terça-feira, 27 de outubro de 2020

CHÁVENA COM HISTÓRIA

 





CAPÍTULO 10




GUIMARÃES
 
 
Nesse ano de 1950 em Guimarães, Noémia tinha 29 anos e apresentou à irmã e ao cunhado, alguém que conhecera na cidade, numa visita ao Museu Martins Sarmento, era filho de uma família de antiquários com estabelecimento no Porto, tinha dele excelentes referências e boas intenções, querendo namorar para casar. Cecília nem queria acreditar, finalmente a esquisita Noémia, encontrara alguém de sua feição. Namorou pouco tempo com o Rui Meireles. Casaram nesse mesmo ano e partiram para o Porto. Foram viver para a casa dos pais dele, por cima do Antiquário Meireles na rua Mouzinho da Silveira.
Ao fim de algum temo, o pai de Rui adoecera, seu filho ficou à frente do estabelecimento. Cecília, na hora da partida de Noémia lembrou-se e disse-lhe:
— Como vais ser antiquária e és a mais nova, levas este estojo contigo, está na família desde o casamento de nossos pais em 1906, como sabes, falta uma chávena, mas talvez um dia a encontres.
 
 
 
PORTO
 
 
        
Em 1951, o patrão de Maciel, um homem já com idade avançada e muito doente, como não tinha ninguém a quem deixar a oficina, resolveu encerrá-la. Indemnizou os poucos empregados que tinha e fechou. Maciel viu-se desempregado de um momento para o outro, com dois filhos para criar. Mas não desanimou, acreditou mais uma vez nas suas capacidades de iniciativa, começou então a fazer em casa artesanalmente, casinhas em cartão para as cascatas de S. João. Vendia pelas casas da especialidade, principalmente na rua da Assunção, nas casas que vendiam bonecos de barro que vinham de Barcelos para as cascatas e presépios. Mais tarde começou por fazer também presépios para o Natal, que vendia em casas de artigos religiosos. Pela Páscoa, fazia caixinhas para amêndoas e pelo Carnaval, chapéus de papel crepe e gaitas coloridas. Os pedidos cresceram e pensou em arranjar mais espaço, a mesa da sala já não suportava tanto trabalho.
Em 1952 deu-se de vago uma pequena casa num bairro da mesma rua (O Bairro Angelina), mesmo defronte a sua casa, aluga-a e adapta-a ás suas necessidades, montando a sua oficina. A inauguração foi no dia 23 de Novembro, com a presença da mãe com 70 anos, dos filhos que já tinham respectivamente, 4 e 2 anos e ainda com alguns amigos que sempre acreditaram nele, assim como a amiga Palmirinha.
Para desenvolver mais o seu trabalho, Maciel encontrou uma pequena máquina de serrar de tico-tico na Casa Escol, na rua Sá da Bandeira. Esta firma alemã que já não existe, estava vocacionada para artigos de combate a fogos, como extintores etc., no entanto, tinha esta máquina na montra à consignação. O gerente era o Sr. Brucher, um alemão que acreditou na palavra de Maciel e lhe entregou a máquina, depois ouvir atentamente toda a sua história, vendo naquele homem de muletas, uma vontade enorme de vencer na vida com o seu esforço e trabalho, dizendo num português arranhado:
— Leve a máquina e paga-me quando puder.
Maciel pediu dinheiro emprestado e com ajuda de uma rapariga como empregada, começou a fabricar novos modelos de presépio para esse Natal. As expectativas foram ultrapassadas, pagou a máquina e o que devia, ficando com um fundo de maneio para continuar. Assim, logo para o Carnaval, fabricou com apetrechos próprios para fazer pequenas aspirais de fino arame em aço, as chamadas “línguas da sogra” (boquilhas com “gaita” de papel, que ao serem sopradas desenrolavam até ao rosto da pessoa próxima, para voltarem à posição inicial). Além destas, fez diversos modelos de chapéus fantasiados em papel crepe. Para a Páscoa, começou a fabricar caixas de amêndoas, algumas com música e outras com figuras decorativas alusivas à época pascal, etc. Para as cascatas de S. João, continuou com as tais casinhas, pontes, coretos, castelos, igrejas, etc. Ainda na época estival, fez para os fabricantes de baldes de praia em chapa para criança, as pás e os ancinhos em madeira. Aperfeiçoou melhor o método de fazer as manjedouras para os presépios, com as espigas secas de palha, que comprava nos armazéns do vinho do Porto, dos restos de palha que utilizavam na altura como invólucros para envolver as garrafas armazenadas.
A 23 de Novembro de 1953, a oficina fez o seu primeiro ano de existência, como a casa pegado ficou devoluta, Maciel aluga-a e mudou a oficina para lá, fazendo da primeira o local das máquinas, com mais uma serra circular com lixadeira copulada. O progresso era visível, enquanto a avó Clara ia olhando pelos netos, Maciel leva a sua oficina a bom porto, agora com mais dois empregados. Tornou-se um exemplo de tenacidade e começou a ser muito respeitado pelos vizinhos. Palmirinha, sua amiga vizinha, depois de um namoro discreto, acaba por ceder aos seus encantos e casaram no dia 30 de Novembro desse mesmo ano. Palmirinha depressa se tornou sua companheira em casa e no trabalho, ajudando-o nas tarefas da oficina com muita habilidade. Conseguiram uma casa na mesma rua, quase defronte à oficina, para onde foram viver com os filhos de ambos. A avó Clara, já reformada da vida de padeira, apegada à sua casinha, não a quis abandonar e ficou a viver só, embora pertinho do filho e dos netos. Mais um ano passou, outra casa do bairro foi alugada pelo Maciel, aumentou à oficina abrindo portas interiores entre as casas, fez desta vez uma secção de pintura manual e onde se mergulhava as peças de madeira em anilina de diversas cores. Começou ainda a fabricar brinquedos em madeira com modelos originais que eram bem acolhidos pelos bazares do Porto, como Bazar Dos Três Vinténs, Bazar Paris, Bazar Londres e Casa Ametista, etc.,. Em 1959, já tem cinco casas seguidas e a oficina torna-se numa fabriqueta com seis empregados. Com um pracista e um catálogo feito por Maciel, começou a vender os brinquedos para a capital e chega mesmo às antigas províncias ultramarinas. Nesta altura já tem ajuda dos filhos, o Marcelo com 11 anos e o Alberto com 9, trabalhando depois da escola.
A 25 de Julho de 1960, cansada e com o coração fraquinho, a avó Clara faleceu com 72 anos, na sua cama, como dantes morriam as pessoas. Chamou o neto Alberto, passou-lhe a mão enrugada sobre a cabeça como se lhe desse a bênção e fechou os olhos com o baixa-mar, eram nove horas da noite.
 
Clara partiu sem nunca desvendar a Maciel, quem era seu pai e qual tinha sido a sua ascendência. Só muito depois de Clara descansar em paz, no Cemitério de Agremonte no Porto e por entre papéis, cartas e documentos antigos, Maciel conheceu o pai José Medeiros dos Santos, por uma fotografia de cor sépia e desbotada. Do espólio da pequena casa de sua mãe, algumas recordações de família foram guardadas, entre elas, as colchas que punha à janela na Páscoa, uma de cetim azul-claro com rosas vermelhas bordadas a ponto cheio, outra de croché e linho, ainda a caneca de vidro que o sogro lhe deu e a célebre chávena de porcelana que sua mãe guardava com muito cuidado e carinho, prenda de seu pai, como ela dizia.      
 
  
Em 1962, Maciel vivia uma vida mais ao menos estabilizada e sem grandes aflições, casado com a Palmira, seus filhos e enteada. Já no Natal de 1961, tinha sido dos primeiros moradores da rua a ter uma TV em casa. Foi por causa daquele “caixote” da Philips com luz e imagem que a fábrica parou em 2 de Março de 1962, para todos assistirem ao Benfica ganhar 5 a 3 ao Real Madrid na Final do Campeonato da Europa. Mas como diz o ditado ”Grande nau, grande tormenta”, tinha atingido um grau de responsabilidade que exigia cada vez mais de si. A fábrica progredia, mas tinha que levar novo rumo nas instalações. Aquelas casinhas do bairro já não serviam as suas necessidades de expansão.
Por intermédio de um cliente e amigo, o Sr. Machado, comerciante de visão que tinha banca de quinquilharias no mercado do Bolhão, encontrou uma local perfeito na rua Dr. Julião da Maia, (antigo lugar da Cruz) junto á rua Costa Cabral, com instalações próprias para a fábrica num rés-do-chão e ainda com um vasto terreno nas traseiras, onde era possível construir um pavilhão para as máquinas, era o ideal. Além disso, o primeiro andar era uma boa residência com seis divisões. Assinou o contrato de arrendamento e fez a mudança em Agosto de 1963. Com a nova fábrica, agora com nova designação comercial, “Mirita” – Fábrica de Brinquedos e Utilidades em Madeira, Lda., dando inicio a uma nova página de sua vida.
     
«Apesar do país cinzento em que se viva, com a guerra no ultramar no auge e um ditador cego que governava pelo medo e a mordaça, criticado pelos países democráticos, como se pode ver no seu discurso de 18 de Fevereiro, na tomada de posse da nova comissão executiva do único partido possível, a União Nacional, ao fazer um balanço da guerra que durava á quatro anos, que no seu entender era positivo e dizia: «Assim, bastantes povos africanos nos parecem agora mais compreensivos das realidades e mais moderados de atitude. Eis o ganho positivo desta batalha em que os portugueses, europeus e africanos, combatemos sem espectáculo e alianças, orgulhosamente sós». Claro que essa solidão não impedia que a política portuguesa fosse geralmente criticada no exterior (para não falar da contestação interna, cada vez maior, com a repressão policial), Isso ficou bem patente durante a visita de Caetano a Londres em 1973, pontuado por manifestações hostis e manchetes violentas nos jornais. Mas estava perto o golpe militar de 25 de Abril de 1974, logo transformado em processo revolucionário de cariz popular. Portugal iria fazer as pazes com o mundo.

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