Ainda encontramos na vida
momentos que são boas recordações, mesmo os passados quantas vezes, na
adversidade da nossa infância, como dizia o meu amigo José Neves:
«...onde
a carência do pão, era compensada com a festa dos afectos...»
Das boas recordações que guardo no sótão da
memória, apesar de perder muito cedo a minha mãe, é duma infância vivida com a
ternura de um pai afectuoso, que soube ser um exemplo de persistência como
incentivo para a minha vida. De uma avó carinhosa e sempre presente, sem deixar
de ser severa na educação, e de um irmão amigo e companheiro que muito amo.
Apesar da adversidade em que vivia, nunca me faltou a alegria de viver, a
harmonia e a amizade dos amigos que comigo se cruzaram na universidade da rua.
Como qualquer criança, levada pela ilusão
própria da idade (apesar da minha geração ter sido adulta muito cedo), a
ansiedade por dias de festas era enorme. As festas eram mimos, atenções,
alegrias acrescidas e... como diz o MEC:
«…nós,
os portugueses, apenas precisam de um pretexto para comemorar qualquer coisa…».
Bastava um dia de festa e a comida era
melhorada, estreava-se uma camisola ou umas sandálias e havia mais alegria nas
pessoas e nas ruas.
Para mim os domingos eram sempre uma festa,
primeiro porque havia manteiga para pôr no pão, depois porque ao almoço havia
cozido à portuguesa, ouvia-se “A Voz dos Ridículos” no rádio e o Salgueiros era
uma nação! Logo pela manhã, depois de ser obrigado a ir à missa com a minha
avó, ela mandava-me à mercearia do Sousa (que tinha sempre meia porta aberta ao
domingo e no passeio o “Mudo” a engraxar sapatos), para comprar dez tostões de
manteiga que o Sousa punha num papel vegetal, depois de tirar dum pote de
porcelana com uma espátula de madeira. Passava pela padaria do “ Zé Mouco” e
trazia os moletes para o café e a regueifa para o almoço. Nestas manhãs de
domingo, a minha rua estava sempre alegre, com as janelas abertas, roupa a
secar nas cordas esticadas com um pau ao alto e os poucos rádios que haviam,
onde durante a semana as mulheres ouviam o “Tide”, tinham o som alto, onde às
vezes se ouvia a Maria Rosa Rodrigues cantar:
Pela
calçada da serra / Subíamos distraídos
Aos
domingos que saudade / Eu e tu muito entretidos
A
olhar p’ra nossa terra / A olhar nossa cidade.
Também aos domingos o Sr. Joaquim Corcunda,
vinha receber a cota semanal de vinte e cinco tostões para a excursão no verão
e tomava nota num cartão com cinquenta quadradinhos onde se lia: Grupo
Excursionista “Haja paz e Harmonia”. A Dona Ermelinda que morava na Ramada Alta
e vendia ouro a prestações, também vinha receber aos domingos lá na rua, sempre
de livro em punho.
De tarde, a malta ia ver o Salgueiros quando
jogava em casa. Íamos aos magotes por S. Brás, passávamos ao campo do Porto na
Constituição (o FCP já jogava nas Antas desde 1952), metíamos ao Covêlo,
descíamos as escadas de S. João e estávamos na rua Augusto Leça, no campo Eng.º
Vidal Pinheiro. Á porta pedia-mos: «Meu senhor leve-me consigo...».
E lá entravamos sem pagar, para ver a nossa
equipa do coração: Era o Barrigana, Chau, Carvalho, Porcel, Mário, Eleutério,
Tito Blanco, Longo, Teixeira, Tai e Benje.
Quando o Salgueiros não jogava em casa,
ficava-mos a jogar à bola no campo do Covêlo e nesses dias, o Tino levava a bola
de couro e câmara-de-ar que tinha ganho com os rebuçados “Vitória”. O Senhor
António, o pai do Tino, era o nosso treinador no Grupo Infantil da Lapa.
Treinava-mos nas Águas Férreas, no campo
da “tutoria” (hoje, Tribunal de Menores) para entrar no Torneio Infantil do
Salgueiros. Eu era guarda-redes suplente o Gabriel era o titular. Nessa equipa
jogavam além do Tino e do irmão, o Zequinha, o Chico ervilha, o Zeca da
Amélinha, o Guruga, o Zé Augusto e o Cocas. Tínhamos todos, um cartão da
Associação de Futebol do Porto com fotografia e tudo… Mas o cartão que mais me
orgulhava era o de sócio infantil do Salgueiros, que o meu pai e a minha
madrasta me deram quando fiz dez anos, por nunca ter perdido nenhum ano na
escola. A cota naquele tempo era de vinte e cinco tostões por mês.
Só voltei a jogar futebol muitos anos depois
na baliza das reservas do Sporting Clube da Cruz, daí fui para os Águias da
Areosa, quase na altura da sua fundação no café Cabinda pelo Sr. Avelino, o Sr.
Alfredo e outros amigos que não me recorda o nome. Joguei mais a brincar do que
outra coisa, com o Zé Guilherme (que mais tarde fez parte comigo, na Comissão
de Obras do clube da Bela), o Barbosa (que é primo da Linda, que foi minha
namorada) o Lino (que veio a ser meu compadre), o Murça, o Zequita (que ficou
em Macau, depois da tropa), o Moka (que trabalhava nos cafés “A Moca” na Areosa),
o João (irmão do Zequita que moravam no Bairro Airoso em Pedrouços) e muitos
mais... Aliás, foi dali, dos águias da Areosa que (muitos anos mais tarde) saiu
para o Boavista o João Pinto que era do bairro do Falcão. Mais ao menos nessa
altura, tinham começado os campeonatos de Futebol Amador e os rivais dos
Águias, eram o Lusitano de Pedrouços e os Unidos ao Porto do Bairro João de
Deus.
Foi numa época em que na Areosa, ainda existia
a fábrica de tecidos do Manuel Pinto de Azevedo, onde trabalhavam centenas de
mulheres bonitas, que davam vida ao lugar as chamadas “pataqueiras”. Na altura,
ainda haviam os postos da PVT (Policia de Viação e Trânsito) nos cruzamentos da
Circunvalação, a estrada que circundava a cidade, era cheia de árvores. Hoje,
com viadutos, VCI e outros acessos à auto-estrada, desta estrada fresca por
onde íamos ao domingo no 78 (de dois pisos)para a praia, pouco resta.
Neste lugar limítrofe do Porto, tal como o
Ameal, Monte dos Burgos, Rio Tinto e outros, vivia muita maralha que era da
cidade. Foi aí, através do contacto com essa gente, que tomei conhecimento dum
modo curioso de falar
— Ó Zé vamos de frosque, comer uma chavala num
tapirete e um escochebi nas mamas?
—
Néria... Vou dar uns xochos e tirar uns nabos com a garina, se não, fico na
prancha.
— E
amanhã de matina, vais ao praiedo?
—
Não manjo o praiedo.
Agora a tradução:
— «Ó
Zé vamos embora, comer uma sardinha num pão e um copo de vinho nas Mamas Gordas
(Casa da zona especialista em iscas)».
— «Não... Vou dar uns beijos e uns mimos à
minha namorada se não ela põe-me de lado».
— «E amanhã de manhã, vais à praia?»
— «Não
gosto de praia».
O Sr. Pereira, distinto empregado do café
Cabinda, é que nos aturava e conseguia compreender e traduzir todo o calão.
Grandes noites de sábado que passamos naquele café com a nossa tertúlia a ver o
“Fugitivo” na TV e comer a celebre “Trinca” (bife com molho inglês e fiambre em
pão fresco) que faziam frente aos pregos do Café Pereira na Praça do Marquês.
Haviam naquela época, quatro cafés na
Areosa, o Cabinda, que tinha um recanto com sofás e uma vitrina com um ramo
seco e pássaros. O Luar que ficava na esquina, num prédio igual aos muitos que
haviam nos cruzamentos da Circunvalação e que em tempos idos, serviram de
postos aduaneiros para quem entrava na cidade. O Comendador que era o mais
moderno e mais tarde foi a sapataria com o mesmo nome. E por último, o S. João
que era de uma sociedades de amigos, onde um deles era o Sr. Henrique alfaiate,
pai do Agostinho que esteve comigo na guerra em Angola.
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