terça-feira, 27 de outubro de 2020

CHÁVENA COM HISTÓRIA

 




CAPÍTULO 11





Da renovada fábrica de brinquedos, começaram a fazer parte nomes de grandes armazenistas da cidade do Porto e da capital. A fábrica começou a laborar com 8 postos de trabalho, atingindo 12 no segundo ano, distribuídos por um parque razoável de máquinas para madeira, além de uma secção de pintura à pistola, secção de montagem, acabamentos, embalagem, armazém e escritório. Mandou construir um elevador para ter melhor acesso à residência no primeiro andar. A enteada, entretanto de maior idade, resolve ir viver com o pai para Santo Tirso.
Em 1966, adquiriu um veículo comercial de transporte de mercadorias, que veio dar mais mobilidade há entregas dos produtos. Emancipou o filho Alberto, deu-lhe a carta de condução para o conduzir. Neste mesmo ano, Maciel concretizou um dos seus maiores sonhos, tirou a carta especial de condução, adquiriu um automóvel importado da Craysler que veio totalmente adaptado às suas necessidades físicas e pela primeira vez conduziu um veículo como qualquer pessoa normal. Tratou-se de uma vitória inigualável para o Maciel, tinha vencido e provado que podia ser um homem igual aos outros. Não sabia, mas... seu pai devia-se orgulhar dele, afinal tinha herdado os seus genes de tenacidade e querer, como forma de vencer pelo trabalho.
Nos finais de 1966, o filho mais velho de Maciel, o Marcelo agora com 18 anos, frequentava a escola Industrial Infante D. Henrique no curso de desenhador. Conheceu em Abril de 1966 aquela que viria a ser a mãe dos seus filhos, namoraram até a 18 de Março de 1967, data em que casou na igreja de Paranhos, com Matilde Moreira Silva, tecedeira na Empresa Manuel de Azevedo e foram viver para a casa duma irmã de Matilde em Pedrouços, na Maia, depois dele se desentender com o pai e madrasta, que além de não verem com bons olhos este casamento precipitado, não entendiam que Marcelo agora tinha que ter um ordenado condigno. Foi assim que um dia seu pai, logo pela manhã lhe disse: — Toma o jornal, vai arranjar trabalho. Marcelo saiu da firma do pai e passou uns bons meses desempregado, amargurado e a viver com grandes dificuldades. Trabalhou numa fábrica de olaria na marginal do Douro e aos fins-de-semana, carregava camionetas de sal para um armazenista da Areosa.
Nesse mesmo ano, a 15 de Maio, dá-se início à 4ª geração dos Castros e nasceu o seu primeiro filho, um bebé loirinho a quem deram o nome: Telmo Moreira de Castro.
Marcelo, depois de passar pelas profissões de ajudante de desenhos para tecidos e de gravação de chapas em serigrafia, vivendo ainda com dificuldades, mas já numa casa alugada, teve a alegria de ver nascer o segundo filho, uma menina morena e linda a quem deram o nome de Lara Moreira de Castro.
Foram tempos de sacrifício para Marcelo. No armazém onde trabalhou, passava horas nos montes de sal, descalço e de pá em punho, carregando os sacos para a camioneta, com os pés gretados que ardiam com o salitre. Na fábrica de louça, transportava em tronco nu e ao ombro, tábuas com obra de barro para cozer no forno, o calor era muito e a fome apertava naqueles dias que ia a pé da Areosa para a marginal do Douro, junto á ponte de D. Maria. A marmita? Só mais tarde a teve, até aí, passava o dia sem comer, morto por chegar a casa derreado das costas, para ainda fazer uns desenhos para tecidos até altas horas.
Por esta altura, a firma de brinquedos do pai precisava de alguém com conhecimento da arte, que conduzisse a secção de criação e produção, então, a pedido do pai, Marcelo deitou para trás a lembrança dos dias maus e regressou à fábrica como criativo e chefe de produção, com um ordenado ajustado e compatível com o seu trabalho. Enquanto o irmão Alberto no escritório, tomava conta da facturação e entregas de mercadorias, ficando o expediente normal da firma a cargo do pai Maciel. Novos modelos de brinquedos surgem pela criatividade de Marcelo, ajustados a novos matérias do mercado e a fábrica progrediu com o orgulho e entusiasmo de Maciel.
Com a guerra do Ultramar no auge, Salazar enviou para as chamadas Províncias Ultramarinas, milhares de homens para morrerem numa guerra de mentira, por uma pátria em decadência, governada pela ditadura, pelo fascismo e pela censura, principalmente com a ilusão de um Império já podre. Marcelo foi chamado às fileiras com vinte anos, depois de assentar praça na Serra da Carregueira em 1969 e passar pelo RAAF em Queluz, regressou ao norte e foi integrado no Gaca3 em Espinho, com o curso de operador na especialidade de artilharia antiaérea. Mas logo a seguir foi mobilizado para a guerra e embarcou no paquete Vera Cruz, a 25 de Julho de 1970. Foi e desaire de mais uma vida decepada na flor da idade e tirada á família como tantos outros naquele tempo.
Dois meses antes de partir, mais propriamente a 5 de Maio de 1970, estava a prestar serviço como cabo no GACA 3 em Espinho, nasceu o seu terceiro rebento, uma linda sardenta de olhos bonitos, a quem deram o nome: Célia Moreira de Castro. Mas Marcelo foi obrigado a partir, deixando a mulher e os três filhos para trás. Matilde a braços com tanta responsabilidade, passou a trabalhar na fábrica de brinquedos a convite dos sogros, ficando a viver provisoriamente com duas das três crianças na cave, enquanto esperava pela volta do marido. A filha do meio, a Lara de 2 anos, ficou a viver com a avó materna em Rio Tinto.
Marcelo passou por algumas privações durante aqueles dois anos em Angola, mas por sina, ou por alguma boa estrela, regressou sem mazelas no corpo, apenas com algumas no espírito mas… são e salvo. Muitos não puderam dizer o mesmo, ao serem ceifados pelas emboscadas no mato, dizimados por minas e mortos pela malária ou o paludismo. Marcelo passou aqueles dois anos de comissão militar obrigatória, em Luanda, adido a uma Base da Aeronáutica onde o seu pelotão fazia a defesa aérea do local. Em Luanda, passeava entre a baia e a Ilha, entre “Cucas” e camarão, entre Belas e o Farol das Lagostas. Ou então, ao Sol nessa praia linda de palmeiras na areia, ou jogando xadrez na “Bikar”. Só a beleza desses lugares puderam compensar a saudade que sentiu da mulher e dos filhos. Do resto da família, Marcelo sentia um certo alívio com o afastamento, a pressão tinha sido muita desde criança, tinha começado a trabalhar aos dez anos, na sua vida conheceu muitos domingos a trabalhar, noites às vezes inteiras e esse não-saber-dizer-que-não, com as palavras do pai matraqueando os ouvidos com a frase mais que gasta: — Isto um dia vai ser teu, tens que trabalhar! Fez com que a sua partida fosse um alívio, até mesmo o casamento tinha sido a única forma de escapar àquelas grilhetas. Tinha pelo pai uma admiração enorme, às vezes sentia mesmo vergonha de não ser como ele, assim obstinado pelo trabalho, tinha a inteligência do pai, desenhava e criava como ele, até tinha as pernas que o pai não “tinha”, mas... não era como ele, talvez tivesse mais genes da mãe, era cauteloso, reservado e sem feitio para aventuras, arrepiava-o cada vez que via o pai ou a madrasta esbanjar dinheiro com coisas desnecessárias, às vezes supérfluas, apenas para “mostrar” que viviam bem, numa vida feita de fachada. Marcelo sentia que o trabalho era inglório, tentava compreender o pai em querer ter tudo igual aos outros, era legítimo, mas... quando não podia? Quando o dinheiro não chegava para coisas mais importantes? Eram os bancos, a Segurança Social, os impostos e os fornecedores quem ficavam para trás. A preocupação com as aparências chegou a tal ponto, que mesmo no momento da falência, bastava entregar a carrinha à “Mercedes” para saldar a divida que tinham com ela, mas não o fizeram, porque parecia mal os vizinhos deixarem de ver o veículo estacionado à porta da fábrica. Procuravam atalhos, para poder chegar mais depressa onde queriam e quem se mete em atalhos...  
Marcelo regressou em Novembro de 1972, na fábrica por essa altura, não se notavam progressos, os modelos começavam a cansar e foi preciso um novo incremento. Marcelo logo que chegou deitou mãos à obra. Desenhou e pôs em andamento, depois de testar protótipos e novos matérias, novos modelos de utilidades domésticas e uma nova linha de modelos de armários de casa de banho, que foram um sucesso, as encomendas começaram a surgir de novo e a empresa voltou a entrar numa nova fase.
Logo no ano seguinte e depois de algumas vicissitudes emocionais, que foram ultrapassadas a muito custo, Marcelo e Matilde alugaram uma casa, reúniram finalmente todas as crianças e foram viver para Ermesinde em finais de Abril de 1973. Os filhos cresceram, Telmo tinha agora 6 anos, Lara 5 e Célia 3. Foram comprando os móveis conforme podiam, estabelecendo uma ordem de prioridades, mas durante esse ano, além do fogão, mesa e duas camas e um berço, apenas um sofá mobilou a sala. O Natal desse ano de 1973, ainda foi passado na casa dos pais de Marcelo. O avô Maciel resplandecia de felicidade, com a mesa cheia com a sua prole de filhos e netos. Falaram de tempos idos e das recordações de família, dona Palmira mostrou as de maior valor estimativo, como a caneca de vidro, prenda de casamento de Maciel e Mariana, uma caneca de porcelana com desenhos a ouro, como sua prenda de casamento, assim como a chávena que sua a avó Clara tinha guardado durante mais de sessenta anos.
 
 
 
 “Com a revolução de Abril de 1974, muitas empresas, apesar de comodamente identificadas com as leis do regime, sentiram-se abaladas nos seus alicerces. Pior ainda para centenas de pequenas empresas, sem meios para aguentar o impacto. Os sindicatos de operários começaram a dar largas às suas reprimidas liberdades, reivindicando legitimamente aumentos de ordenados e regalias a que tinham direito e surgiu a nova lei do trabalho, com o décimo terceiro mês, o subsídio de férias com 22 dias de férias pagas. O horário laboral foi estabelecido em 48 horas com descanso semanal aos domingos. Houveram empresas que não aguentaram este choque reivindicativo dos operários e começam a fechar, outras ainda aguentam o impacto inicial, mas mais tarde vieram a sucumbir. Os patrões insurgiram-se, começaram as greves por toda a parte, era a liberdade no seu auge, depois de mais de meio século de repressão”.
      
A fábrica de brinquedos “Mirita”, a muito custo, continuou de pé, pois muitas das regalias agora introduzidas, já eram valores adquiridos pelos empregados, apenas o horário de trabalho mudou. Em 1975, com o mercado de brinquedos em crise, derivado ao aumento de exportações da Alemanha e do Japão, a fábrica avançava com a sua linha de montagem de Armários de quarto de banho, onde chegou a atingir uma produção mensal de 800 unidades, que grandes armazenistas de Cortegaça e Vila da Feira escoavam com facilidade. A procura, devia-se à nova legislação que proibia os armários em chapa esmaltada, devido à corrente eléctrica nas casas de banho, assim toda a produção estava vendida com por natureza.
Em meados de 1977 e com a criação do EAPMEI (Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação), que atribuía financiamentos às pequenas e médias empresas, Maciel fez uma proposta àquele organismo para o desenvolvimento da fábrica, mas depois de muita burocracia, a resposta foi negativa: O EAPMEI respondeu que não via viabilidade no projecto e preferiam atribuir verbas a fábricas de raiz, sem se importarem com a experiência de tantos anos neste sector industrial, em detrimento de outra sem qualquer experiência no sector.
No começo de 1978, um grande armazenista de Lisboa, que tinha agregado a si outras empresas do mesmo sector, contacta a “Mirita” para fazerem uma proposta tentadora. Compravam toda a produção mensal, com modelos de brinquedos impostos por eles. Numa altura de crise, com a promessa de todos os meses ter o necessário para a sobrevivência da fábrica e dos postos de trabalho, Maciel aceitou a proposta e entregou toda a carteira de clientes que possuía. A empresa em causa, ainda exigiu que os dois filhos de Maciel, fizessem parte da sociedade, como forma garantirem a continuidade do contrato em caso de morte. Alberto e Marcelo ficaram com um cota a realizar de 5% cada um, sendo o restante dividido por Palmira e Maciel, com 45% cada. Depois de assinado o contrato da compra mensal de toda a sua produção, iniciou-se a nova programação de entregas semanais. No começo tudo corria bem, quanto mais se produzia mais se vendia. Mas aos novos modelos tiveram-se que adaptar novas formas de fabrico, novos moldes, produtos diferentes e a troca da madeira de pinho por plátano, amieiro e outras. A firma empenha-se com mais uma máquina “universal” e adquire uma nova carrinha para transportar semanalmente os artigos para Lisboa.
Vieram depois as exigências legislativas sobre segurança dos brinquedos para as crianças, coisas que até então ninguém se tinha preocupado. Claro que eram razões mais que justas: Nada de arestas, objectos cortantes ou de tamanhos fáceis de engolir. Tudo leis importantes a que rapidamente a fábrica aderiu, mas que obrigaram a fazer novos ajustes nos modelos e no modo de fabricação. Surgiu a possibilidade de visitar a maior Feira de Brinquedos do mundo em Nuremberga, na Alemanha, a convite da firma colaboradora, com a intenção de conhecer novas técnicas e novas formas de fabrico. Em Fevereiro de 1978, Marcelo visitou aquele certame internacional, tomando conhecimento do máximo possível. A viagem foi um êxito e no regresso, Marcelo começou por implementar novas técnicas no fabrico, introduzindo a estampagem por serigrafia e a pintura com cortina de água, etc. A produção aumenta com os novos modelos e jogos didácticos, obtendo resultados bastante satisfatórios.
As coisas correram bem até ao ano de 1979, quando a firma com sede em Lisboa, começou a dar sinais de que qualquer coisa não corria bem, atrasando os pagamentos e deixando de cumprir o acordado. Até que em 1980 abriu falência arrastando para o abismo todas as firmas anexadas. A “Mirita” ainda aguentou algum tempo, mas crise que se generalizara a todos as fábricas com quem tinham contratos, semeou o caos. Os clientes antigos da “Mirita” tinham agora outros fornecedores, Maciel tenta tudo, fez pedidos a bancos, dando promessas que no íntimo, não sabia se podia cumprir, era o desespero que o levava a isso, a derrocada estava próxima, era preciso sobreviver a todo o custo. O pessoal vai abandonando o trabalho com justa causa, quando a falta de pagamento acontece, Maciel faz tudo para continuar, hipoteca o carro, penhora coisas de valor como o ouro que Palmira tinha, a TV e outras aparelhagens que nessa época tinham valor. Maciel recorre mais uma vez ao IAPMEI mas de nada valeu a crise estava instalada. Até que em 16 de Dezembro de 1981 a “Mirita” entrou em falência técnica e foi o fim. Os empregados que restavam saem, os filhos, que agora eram sócios minoritários, também foram para a rua sem nada e passam o natal mais triste de sempre. 
Fundada em 1952, a firma durou quase 30 anos. Foi decretada a insolvência e lacrada a fábrica, mesmo depois de leiloada a massa falida, ainda ficou devedor ao estado, então Maciel, vendeu quase tudo o que tinha de valor para cumprir compromissos, para depois dar entrada com a esposa no Lar dos Industriais. Instituição credível da cidade, de que eram sócios há bastantes anos. Mas… nunca mais nada seria igual. Com pouco espaço no quarto de casal que lhes destinaram, embora bastante acolhedor, o casal resolveu dar a cada enteado, alguns objectos de valor estimativo para guardassem, entre elas: Colchas de seda bordadas à mão, algumas peças de porcelana, jarras e outras peças de cristal que calharam ao filho mais novo. Ao mais velho, Maciel e Palmira fizeram questão de entregar (numa espécie de herança hereditária) a quem cabia como primogénito, a obrigação da descendência para continuação directa na árvore genealógica da família, algumas recordações como: Uma Bamboniere de cristal, uma Terrina de Limoges, um Jarrão de faiança que estavam à muitos anos na família e ainda, uma caneca de porcelana, lembrança do seu casamento com a Palmirinha, assim como a tal caneca de vidro, prenda do seu casamento com Mariana e claro, a chávena de porcelana da avó Clara.

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