CHÁVENA DOM HISTÓRIA
15 CAPÍTULO
— Mas a nossa família agora tem um barão verdadeiro já na 5ª
geração, descendente directo de José Medeiros meu avô, o meu primo em 3º grau
Lúcio. Que idade tem ele agora?
— Apesar da minha primeira neta ter nascido em 1988, meu neto
nasceu em 1992, tem quase 17 anos.
— Então não falta muito para saltar para a 6ª geração, a juventude
hoje anda muito apressada...
— É um facto, temos que nos conhecer um dia. Mas não queria que
parecesse que estou a reivindicar algo, afinal nem sabia que vocês existiam!
— Não se preocupe Marcelo, sou testemunha da coincidência do nosso
encontro. Agora vá para casa, sei que vai precisar de tempo para digerir todo
este enredo e contar à “prima” Matilde não é? Vou ficar com a sua chávena para
já, quero mandar pintar o nome do meu tio Maciel no pires e pôr finalmente a
“sua” chávena junto às outras para completar o estojo, depois hei-de entrar em
contacto com o primo. E... não me vai levar a mal, mas vou-lhe passar um cheque
com o seu valor, para fazer frente às suas necessidades.
— Nem pensar Eunice, não vou aceitar.
— Mas Marcelo, se vendesse a chávena teria que receber dinheiro
por ela, não acha?
— Sim, isso é verdade.
— Então não se acanhe, tome lá e vamos trocar de contactos, pois
muito em breve vou ter novidades.
— Mas Eunice, isto é muito dinheiro!
— Mas afinal quem percebe de antiguidades, eu ou o Marcelo?
Despediram-se à porta do estabelecimento com um até breve. Já não
estava tanto frio, o Sol tinha amenizado aquele dia de primavera. Marcelo subiu
a rua até à estação de S. Bento, ia apanhar o comboio para Ermesinde.
Durante a viagem e absorto com o pensamento, nem reparou na
paisagem do Douro junto a Campanhã que ele tanto adorava. Ainda não estava em si... Olhava o cheque
aliviado e pensava: Isto há coincidências na vida... Vejam lá o que uma simples
chávena, guardada de geração em geração, durante tantos anos num aparador, pode
fazer!..
Veio o dia, em
que Eunice telefonou ao Marcelo, gostava que ele visse como
ficou o pires com o nome do seu pai, agora integrado no conjunto do estojo.
Marcelo, que já sentia uma grande empatia, por aquela prima recém-chegada à
família, logo se deslocou ao Porto.
Conversaram muito e mais uma vez foram almoçar ao Solar do
Mouzinho. Os encontros entre eles começaram a ser um ritual semanal, ficavam
longas horas a pôr a conversa em
dia. Era assim cada vez que se encontravam, tinham muito que
descobrir um do outro. Falavam de tudo um pouco, do seu mútuo gosto pelos
livros, pois a Eunice conservava ao fundo da loja, um pequeno mundo alfarrábio,
que muito deliciou o Marcelo. Ele falava-lhe da sua biblioteca particular onde
abundam os nomes desde Eça a Saramago, desde Gorky a Steibeck. A poesia, fazia
parte dos seus gostos em comum, falavam de Pessoa, Cesário, Botto, Ary, Sofia,
Eugénio e tantos outros. Claro que Marcelo acabou por falar nas letras de sua
autoria, dadas ao fado. Eunice mostrou-se interessada, pois além de gostar
muito de fado, possuía uma agradável discoteca desde o tempo de seu pai. Tinha
aprendido a gostar de fado, depois de tanto o ouvir, mas confessou que nunca
tinha ido ouvi-lo aos seus lugares próprios, ao vivo. Marcelo mostrou-lhe a
diferença:
— Sabe Eunice, o fado no seu ambiente, com as velas na mesa de
toalha aos quadradinhos, com vinho tinto, chouriço assado e no seu silêncio
próprio, depois do ritual próprio, com a postura da cantadeira, o pôr do xaile,
a guitarra que trina e chora, a voz que nos entra na alma e nos transporta à
vivência do que nos fala o poema, que pode ser à saudade de um amor ausente, a
um beijo de amor dado às escondidas, ao ciúme que nos queima o peito, ou nos
leva a um lugar onde fomos felizes, ou nos faz lembrar alguém que nos emociona.
Os olhos de Eunice brilhavam de contentamento, era tão bom ter com
quem falar das coisas que gostava... Como tinha nascido no Porto, embora não
fosse tripeira de gema, uma vez que sua mãe era de Guimarães (ao contrário de
Marcelo que era filho de pais portuenses), sentia pela cidade uma nostalgia
profunda, pelas ruas, pelas pessoas, pela luz, pela história.
Marcelo falou-lhe de lugares, que Eunice nunca conheceu na cidade,
propôs-se mesmo fazer de seu cicerone e mostrar-lhe, como exemplo, a casa mais
antiga da cidade por trás da Sé, ou visitar o “Mirante” no monte da Lapa. Como
as conversas são como as cerejas, acabaram por falar das coisas mais díspares,
desde a Expo/98 à feira de Nuremberga, desde a beleza de Luanda ás cidades que
adorava como Tomar e Viseu. Eugénia estava encantada com a lição “de saber” do
primo Marcelo.
— É impressionante meu primo, como consegue falar das coisas com
tal entusiasmo que me deixa “água na boca” e ao mesmo tempo triste por não
conhecer tais lugares. Pobre de mim, com a afeição que dediquei a minha mãe,
acabei por ficar no mesmo lugar e conhecer as coisas só em teoria.
— Ainda está a tempo Eunice, nunca é tarde para conhecer lugares e
gente diferente.
— É mas... Acho que existe sempre um tempo certo para certas
coisas. Mas é sempre bom saber.
— Isso não só falta de coragem? É verdade que, como dizia Máximo
Gorky no seu livro “As Minhas Universidades”, a universidade da vida é
importante. Como podem falar de fome aqueles que nunca a tiveram...
— É bem verdade Marcelo...
— Sabe Eunice, a vida ensina-nos muito, só é pena que quando
começamos a saber alguma coisa, ela esteja quase no fim e não podemos pôr em
prática muito do que “ela” nos ensinou nesta “viagem”. Eu posso por exemplo,
posso dizer que é grande a minha decepção pela maioria das pessoas que conheci
nesta minha “viagem”:
— É primo Marcelo... As desilusões também fazem parte da
vida.
— Mas eu próprio, com esta angustia de me auto excluir pelo
cansaço, de ver que na minha viagem, poucos encontrei como que gostassem do que
eu gostava. Só nos livros, vi e conheci personagens que me satisfizeram
plenamente, assim como na poesia, onde encontrei sentimentos que me fizeram,
cada vez mais, distanciar-me deste tempo, deste mundo que não é o meu. Com este
pensamentos existenciais, comecei por deixar de socializar e confesso que
também me decepcionei a mim mesmo, ao tornei-me sedentário, barrigudo,
desdentado e cabelo. Tive muitos amigos, mas foram amigos que não tinham os
meus gostos, nenhum deles leu um livro na vida ou conheciam o nome dum
realizador dum filme que gostassem. Como podia conversar com eles se não me
entendiam? No entanto eu entendia-os, fazia os possíveis por falar de coisas
que mais interessam, mas logo era desviada a conversa para a inutilidade. Não
são néscios, mas são ignorantes, no entanto vivem felizes com o que alcançaram
na vida, um carro, uma casa, um cartão de sócio do FCP, e é tudo que precisam
para viver. Eu não tenho carro, a casa não é minha e não sou sócio de clube
nenhum... Foram decepções que acumulei, mas que me fizeram mais forte para
enfrentar o mundo, só com o meu computador, os meus livros e mim mesmo. Pode
parecer egoísmo, mas trata-se de uma grande dose de desilusão, olhando ao que
vive, li, vi e aprendi. Pode também ver nisto, uma grande dose de filosofia
barata, ou mesmo uma grave crise existencial, mas sou o que sou e agora já não
há tempo p’ra mudar.
— O primo está desiludido com a vida, mas... “A vida aí esta para
ser vivida e não para falarmos sobre ela”. Disse o Máximo Gorky em “Ganhando o
meu pão”. O melhor é mudarmos de assunto...
Como estão os seus filhos, pelo que entendi não andaram nada bem.
Separados, vidas destroçadas e com filhos.
— Os filhos, são sempre a eterna preocupação dos pais, embora às
vezes não pareça. Sofre-se por eles e pela impotência de não os poder ajudar,
ao vê-los optar por caminhos que sabemos não serem os melhores. Mas lá vão
andando, lutando, sobrevivendo, isto também vai muito mal…
— É um fardo sempre pesado mas o primo psicologicamente, vai
aguentando e tentando levar a bom porto. A ajuda da prima Matilde é muito
importante, não?
— Claro que é, mas... Ela é muito emotiva, ferve em pouca água, é
mais terra-a-terra do que eu, mas sofre tanto ou mais do que eu. No fundo, é o
outro prato da balança, a pitada de sal, o adoçante preciso, sem ela talvez eu
fosse radical de mais nas minhas acções. Contrariamente a outras coisas que
nunca falamos (infelizmente), infelizmente sobre os filhos falamos bastante e
sofremos juntos os seus desaires. Resumindo: Já adquirimos rugas e cãs que
cheguem para a vida…
— Marcelo, está afazer-se tarde para si. A loja está fechada, são
cinco horas e tenho que ir. Não que faça algum negócio, isto está tão mau...
Mas às vezes, quem sabe?! Pode aparecer um coleccionador de objectos antigos
com vontade de gastar dinheiro...
— Vamos lá prima, agora quando voltarmos a falar, vamos falar
sobre a prima, afinal só eu falei de mim, não é justo.
— Não há muito para falar sobre mim, como já deve ter
compreendido, a minha vida foi sempre muito recatada, depois de sair de uma
relação que infelizmente não resultou.
— Então alguém beliscou o coração da minha prima Eugénia, desse
mal padece muita gente...Mas a Eunice é forte e já leu muito...Saberá de
certeza dar a volta á sua desdita. Já agora, para ajudar a colorir um pouco a
vida, quero aproveitar o ensejo e fazer-lhe o convite para almoçar e aproveitar
para conhecer a família, no próximo dia 16 de Agosto, é que o Lúcio, o meu neto
barão e primogénito faz anos e gostávamos de ter a prima Eugénia presente.
— Com muito gosto, mas até lá ainda vamos falar mais vezes. A
nossa prima advogada Anabela, passou há dias pela loja a caminho dum julgamento
no tribunal de S. João Novo, conversamos sobre o primo e a história da chávena.
Ela ficou de ver a legalidade para paternidade do primo Maciel. Ficou combinado
um almoço num dia destes, quando ela me ligar, eu ligo ao primo para estar
presente.
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