domingo, 4 de outubro de 2020

ENQUANTO ME LEMBRO... "MEMÓRIAS" 3


O MEU BAIRRO
 

 





A Lapa pertence à Freguesia de Cedofeita, uma das freguesias mais burguesas do burgo tripeiro, mas sempre teve nos seus limites, bairros de operários de gente modesta e muito bairrista, como a Lapa com suas ruas, escadinhas e vielas. Eu nasci na rua da Glória que tem a sua história ligada ao Cerco do Porto, foi assim:

«Tanto Miguelistas como os Constitucionais, partidários de D. Pedro IV, construíram em redor da cidade as suas linhas de defesa. Dentro dos limites da freguesia de Paranhos, a linha fortificada dos Liberais passava pelo Carvalhido (daí o nome da praça do Exercito Libertador), fortes de S. Paulo, da Glória e de S. Brás, quartéis do Monte Pedral, baterias de D. Pedro e Aguardente (Marquês do Pombal) e das Medalhas. Redutos do Covêlo e das Antas. A bateria da Glória, defendia os vales de Paranhos e Regadas, tendo em frente dela, a bateria das medalhas, dominando o vale de S. Mamede. Esta bateria das Medalhas situava-se entre o Monte Pedral e a rua de Monsanto, tomou este nome pelas muitas condecorações que ganharam os seus defensores, na acção de 9 de Setembro de 1832. Só muito mais tarde nasceu esta rua, no local onde estava a bateria e que ainda existem vestígios no Monte da Lapa.

Do meu bairro, fazem parte ainda, a rua e travessa da Sra. da Lapa, a rua e calçada do Monte da Lapa, a rua e travessa, escadas e largo da Lapa, lugares de onde guardo muita saudade.

Ao passear a lembrança pelas minhas raízes posso ver ainda todas as “ilhas”, eram pátios cercados de modestas casinhas, algumas airosos com vasos de avenca, begónias e sardinheiras ás portas. Pelas paredes brancas e ocres, viam-se andorinhas de barro e azulejos com santos  de devoção. Outros pátios eram húmidos e recônditas onde nem o Sol chegava. As ilhas mais conhecidas da minha rua tinham sempre o nome da pessoa mais carismática que lá morava, era a ilha do Cego, do Almeida, do Cocas, da Zirinha, da Amélinha, do Capelas, do Oliveira, do Leites e tantas, tantas por onde brinquei na minha meninice e fugi descalço á policia, nesse tempo em que a multa por andar descalço, eram de oitenta escudos com uma coroa.

Recordo no começo da rua Antero de Quental, na esquina do Monte da Lapa, a Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que o Senhor Correia alfaiate e a família zelavam, foi mesmo com uma das suas filhas que lá aprendi a catequese e era a sua esposa que levava de casa em casa, o altar da Sagrada Família como era uso naquele tempo. Na rampa, vivia o Mário Rui que tinha criada para o levar á escola, mas que repartia comigo o lanche que trazia num guardanapo bordado (assim como, ficava na fila para receber o pão só para me dar depois).

Ainda mais acima, na calçada do Monte da Lapa, vivia numa casinha modesta o Carmo que ficou sem o pai no desastre de Custóias. Bem lá no alto está o Mirante (como lhe chamamos), local onde a bateria da Glória, no tempo do cerco do Porto, num fogo cruzado com a bateria do Monte Pedral, impediram uma esmagadora derrota das tropas constitucionais a 9 de Setembro de 1832. O mesmo voltou a acontecer no dia 16, havendo a lamentar o incêndio que destruiu a bela casa e a capela da Quinta do Covêlo.

Defronte à capela, na Rua Antero de Quental ficam as escadas da Travessa da Lapa que terminam na travessa de S. Brás, defronte duma oficina de picheleiro (avô do meu amigo Franclim Simões) onde trabalhava o Mário canalizador. A rua de S. Brás que tinha a maioria das casa mais baixas que a rua (como acontecia numa boa parte da rua de Camões), vem dar á rua do Paraíso junto ao largo da Lapa. Depois da escadaria da Igreja, naquele passeio largo defronte ao cemitério, era onde fazíamos corridas com carros de rolamentos e deitávamos estrelas ao vento. Nas traseiras do quartel, ainda existe um enorme portão, onde naquele tempo, os mais pobres munidos de panelas, faziam fila esperando os restos do “rancho”.

Do lado direito do quartel, fica a rua da Regeneração onde estava a "Garagem da Lapa" e a casa de pasto "Piramidais" á esquina da travessa da Regeneração. Esta ruela que se estreita até se transformar por um lado, numa viela que acaba na rua de Camões junto ao fontanário e por outro no final da ilha que tinha o seu começo na rua do Paraíso e que já não existe. Ali morava muitos amigos de infância com o Sérgio Marques. Toda essa gente que ali vivia foi para os bairros do Carriçal e do Agra do Amial. Naquele tempo, a rua do Paraíso era uma rua cheia de árvores, onde havia uma padaria com a frontaria lindíssima em azulejos, havia o “Prego” (casa de penhores), que pertencia ao Sr. Reis (pai do grande actor de teatro António Reis) e onde tantas vezes fui com a minha avó empenhar o fato de meu pai á segunda, para levantar ao sábado. Junto à entrada da maior ilha da rua, estava o tasco “A Flor do Paraíso”. Havia também o azeiteiro que tinha uma bomba de manivela (como as de combustíveis para motorizadas), sobre o balcão, para medir e vender o azeite, onde eu ia a mando da minha vá, buscar um quarteirão de cada vez.... 

A rua da Lapa também com muitas árvores, tinha argolas de ferro na parede do quartel que já foi de cavalaria e onde antigamente prendiam os cavalos. Esta rua termina no largo da Lapa e começa na praça da Republica á esquina da rua da Boavista, onde está o antigo café que se chama “Novo”. Esta rua, era a mais central do bairro com muito comércio, desde o relojoeiro que tinha um relógio de dupla face na frontaria, até ao café e confeitaria Cristal (que foi a primeira a ter televisão e a miudagem pagava dez tostões por um copo de leite, para ver os desenhos animados ao domingo), passando pela afamada Rosa das Iscas, a tabacaria do Campo (Campo porque a praça da Republica aberta em 1760, se chamou em tempos, Praça de Santo Ovídio e depois Campo da Regeneração), a drogaria o Pretinho da Lapa e a tabacaria do Melo na esquina do jardim frente ao quartel e a papelaria do Campo onde comprava-mos (quando podíamos), as construções de armar em cartolina, o Mosquito, o Mundo de Aventuras, o Ciclone ou o Mickey.

Ao lado do hospital, era a rua de Salgueiros (hoje rua de Cervantes), onde além da ilha de Salgueiros, bairro operário onde vivia muita gente, que hoje vive no Bairro Siza Vieira e em Francos, existe aí a Fonte de Salgueiros a que chamávamos o tanque. Aí tomávamos banho nas tardes de calor, depois de jogar á bola de trapos. O nosso “campo da bola”, para mal do Camilo da mercearia, era no largo ao fundo da rua da Glória, onde tinha o chafariz encostado ao muro do hospital e acabava o muro com uma rede alta que dava para o local escarpado a que chamávamos “Quintinhas”. Desse local avistávamos as Águas Férreas, a Figueirôa, a Carvalhosa, a linha do comboio da Póvoa (que hoje é o Metro), a “Tutoria” (hoje tribunal de menores), com o seu campo de futebol que por ser mais estreito dum lado, lhe chamávamos o campo do bacalhau. Era uma vista soberba que em dias de  Outono, com as árvores do jardim da Boavista despidas, via-se o Jardim da Rotunda, porque a monumental estátua à Guerra Peninsular, de autoria do arquitecto Marques da Silva e do escultor Alves de Sousa, via-se sempre.

Parte da rua Sr.ª. da Lapa é ao longo do muro do hospital e só tinha casas dum lado. A um lote dessas casas todas iguais, chamávamos “Casa das Varandas”, onde por baixo havia a loja das miudezas (retrosaria) da dona Aurora. Havia também as mercearias do Marques, do Adérito e lá na esquina da Lapa a mercearia fina do Pina, onde a Zirinha no passeio punha banca de hortaliças aos fins-de-semana e no verão, haviam mulheres a vender mexilhões, lapas e tremoços. Ás vezes havia um sorveteiro, com sorvetes de sabor a baunilha, numas latas cromadas onde tinha um visor concavo com um dado dentro, o lado de uma ranhura onde se metia a moeda, premia-se um botão e o dado saltava dizendo com as pintas o tamanho do sorvete (quando saia o 6 era o maior). Por vezes também lá estava o Alberto bananeiro com a padiola das bananas e muito mais tarde abriu uma frutaria na rua do Bolhão. 

Eram ruas com gente boa, prestável e muito amiga. Não é como os tempos de hoje que ninguém se conhece no prédio onde mora. Os vizinhos tinham uma importância muito grande, eram como família quem nos socorriam nas horas más e festejavam com nós os momentos de felicidade. Haviam pessoas boas, mas existiam aquelas que nunca esquecemos como: A Dona Leonor que era enfermeira e dava injecções de graça; A irmã da Julinha peixeira que talhava o medo com orações e as bichas (que deformavam o rosto) com leite, ainda cosia os pés "estorcegados" com um pote de barro e com uma faca rezava ás estrelas para talhar os terçogos.

Depois, lá na rua havia de tudo: O Mário estofador que era filho do Arnaldo sapateiro; O Mesquita que trabalhava na refinaria da SONAP e era pai dos gémeos; O pai do Ervilha e do Berto que era alfaiate; Outro alfaiate era o Henrique onde a Emília era calceira; O Amaral pai da Branca, que era adeleiro em Mártires da Liberdade; O Alfredo Borges campeão de natação do Sporting Clube da Lapa que era litógrafo e foi o padrinho do meu irmão, dirigente no FC Porto e mais tarde abrir a litografia "Inova" na rua Gonçalo Cristovão; O Jaime bombeiro nos Sapadores que tinham o quartel em Gonçalo Cristóvão antes de irem para a Constituição e lá foi construído o Silo Auto: O Senhor António guarda-freio na Carris e pai da Aida; O Neca, que fazia parte do Trio Boreal e tinha uma irmã muito linda, que trabalhava ao balcão na Loja das Coisas em Fernandes Tomás. Ele cantava canções sul-americanas e formou o trio Boreal com a Luísa Salgado que era da Fontinha e o Castelo Branco da Vitória. O Zeferino Pinto que fundou o trio, “Os 3 de Portugal” e moravam em Salgueiros: O Xavier do Comércio do Porto: O Laguela canalizador: A Loscas costureira que era mãe do Zequinha e tinha “Torry” no nome, descendente afastada de um braço genealógico dos “Torry’s” ingleses: O Pirata electricista que moravam enfrente à ilha do Cego; A Sãozinha do tasco que era mãe do Filipe: O Júlio e o Alexandre da mercearia: O Amaral carvoeiro pai da Mariazinha e do Neca; O Zé da barbearia; O Argentino pai da Alexandra, que escrevia cartas a quem era analfabeto e preenchia papéis da Junta quando era preciso pedir um atestado de pobre.

Havia a oficina do Manel dos chapéus defronte à ilha do Miranda, onde morava o Filinto que trabalhava no cinema Júlio Dinis. Também havia a oficina do meu pai, que fazia casinhas, pontes, coretos, castelos e igrejas para as cascatas de S. João, caixas de joias e de costura, até caixinhas para amêndoas pela Páscoa. No Natal fazia presépios com telhados de colmo e manjedouras com espigas (esta palha era tirada das coberturas de garrafas de vinho do Porto que haviam na altura), tudo isto numa casinha que alugou no bairro “Angelina” que depois vendia para o Bazar dos Três Vinténs em Cedofeita, para a Casa Ametista nos Poveiros e os presépios, nas casas de artigos religiosos em Mouzinho da Silveira e na rua das Flores.

 


 

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