O S. JOÃO DE 1959
Já lá vão tantos anos... Mas recordo-me de muitas coisas!...
O meu S. João nesse de 1959 foi assim:
A azáfama tinha começado logo
pela manhã, quando acordei com a minha avó Ana a chamar:
— Ò Amélinha! não se esqueça de ir aos pimentos e encomendar a broa ao “Mouco”!
Era sempre assim no dia de S. João, havia pimentos e sardinha assada, caldo verde e broa. Mais à noitinha era a vez das torradas com café, feito nas fogueiras ao longo da rua.
A Amélia “manca” como lhe chamavam, lá ia rua da Glória abaixo à tenda da Zirinha hortaliceira.
A Amélinha era uma viúva muito prestável com os vizinhos. Tinha três filhos, o Xico o mais pequenito, o mais velho que estava para Lisboa (era raro vir ao Porto) e o Zeca que trazia algum dinheiro da venda dos jornais, saltando de eléctrico em eléctrico subindo a Lapa, apregoando:
— Olha o Norte!... Olha o Notícias!...
A pensão que recebia do acidente que sofreu na fábrica, era uma miséria, mas a Amélinha era querida por todos, principalmente por aquelas que tinham vergonha de ir ao “Prego” e lhe pediam o favor do recado.
A vida era muito difícil nessa altura, assim, haviam diálogos destes:
—Ó Sr. Reis dê-me lá os cem mil reis, a criatura que me mandou tem que pagar a renda, depois, é só por uns dias...
Implorava
a Amélinha e o senhor Reis dizia:
—Vou fazer-lhe o jeito, mas veja-me aquelas cautelas da D. Adosinda, desde Abril que não paga juros e já estamos em Junho!
Esta D. Adosinda não era casada, mas um automóvel “Singer” parava uma vez por semana no funda rua e um senhor de chapéu preto subia até à sua casa e ficava lá até tarde. Nós, os putos, ficávamos a rodear o carro ofuscados pelo brilho dos cromados, olhando os nossos rostos que espelhavam na pintura, admirávamos o luxo dos assentosem pele. Depois no dia
seguinte, a D. Adosinda vinha à janela de flor no cabelo e atirava “à
guerrilha” rebuçados, por no dia anterior ter-mos tomado conta do carro.
Ajudava todos que lhe batiam à porta; Uma receita para aviar na farmácia. Um desmancho de uma gravidez indesejada. Um marido desempregado ou o fiado cortado na mercearia. Por isso lá na rua era tratada por senhora dona Adosinda.
Mas vamos ao S. João.
Nesse dia a nossa rua estava toda engalanada de ramos de palmeiras que faziam arco, presas com arame a meio e na junção das pontas um balão. Depois um festão colorido ligava os vários arcos de uma ponta a outra da rua. Um grande balão iluminado, feito com arames em forma de pipo e papel de seda, estava pendurado à porta do tasco da Sãozinha e dizia: ”Vinhos e Petiscos”. O Festão era feito aos fins de tarde, já andavam a fazê-lo desde fins de Março. A corda era esticada ao longo da rua, com a goma feita de farinha, colava-se o papel de seda ás cores. Logo atrás vinham outros a dar golpes de tesoura muito certinhos, por fim o Mário estofador, com um aparelho de fazer as molas dos sofás, dava a manivela torcendo a corda, até o festão ficarem espiral.
Faziam-se também bambolins, mas para isso, o Sr. Alfredo da
tipografia, trazia o papel já cortado ás tiras, depois era só colar elo a elo
em cores alternadas como um cadeado.
Nesse ano, a rua senhora da Lapa tinha arcos feitos por um armador profissional, mas eu gostava mais da nossa rua, era mais típica.
Junto ao palanque erguia-se o “Bufete” e ao lado era a cabina de som, onde o Fernando punha os discos no prato e dizia os reclamos como: «Prefira produtos da mercearia Sousa, vindos das melhores procedências, António Sousa, rua da Glória 84, com o telefone 457892». Também se dedicavam discos aos vizinhos e então ouvia-se: «Um anónimo dedica à menina Judite o disco que se segue». Servia também para chamar, por exemplo: «Atenção Sr. Vieira, atenção Sr. Vieira, a sua mulher procura-o aqui junto à cabina de som». Também para agradecer: «A comissão de festa, agradece ao Sr. Amaral carvoeiro, o seu donativo para a presença da orquestra “Os Boémios”, que abrilhantarão o baile neste recinto do S. João da Lapa».
A minha avó preparava a assadeira para levar
á padaria do “Mouco”, temperando o anho com azeite e colorau. Sentia-se no ar
um cheiro bom a loureiro e alhos, coentros e alecrim. Guardo ainda a memória
dos aromas, dos cheiros caseiros da infância que nunca se esquecem, que vão desde
o cheiro ao fumo do carvão, até ao cheirinho dos pêssegos na fruteira.
Durante a semana, tinham andado os homens
com rebanhos de carneiros pelas ruas, as mulheres juntavam-se aos pares para
escolher e comprar o anho a meias. Ali mesmo na rua, depois de tosquiados á
tesoura e a lã amarrada, com a ajuda de um alguidar de barro e facas, os homens
matavam e esfolavam os carneiros. As moscas zumbiam, voando junto ao alguidar
com as entranhas dos bovídeos á mostra e as mulheres deitavam baldes de água
pela rua abaixo para lavar o sangue. Não era bonito de ver, mas estava-mos
habituado àquele espectáculo insalubre.
Na véspera de S. João á tarde, estava tudo
pronto para a noitada, ouvia-se nos altifalantes de corneta, alugados à Ideal
Rádio:
«Um, dois. Um, dois. Experiências de microfones...».
A noite chegava finalmente e o “Pirata” electricista, ligava as luzes da rua, era uma alegria a nossa festa, quando do céu começavam a cair as orvalhadas.
O Daniel desenhador de litografia e poeta nas horas vagas, vinha à janela tirar fotografias com a sua Kodak. O Daniel, era capaz de ver beleza naquilo que os outros nem reparavam. Dizia muitas vezes:
—Não há mulheres feias, há é menos bonitas.
Como me lembro bem da malta desse tempo... Com algumas continuei amigo pela vida fora, como o Edgar que morava numa ilha da rua do Paraíso, juntos andamos na guerra do Ultramar, chegou a cumprir lá prisão por deserção, não aguentava a hipocrisia que se vivia por lá, por entre os meandros do fascismo. Juntos fizemos grandes borgas, foi chefe nos caminhos-de-ferro, morreu já lá vão uns anos e teve muito pouco tempo para ser feliz!...
O Aníbal que andou comigo na escola primária, foi vocalista de um conjunto e autor duma canção conhecida na época com o título: “Lurdes” (com quem chegou a casar), depois trabalhou num banco e suicidou-se por alguma razão pessoal que eu nunca soube.
O Sérgio irmão da Virinha (a minha primeira paixão), que é actor de teatro e fadista amador, vendedor de profissão e taxista nas horas vagas, residia na travessa da Regeneração e foi para o Bairro do Agra, para onde foram também o Manel Russo, o Jota, o Domingos, o Cardinal, o Fernando e muitos outros, que moravam nas ilhas.
O Franclim que já partiu, neto do picheleiro em São Brás. Era tipógrafo, tocava viola e mais tarde foi também fadista amador.
Como é bom recordar hoje esses amigos de infância, com alguns ainda me encontro pelas esquinas da vida.
Mas voltando ao meu S. João.
Os miúdos como eu tinham as cascatas nos passeios, feitas com musgo, pedrinhas e um pratinho para as moedas. Começávamos pelo principal, o altar dos três santos populares. Depois, conforme os tostões que íamos arrecadando, lá comprava-mos o “cagão”, o pescador (a quem púnhamos uma piaçaba como fazer cana de pesca), o pastor e o rebanho, a leiteira e a banda de música. Esta era muito difícil de completar, pois nunca tínhamos tostões suficientes. Pedia-mos a quem passava:
«Dê-me um tostãozinho para o S. João...». Desde o S. António ao S. Pedro, todos os dias se fazia e desfazia a cascata, guardava-se tudo numa caixa de sapatos, o musgo a areia e os santos de barro.
No Largo da Lapa, no passeio do hospital, haviam mulheres com bancas montadas a venderem manjerico com quadras de S. João impressas em papel colorido e coladas em arames finos como se fossem bandeirinhas, vendiam também o alho-porro e erva-cidreira. Não havia ainda a praga dos martelinhos que foram criados no ano de 1963 pelo industrial Manuel António Boaventura, da Fábrica Estrela do Paraíso, em Rio Tinto. Foram um sucesso na queima das fitas desse ano e os que sobraram vendeu-os no S. João, a partir daí, a moda pegou para desgosto dos mais tradicionalistas.
Também acabaram os homens com padiolas, que vendiam chapéus feitos de papel crepe de muitas cores e feitios, bivaques com berloques, de aba larga ou pequeninos com flor para as meninas. Vendiam também aquelas bolas de papel cheias de serrim com elástico, que se prendia no dedo anelar e se jogava à cabeça das meninas. Vendiam-se “bichinhas-de-rabiar”, os pirilampos e as rodelas de fogo preso, que se prendia num prego para girar. Haviam ainda os balões feitos de papel, para largar com mexa embebida em petróleo depois de bem abertos á custa de abanadores que insuflavam ar. Eram os característicos balões de S. João, não havia rua que não lançasse um balão, eram como estrelas luzidias que pairavam no ar, mensagens de luz a iluminar aquela noite de Junho.
O S. João na rua estava quase a rebentar! Nos altifalantes ouvia-se o Conjunto António Mafra:
Deite um manjerico na manhã de S. João
Deite um manjerico e com ele o coração
Agora acredito na tua afeição
Deite um manjerico na manhã de S. João
Junto da cabine de som, o “Vermelho”, polícia da esquadra do Paraíso, verificava as licenças: «Direcção Geral dos Espectáculos... Governo Civil... Muito bem, tá tudo em ordem».
Era vermelho por causa da “pinga” que lhe punha o nariz e as faces encarnadas, não por opção política, nesse tempo até os barbeiros tinham um letreiro: ”É proibido discutir política”. Que o diga o falecido Sr. Ernesto, (que trabalhava na “Calandra do Bonfim”) e que “Os vampiros” levaram até à rua do Heroísmo, naquela noite em que algum “Bufa” o denunciou e encontraram o “Avante” em cima do guarda-vestidos. Quando voltou vinha magro e branco, tinha perdido aquele olhar vivo que tinha, para dar lugar ao baço e triste. Ele que tinha andado no ano anterior na campanha do Humberto Delgado, eu era miúdo, mas lembro-me da minha avó me dizer, a caminho da padaria na rua de Sá Noronha: «A nossa politica é a tigela da sopa!». Mas o Sr. Ernesto lá estava à entrada da Praça Carlos Alberto com os braços no ar gritando: «Abaixo o fascismo!».
Muito mais tarde eu, o Quim manquinho e o Deolindo, líamos o “Avante” ás escondidas no café Luar na Areosa. Um a um íamos ao wc e guardávamos o jornal enrolado debaixo da sanita. Até ao dia em que o Quim entrou no café a gritar com o Diário de Lisboa na mão: «Acabou, puta que os pariu! Estamos livres!».
Estávamos a vinte e seis de Abril de 1974, cheios de medo e de incertezas do que estava a acontecer. O Quim em Pedrouços, abriu a janela de casa de par em par com o volume do gira-discos no máximo, para todos ouvirem o Manuel Freire cantar:
Não há machado que corte /A raiz ao pensamento
Não há morte para o vento /Não há morte
Mas isso foi outra festa... Agora voltemos ao meu S. João.
No palanque ao fundo da rua, junto ao fontanário, tocava a “Orquestra Boémia”. No largo, enfeitado com uma teia de aranha feita em corda de festão e candeeiros de arame com papel de seda, todos dançavam com alegria. Havia muita luz e um cheirinho a sardinhas e pimentos assados no ar.
Os rapazes de brilhantina no cabelo e olhos atentos nas raparigas que enchiam o recinto. Elas de lindos sorrisos e vestidos aos folhos, outras mais atrevidas de saias muito justas e blusas a tangerem os peitos ardentes de desejos. A Antonieta até uma flor no cabelo trazia, (como era linda a Antonieta!...) Foi o Eduardo que a convidou para dançar e não mais a largou toda a noite, (Como devia ser bom, andar nos braços da Antonieta!...). Já de madrugada, andava a mãe dela, a Rosinha (tecedeira da fabrica de Salgueiros), à procura da filha. Ninguém reparou que ela estava tão perto, aos beijos com o Eduardo num canto escuro da “Ilha do Almeida”. Abraçada a ele com o peito a palpitar, os lábios húmidos de beijos, o seio na mão dele, nos olhos a loucura de duas luas brilhantes. Era noite de S. João, e quantas como a Antonieta, ainda haveriam até o sol nascer?...
As fogueiras pela rua abaixo crepitavam e faziam curiosos bailados de sombras nas paredes. Casais de namorados saltavam-nas com cuidado para não se queimarem nem entornar a cafeteira do café, ou a grelha das sardinhas.
Rusgas passavam com alegria, rancho de gentes dançando e festejando o S. João, vinham do Monte Pedral, do Campo Lindo, das Barrocas, da Fontinha de outros bairros. Os homens traziam ramalhos e balões, tocavam bombo, concertina, viola e ferrinhos e as mulheres batiam com testos de panelas cantando:
Orvalhadas, orvalhadas, orvalhadas
E viva o rancho das mulheres casadas
E repenica, repenica, repenica
O S. João a mijar em bica
Os moradores da rua ofereciam vinho, sardinhas e broa a quem passava. A um grito de alerta e tudo olhava o céu. «Olha o balão!» E lá ia ele, como um sol na noite escura, levando mensagens de paz e alegria, queimando as mágoas da gente numa emoção contida. Era a festa dos afectos! Era a festa de S. João da minha rua!
A noite tinha sido uma alegria, até o cansaço chegar. Nós, os mais espigadotes, tínhamos dado uma fugida até ao S. João do Paraíso, eu e o meu irmão, o Chico e o Cocas. Estalamos “Pirilampos”, deitamos “Bichas-de-rabear” mas tínhamos que fugir depois... A suar da correria, apesar das orvalhadas que caíam, íamos beber água à fonte de Salgueiros. O Chico nessa noite, perdeu o relógio “Cauny” que o pai lhe deu quando fez a quarta classe, chorava e adivinhava uma trepa das boas, tinha sido comprado a prestações à Ermelindinha. Resolvemos no dia seguinte, irmos todos falar ao Sr. Juvininho para que desculpasse o Chico.
Quando o Zeca da Amélinha gritou era manhã: «Olha o Noticias! Traz o concurso das quadras! Olha o Noticias!».
Levantei-me
e acordei o meu irmão, deitei água do jarro na pia e lavei a cara, a água
estava fria. O Cocas e o Chico já andavam na rua. Nessa Quarta-feira dia de S.
João, fazia parte do programa das festas uma “Corrida de sacos” e “Partir os
cântaros”. Para a corrida de sacos, estávamos todos inscritos, tínhamos até
treinado, o Cocas opinava: «Não estiquem
o saco, deixem-no com folga para dobrarem melhor os joelhos ao saltar». Alguns
caíam, rebolando rua abaixo com os sacos já rotos, era uma pândega. O Zeca
inscreveu-se para partir os cântaros barro, era o mais alto da malta. Os
cântaros estavam pendurados por cordas e cheios de água, outros tinham farinha
e só um tinha dinheiro que se espalhava ao partir. Era necessário não perder a
noção do espaço e orientar o pau até tocar de leve, e depois desferir um golpe
certeiro. Claro que a dificuldade eram os olhos vendados. Nessa tarde de S.
João, ainda houve uma corrida de arco e gancheta, que o Toninho da peixeira ganhou
porque corria muito. Parece que ainda o vejo de número preso nas costas com um
alfinete, a correr pela Lapa acima, dar a curva na Travessa de Salgueiros com o
arco a saltitar no empedrado, entrar na rua da Gloria a travar na descida com a
gancheta ao contrario, e cortar a meta junto ao tasco da Sãozinha, mesmo
enfrente à minha porta.
Como era lindo o S. João da minha na rua... Estávamos em 1959 e eu só tinha 11 anos, e não acreditava se me dissessem, que um dia trocariam o alho-porro por um martelinho de plástico, que as Fontainhas iam quase acabar, juntamente com as festas dos bairros e das ruas... As rusgas? Só em concursos na baixa se voltariam a ver.
Depois foram acabando as ilhas, Foi quando os bairros do Regado e do Agra, do Pio XII e da Pasteleira, do Duque Saldanha e de Contumil, de S. Roque e do Cerco, foram fazendo o S. João que as suas gentes levaram para lá. Até que mesmo aí, foi lentamente acabando, hoje poucos bairros ainda fazem o S. João. Os carolas vão morrendo e a malta nova não está para ter trabalho, prefere beber umas cervejas e andar em fila indiana a correr pela baixa de martelinho em punho, ou assistir a concertos do Abrunhosa ou dos Clãs, que pode cantar muito bem e até serem do Porto, mas não cantam ao S. João como o “Mafra” cantava.
Nos dias de hoje o S. João tornou-se mais cosmopolita e em alguns casos mais selectivo. Sofisticou-se um pouco, mas continua a ser uma festa onde toda a gente convive, numa noite inteira de fraternidade e de festa. Uma coisa nunca muda, porque este povo é teimoso e está agarrado ás suas tradições. Nessa noite, (considerada por muita gente a mais democrática do mundo), da Praça da Liberdade à Ribeira, da Sé ás Fontainhas, um mar de povo enche a cidade numa madrugada ímpar no mundo, com a festa mais popular e solidária, numa manifestação de alegria sem limites, esquecendo as politiquices e os problemas que a vida tem por uma noite de festa e como diz o povo na sua sabedoria: “Tristezas não pagam dividas”.
Mas a 25 de Junho... Já não volta a ser a cidade que acordava com as vendedeiras do Bolhão e as peixeiras na Ribeira, com os operários que corriam para as oficinas, ao som dos canudos das fábricas, saltando do eléctrico ou ainda montados nas bicicletas com a marmita no quadro, fazendo esta cidade fervilhar de vida, não como hoje se tornou triste e deserta. Apesar de ser património da humanidade, a cidade do Porto que já foi capital do trabalho, da democracia e da liberdade será sempre a minha Cidade do Porto, mais tarde escrevi esta letra para um fado que a Maria Augusta cantou:
MEU AMOR MINHA CIDADE
Meu Porto bordado a ouro / Nas finas rendas
do Douro
Meu amor minha cidade
Ó minha jóia em granito / Que guardas em ti o grito
Do teu povo à liberdade
Do Bonfim à Cantareira / Do Amial à
Ribeira
Cada rua tem historia
Foi do “Ouro” triunfante / Que partiu o nosso Infante
A caminho da glória
O meu Porto destemido / Que nunca
foste vencido
E adoras o S. João
E ao lutares lado a lado / Com o nosso Rei Soldado
Ele deu-te o coração
A tua maior medalha / É teu povo que
trabalha
Tripeiro mas com vaidade
És nobre e sempre leal / Deste o nome a Portugal
Nossa senhora te guarde
— Ò Amélinha! não se esqueça de ir aos pimentos e encomendar a broa ao “Mouco”!
Era sempre assim no dia de S. João, havia pimentos e sardinha assada, caldo verde e broa. Mais à noitinha era a vez das torradas com café, feito nas fogueiras ao longo da rua.
A Amélia “manca” como lhe chamavam, lá ia rua da Glória abaixo à tenda da Zirinha hortaliceira.
A Amélinha era uma viúva muito prestável com os vizinhos. Tinha três filhos, o Xico o mais pequenito, o mais velho que estava para Lisboa (era raro vir ao Porto) e o Zeca que trazia algum dinheiro da venda dos jornais, saltando de eléctrico em eléctrico subindo a Lapa, apregoando:
— Olha o Norte!... Olha o Notícias!...
A pensão que recebia do acidente que sofreu na fábrica, era uma miséria, mas a Amélinha era querida por todos, principalmente por aquelas que tinham vergonha de ir ao “Prego” e lhe pediam o favor do recado.
A vida era muito difícil nessa altura, assim, haviam diálogos destes:
—Ó Sr. Reis dê-me lá os cem mil reis, a criatura que me mandou tem que pagar a renda, depois, é só por uns dias...
—Vou fazer-lhe o jeito, mas veja-me aquelas cautelas da D. Adosinda, desde Abril que não paga juros e já estamos em Junho!
Esta D. Adosinda não era casada, mas um automóvel “Singer” parava uma vez por semana no funda rua e um senhor de chapéu preto subia até à sua casa e ficava lá até tarde. Nós, os putos, ficávamos a rodear o carro ofuscados pelo brilho dos cromados, olhando os nossos rostos que espelhavam na pintura, admirávamos o luxo dos assentos
Ajudava todos que lhe batiam à porta; Uma receita para aviar na farmácia. Um desmancho de uma gravidez indesejada. Um marido desempregado ou o fiado cortado na mercearia. Por isso lá na rua era tratada por senhora dona Adosinda.
Nesse dia a nossa rua estava toda engalanada de ramos de palmeiras que faziam arco, presas com arame a meio e na junção das pontas um balão. Depois um festão colorido ligava os vários arcos de uma ponta a outra da rua. Um grande balão iluminado, feito com arames em forma de pipo e papel de seda, estava pendurado à porta do tasco da Sãozinha e dizia: ”Vinhos e Petiscos”. O Festão era feito aos fins de tarde, já andavam a fazê-lo desde fins de Março. A corda era esticada ao longo da rua, com a goma feita de farinha, colava-se o papel de seda ás cores. Logo atrás vinham outros a dar golpes de tesoura muito certinhos, por fim o Mário estofador, com um aparelho de fazer as molas dos sofás, dava a manivela torcendo a corda, até o festão ficar
Nesse ano, a rua senhora da Lapa tinha arcos feitos por um armador profissional, mas eu gostava mais da nossa rua, era mais típica.
Junto ao palanque erguia-se o “Bufete” e ao lado era a cabina de som, onde o Fernando punha os discos no prato e dizia os reclamos como: «Prefira produtos da mercearia Sousa, vindos das melhores procedências, António Sousa, rua da Glória 84, com o telefone 457892». Também se dedicavam discos aos vizinhos e então ouvia-se: «Um anónimo dedica à menina Judite o disco que se segue». Servia também para chamar, por exemplo: «Atenção Sr. Vieira, atenção Sr. Vieira, a sua mulher procura-o aqui junto à cabina de som». Também para agradecer: «A comissão de festa, agradece ao Sr. Amaral carvoeiro, o seu donativo para a presença da orquestra “Os Boémios”, que abrilhantarão o baile neste recinto do S. João da Lapa».
«Um, dois. Um, dois. Experiências de microfones...».
A noite chegava finalmente e o “Pirata” electricista, ligava as luzes da rua, era uma alegria a nossa festa, quando do céu começavam a cair as orvalhadas.
O Daniel desenhador de litografia e poeta nas horas vagas, vinha à janela tirar fotografias com a sua Kodak. O Daniel, era capaz de ver beleza naquilo que os outros nem reparavam. Dizia muitas vezes:
—Não há mulheres feias, há é menos bonitas.
Como me lembro bem da malta desse tempo... Com algumas continuei amigo pela vida fora, como o Edgar que morava numa ilha da rua do Paraíso, juntos andamos na guerra do Ultramar, chegou a cumprir lá prisão por deserção, não aguentava a hipocrisia que se vivia por lá, por entre os meandros do fascismo. Juntos fizemos grandes borgas, foi chefe nos caminhos-de-ferro, morreu já lá vão uns anos e teve muito pouco tempo para ser feliz!...
O Aníbal que andou comigo na escola primária, foi vocalista de um conjunto e autor duma canção conhecida na época com o título: “Lurdes” (com quem chegou a casar), depois trabalhou num banco e suicidou-se por alguma razão pessoal que eu nunca soube.
O Sérgio irmão da Virinha (a minha primeira paixão), que é actor de teatro e fadista amador, vendedor de profissão e taxista nas horas vagas, residia na travessa da Regeneração e foi para o Bairro do Agra, para onde foram também o Manel Russo, o Jota, o Domingos, o Cardinal, o Fernando e muitos outros, que moravam nas ilhas.
O Franclim que já partiu, neto do picheleiro em São Brás. Era tipógrafo, tocava viola e mais tarde foi também fadista amador.
Como é bom recordar hoje esses amigos de infância, com alguns ainda me encontro pelas esquinas da vida.
Mas voltando ao meu S. João.
Os miúdos como eu tinham as cascatas nos passeios, feitas com musgo, pedrinhas e um pratinho para as moedas. Começávamos pelo principal, o altar dos três santos populares. Depois, conforme os tostões que íamos arrecadando, lá comprava-mos o “cagão”, o pescador (a quem púnhamos uma piaçaba como fazer cana de pesca), o pastor e o rebanho, a leiteira e a banda de música. Esta era muito difícil de completar, pois nunca tínhamos tostões suficientes. Pedia-mos a quem passava:
«Dê-me um tostãozinho para o S. João...». Desde o S. António ao S. Pedro, todos os dias se fazia e desfazia a cascata, guardava-se tudo numa caixa de sapatos, o musgo a areia e os santos de barro.
No Largo da Lapa, no passeio do hospital, haviam mulheres com bancas montadas a venderem manjerico com quadras de S. João impressas em papel colorido e coladas em arames finos como se fossem bandeirinhas, vendiam também o alho-porro e erva-cidreira. Não havia ainda a praga dos martelinhos que foram criados no ano de 1963 pelo industrial Manuel António Boaventura, da Fábrica Estrela do Paraíso, em Rio Tinto. Foram um sucesso na queima das fitas desse ano e os que sobraram vendeu-os no S. João, a partir daí, a moda pegou para desgosto dos mais tradicionalistas.
Também acabaram os homens com padiolas, que vendiam chapéus feitos de papel crepe de muitas cores e feitios, bivaques com berloques, de aba larga ou pequeninos com flor para as meninas. Vendiam também aquelas bolas de papel cheias de serrim com elástico, que se prendia no dedo anelar e se jogava à cabeça das meninas. Vendiam-se “bichinhas-de-rabiar”, os pirilampos e as rodelas de fogo preso, que se prendia num prego para girar. Haviam ainda os balões feitos de papel, para largar com mexa embebida em petróleo depois de bem abertos á custa de abanadores que insuflavam ar. Eram os característicos balões de S. João, não havia rua que não lançasse um balão, eram como estrelas luzidias que pairavam no ar, mensagens de luz a iluminar aquela noite de Junho.
O S. João na rua estava quase a rebentar! Nos altifalantes ouvia-se o Conjunto António Mafra:
Deite um manjerico na manhã de S. João
Deite um manjerico e com ele o coração
Agora acredito na tua afeição
Deite um manjerico na manhã de S. João
Junto da cabine de som, o “Vermelho”, polícia da esquadra do Paraíso, verificava as licenças: «Direcção Geral dos Espectáculos... Governo Civil... Muito bem, tá tudo em ordem».
Era vermelho por causa da “pinga” que lhe punha o nariz e as faces encarnadas, não por opção política, nesse tempo até os barbeiros tinham um letreiro: ”É proibido discutir política”. Que o diga o falecido Sr. Ernesto, (que trabalhava na “Calandra do Bonfim”) e que “Os vampiros” levaram até à rua do Heroísmo, naquela noite em que algum “Bufa” o denunciou e encontraram o “Avante” em cima do guarda-vestidos. Quando voltou vinha magro e branco, tinha perdido aquele olhar vivo que tinha, para dar lugar ao baço e triste. Ele que tinha andado no ano anterior na campanha do Humberto Delgado, eu era miúdo, mas lembro-me da minha avó me dizer, a caminho da padaria na rua de Sá Noronha: «A nossa politica é a tigela da sopa!». Mas o Sr. Ernesto lá estava à entrada da Praça Carlos Alberto com os braços no ar gritando: «Abaixo o fascismo!».
Muito mais tarde eu, o Quim manquinho e o Deolindo, líamos o “Avante” ás escondidas no café Luar na Areosa. Um a um íamos ao wc e guardávamos o jornal enrolado debaixo da sanita. Até ao dia em que o Quim entrou no café a gritar com o Diário de Lisboa na mão: «Acabou, puta que os pariu! Estamos livres!».
Estávamos a vinte e seis de Abril de 1974, cheios de medo e de incertezas do que estava a acontecer. O Quim em Pedrouços, abriu a janela de casa de par em par com o volume do gira-discos no máximo, para todos ouvirem o Manuel Freire cantar:
Não há machado que corte /A raiz ao pensamento
Não há morte para o vento /Não há morte
Mas isso foi outra festa... Agora voltemos ao meu S. João.
No palanque ao fundo da rua, junto ao fontanário, tocava a “Orquestra Boémia”. No largo, enfeitado com uma teia de aranha feita em corda de festão e candeeiros de arame com papel de seda, todos dançavam com alegria. Havia muita luz e um cheirinho a sardinhas e pimentos assados no ar.
Os rapazes de brilhantina no cabelo e olhos atentos nas raparigas que enchiam o recinto. Elas de lindos sorrisos e vestidos aos folhos, outras mais atrevidas de saias muito justas e blusas a tangerem os peitos ardentes de desejos. A Antonieta até uma flor no cabelo trazia, (como era linda a Antonieta!...) Foi o Eduardo que a convidou para dançar e não mais a largou toda a noite, (Como devia ser bom, andar nos braços da Antonieta!...). Já de madrugada, andava a mãe dela, a Rosinha (tecedeira da fabrica de Salgueiros), à procura da filha. Ninguém reparou que ela estava tão perto, aos beijos com o Eduardo num canto escuro da “Ilha do Almeida”. Abraçada a ele com o peito a palpitar, os lábios húmidos de beijos, o seio na mão dele, nos olhos a loucura de duas luas brilhantes. Era noite de S. João, e quantas como a Antonieta, ainda haveriam até o sol nascer?...
As fogueiras pela rua abaixo crepitavam e faziam curiosos bailados de sombras nas paredes. Casais de namorados saltavam-nas com cuidado para não se queimarem nem entornar a cafeteira do café, ou a grelha das sardinhas.
Rusgas passavam com alegria, rancho de gentes dançando e festejando o S. João, vinham do Monte Pedral, do Campo Lindo, das Barrocas, da Fontinha de outros bairros. Os homens traziam ramalhos e balões, tocavam bombo, concertina, viola e ferrinhos e as mulheres batiam com testos de panelas cantando:
Orvalhadas, orvalhadas, orvalhadas
E viva o rancho das mulheres casadas
E repenica, repenica, repenica
O S. João a mijar em bica
Os moradores da rua ofereciam vinho, sardinhas e broa a quem passava. A um grito de alerta e tudo olhava o céu. «Olha o balão!» E lá ia ele, como um sol na noite escura, levando mensagens de paz e alegria, queimando as mágoas da gente numa emoção contida. Era a festa dos afectos! Era a festa de S. João da minha rua!
A noite tinha sido uma alegria, até o cansaço chegar. Nós, os mais espigadotes, tínhamos dado uma fugida até ao S. João do Paraíso, eu e o meu irmão, o Chico e o Cocas. Estalamos “Pirilampos”, deitamos “Bichas-de-rabear” mas tínhamos que fugir depois... A suar da correria, apesar das orvalhadas que caíam, íamos beber água à fonte de Salgueiros. O Chico nessa noite, perdeu o relógio “Cauny” que o pai lhe deu quando fez a quarta classe, chorava e adivinhava uma trepa das boas, tinha sido comprado a prestações à Ermelindinha. Resolvemos no dia seguinte, irmos todos falar ao Sr. Juvininho para que desculpasse o Chico.
Quando o Zeca da Amélinha gritou era manhã: «Olha o Noticias! Traz o concurso das quadras! Olha o Noticias!».
Como era lindo o S. João da minha na rua... Estávamos em 1959 e eu só tinha 11 anos, e não acreditava se me dissessem, que um dia trocariam o alho-porro por um martelinho de plástico, que as Fontainhas iam quase acabar, juntamente com as festas dos bairros e das ruas... As rusgas? Só em concursos na baixa se voltariam a ver.
Depois foram acabando as ilhas, Foi quando os bairros do Regado e do Agra, do Pio XII e da Pasteleira, do Duque Saldanha e de Contumil, de S. Roque e do Cerco, foram fazendo o S. João que as suas gentes levaram para lá. Até que mesmo aí, foi lentamente acabando, hoje poucos bairros ainda fazem o S. João. Os carolas vão morrendo e a malta nova não está para ter trabalho, prefere beber umas cervejas e andar em fila indiana a correr pela baixa de martelinho em punho, ou assistir a concertos do Abrunhosa ou dos Clãs, que pode cantar muito bem e até serem do Porto, mas não cantam ao S. João como o “Mafra” cantava.
Nos dias de hoje o S. João tornou-se mais cosmopolita e em alguns casos mais selectivo. Sofisticou-se um pouco, mas continua a ser uma festa onde toda a gente convive, numa noite inteira de fraternidade e de festa. Uma coisa nunca muda, porque este povo é teimoso e está agarrado ás suas tradições. Nessa noite, (considerada por muita gente a mais democrática do mundo), da Praça da Liberdade à Ribeira, da Sé ás Fontainhas, um mar de povo enche a cidade numa madrugada ímpar no mundo, com a festa mais popular e solidária, numa manifestação de alegria sem limites, esquecendo as politiquices e os problemas que a vida tem por uma noite de festa e como diz o povo na sua sabedoria: “Tristezas não pagam dividas”.
Mas a 25 de Junho... Já não volta a ser a cidade que acordava com as vendedeiras do Bolhão e as peixeiras na Ribeira, com os operários que corriam para as oficinas, ao som dos canudos das fábricas, saltando do eléctrico ou ainda montados nas bicicletas com a marmita no quadro, fazendo esta cidade fervilhar de vida, não como hoje se tornou triste e deserta. Apesar de ser património da humanidade, a cidade do Porto que já foi capital do trabalho, da democracia e da liberdade será sempre a minha Cidade do Porto, mais tarde escrevi esta letra para um fado que a Maria Augusta cantou:
MEU AMOR MINHA CIDADE
Meu amor minha cidade
Ó minha jóia em granito / Que guardas em ti o grito
Do teu povo à liberdade
Cada rua tem historia
Foi do “Ouro” triunfante / Que partiu o nosso Infante
A caminho da glória
E adoras o S. João
E ao lutares lado a lado / Com o nosso Rei Soldado
Ele deu-te o coração
Tripeiro mas com vaidade
És nobre e sempre leal / Deste o nome a Portugal
Nossa senhora te guarde
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