinha de valor para
cumprir compromissos, para depois dar entrada com a esposa no Lar dos
Industriais. Instituição credível da cidade, de que eram sócios há bastantes
anos. Mas… nunca mais nada seria igual. Com pouco espaço no quarto de casal que
lhes destinaram, embora bastante acolhedor, o casal resolveu dar a cada
enteado, alguns objectos de valor estimativo para guardassem, entre elas:
Colchas de seda bordadas à mão, algumas peças de porcelana, jarras e outras
peças de cristal que calharam ao filho mais novo. Ao mais velho, Maciel e Palmira
fizeram questão de entregar (numa espécie de herança hereditária) a quem cabia
como primogénito, a obrigação da descendência para continuação directa na
árvore genealógica da família, algumas recordações como: Uma Bamboniere de
cristal, uma Terrina de Limoges, um Jarrão de faiança que estavam à muitos anos
na família e ainda, uma caneca de porcelana, lembrança do seu casamento com a
Palmirinha, assim como a tal caneca de vidro, prenda do seu casamento com
Mariana e claro, a chávena de porcelana da avó Clara.
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