domingo, 4 de outubro de 2020

ENQUANTO ME LEMBRO... "MEMÓRIAS" 1


BOAS RECORDAÇÕES






Ainda encontramos na vida momentos que são boas recordações, mesmo os passados quantas vezes, na adversidade da nossa infância, como  dizia o meu amigo José Neves: 

«...onde a carência do pão, era compensada com a festa dos afectos...»  

Das boas recordações que guardo no sótão da memória, apesar de perder muito cedo a minha mãe, é duma infância vivida com a ternura de um pai afectuoso, que soube ser um exemplo de persistência como incentivo para a minha vida. De uma avó carinhosa e sempre presente, sem deixar de ser severa na educação, e de um irmão amigo e companheiro que muito amo. Apesar da adversidade em que vivia, nunca me faltou a alegria de viver, a harmonia e a amizade dos amigos que comigo se cruzaram na universidade da rua.

Como qualquer criança, levada pela ilusão própria da idade (apesar da minha geração ter sido adulta muito cedo), a ansiedade por dias de festas era enorme. As festas eram mimos, atenções, alegrias acrescidas e... como diz o MEC:

«…nós, os portugueses, apenas precisam de um pretexto para comemorar qualquer coisa…».

Bastava um dia de festa e a comida era melhorada, estreava-se uma camisola ou umas sandálias e havia mais alegria nas pessoas e nas ruas.

Para mim os domingos eram sempre uma festa, primeiro porque havia manteiga para pôr no pão, depois porque ao almoço havia cozido à portuguesa, ouvia-se “A Voz dos Ridículos” no rádio e o Salgueiros era uma nação! Logo pela manhã, depois de ser obrigado a ir à missa com a minha avó, ela mandava-me à mercearia do Sousa (que tinha sempre meia porta aberta ao domingo e no passeio o “Mudo” a engraxar sapatos), para comprar dez tostões de manteiga que o Sousa punha num papel vegetal, depois de tirar dum pote de porcelana com uma espátula de madeira. Passava pela padaria do “ Zé Mouco” e trazia os moletes para o café e a regueifa para o almoço. Nestas manhãs de domingo, a minha rua estava sempre alegre, com as janelas abertas, roupa a secar nas cordas esticadas com um pau ao alto e os poucos rádios que haviam, onde durante a semana as mulheres ouviam o “Tide”, tinham o som alto, onde às vezes se ouvia a Maria Rosa Rodrigues cantar:     

 

Pela calçada da serra / Subíamos distraídos

Aos domingos que saudade / Eu e tu muito entretidos     

A olhar p’ra nossa terra / A olhar nossa cidade.

 

Também aos domingos o Sr. Joaquim Corcunda, vinha receber a cota semanal de vinte e cinco tostões para a excursão no verão e tomava nota num cartão com cinquenta quadradinhos onde se lia: Grupo Excursionista “Haja paz e Harmonia”. A Dona Ermelinda que morava na Ramada Alta e vendia ouro a prestações, também vinha receber aos domingos lá na rua, sempre de livro em punho.

De tarde, a malta ia ver o Salgueiros quando jogava em casa. Íamos aos magotes por S. Brás, passávamos ao campo do Porto na Constituição (o FCP já jogava nas Antas desde 1952), metíamos ao Covêlo, descíamos as escadas de S. João e estávamos na rua Augusto Leça, no campo Eng.º Vidal Pinheiro. Á porta pedia-mos: «Meu senhor leve-me consigo...».

E lá entravamos sem pagar, para ver a nossa equipa do coração: Era o Barrigana, Chau, Carvalho, Porcel, Mário, Eleutério, Tito Blanco, Longo, Teixeira, Tai e Benje.

Quando o Salgueiros não jogava em casa, ficava-mos a jogar à bola no campo do Covêlo e nesses dias, o Tino levava a bola de couro e câmara-de-ar que tinha ganho com os rebuçados “Vitória”. O Senhor António, o pai do Tino, era o nosso treinador no Grupo Infantil da Lapa. Treinava-mos nas  Águas Férreas, no campo da “tutoria” (hoje, Tribunal de Menores) para entrar no Torneio Infantil do Salgueiros. Eu era guarda-redes suplente o Gabriel era o titular. Nessa equipa jogavam além do Tino e do irmão, o Zequinha, o Chico ervilha, o Zeca da Amélinha, o Guruga, o Zé Augusto e o Cocas. Tínhamos todos, um cartão da Associação de Futebol do Porto com fotografia e tudo… Mas o cartão que mais me orgulhava era o de sócio infantil do Salgueiros, que o meu pai e a minha madrasta me deram quando fiz dez anos, por nunca ter perdido nenhum ano na escola. A cota naquele tempo era de vinte e cinco tostões por mês.

Só voltei a jogar futebol muitos anos depois na baliza das reservas do Sporting Clube da Cruz, daí fui para os Águias da Areosa, quase na altura da sua fundação no café Cabinda pelo Sr. Avelino, o Sr. Alfredo e outros amigos que não me recorda o nome. Joguei mais a brincar do que outra coisa, com o Zé Guilherme (que mais tarde fez parte comigo, na Comissão de Obras do clube da Bela), o Barbosa (que é primo da Linda, que foi minha namorada) o Lino (que veio a ser meu compadre), o Murça, o Zequita (que ficou em Macau, depois da tropa), o Moka (que trabalhava nos cafés “A Moca” na Areosa), o João (irmão do Zequita que moravam no Bairro Airoso em Pedrouços) e muitos mais... Aliás, foi dali, dos águias da Areosa que (muitos anos mais tarde) saiu para o Boavista o João Pinto que era do bairro do Falcão. Mais ao menos nessa altura, tinham começado os campeonatos de Futebol Amador e os rivais dos Águias, eram o Lusitano de Pedrouços e os Unidos ao Porto do Bairro João de Deus.      

Foi numa época em que na Areosa, ainda existia a fábrica de tecidos do Manuel Pinto de Azevedo, onde trabalhavam centenas de mulheres bonitas, que davam vida ao lugar as chamadas “pataqueiras”. Na altura, ainda haviam os postos da PVT (Policia de Viação e Trânsito) nos cruzamentos da Circunvalação, a estrada que circundava a cidade, era cheia de árvores. Hoje, com viadutos, VCI e outros acessos à auto-estrada, desta estrada fresca por onde íamos ao domingo no 78 (de dois pisos)para a praia, pouco resta.

Neste lugar limítrofe do Porto, tal como o Ameal, Monte dos Burgos, Rio Tinto e outros, vivia muita maralha que era da cidade. Foi aí, através do contacto com essa gente, que tomei conhecimento dum modo curioso de falar em calão. Tão peculiar era o seu linguajar que só uma pessoa do mesmo lugar era capaz de compreender frases completas numa conversação, por exemplo neste diálogo:

 — Ó Zé vamos de frosque, comer uma chavala num tapirete e um escochebi nas mamas?

— Néria... Vou dar uns xochos e tirar uns nabos com a garina, se não, fico na prancha.

— E amanhã de matina, vais ao praiedo?

— Não manjo o praiedo.

Agora a tradução:

— «Ó Zé vamos embora, comer uma sardinha num pão e um copo de vinho nas Mamas Gordas (Casa da zona especialista em iscas)».

 — «Não... Vou dar uns beijos e uns mimos à minha namorada se não ela põe-me de lado».

 — «E amanhã de manhã, vais à praia?»

— «Não gosto de praia».

O Sr. Pereira, distinto empregado do café Cabinda, é que nos aturava e conseguia compreender e traduzir todo o calão. Grandes noites de sábado que passamos naquele café com a nossa tertúlia a ver o “Fugitivo” na TV e comer a celebre “Trinca” (bife com molho inglês e fiambre em pão fresco) que faziam frente aos pregos do Café Pereira na Praça do Marquês.

Haviam naquela época, quatro cafés na Areosa, o Cabinda, que tinha um recanto com sofás e uma vitrina com um ramo seco e pássaros. O Luar que ficava na esquina, num prédio igual aos muitos que haviam nos cruzamentos da Circunvalação e que em tempos idos, serviram de postos aduaneiros para quem entrava na cidade. O Comendador que era o mais moderno e mais tarde foi a sapataria com o mesmo nome. E por último, o S. João que era de uma sociedades de amigos, onde um deles era o Sr. Henrique alfaiate, pai do Agostinho que esteve comigo na guerra em Angola.     

 


 

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