sábado, 3 de outubro de 2020

ENQUANTO ME LEMBRO... "MEMÓRIAS" 7


O MEU NATAL

 





Hoje o Natal modernizou-se, perdeu-se um pouco da magia desse dia. Embora durante muitos anos, tivesse a felicidade de ter a mesa cheia com filhos e netos, tirando a tristeza da minha filha Leninha que partiu muito cedo, penso muitas vezes no meu Natal de criança, onde não tive a presença de minha mãe, peça fundamental no “meu presépio”, o que me levou mais tarde a escrever: 

Ó minha mãe, minha santa / Se pudesses cá voltar

Tinha tanta coisa, tanta / Minha mãe p’ra te contar

Dos filhos tenho meiguices / P’ra compensar teus afectos

Ó minha mãe se tu visses!... / Que lindos são os teus netos

Saudoso de teu amor / Rezo à virgem por ti

Minha vida era melhor /  Se tu estivesses aqui 

Meu pai, minha avó e meu irmão, eram a minha família numa casa pequenina da rua da Glória. Meu Natal era simples, mas tinha um sabor doce e alegre, mesmo limitado por carências de toda a espécie. Mas isso, só mais tarde pude entender.

Logo no dia da mãe, no feriado de oito de Dezembro, meu pai fazia a árvore de Natal. O pinheiro era plantado em areia num vaso forrado a papel colorido. Eu e meu irmão ajudávamos, pendurando os enfeites que ficavam de uns anos para outros, pingentes, sinos e bolas de vidro coloridas, estrelinhas douradas e pequenos chocolates embrulhados em prata de cor com lacinhos de fitas douradas. Havia ainda anjos recortados em cartão e presos com linha, por fim, era colocado o terminal no carrapito do pinheiro. Passava-se depois à colocação de pequenas velas de cera, metidas em molas de chapa e presas ao pinheiro em locais precisos. Guardavam-se duas para a entrada do presépio. A árvore estava quase pronta, faltavam os fios prateados, os meridianos em volta do nosso mundo. Por fim, a neve que vinha comprimida num pacotinho de celofane, era aberta com cuidado e espalhada por todo o pinheiro como algodão finíssimo. Como era bonita a auréola de luz, que a chama das velas deixava por entre a neve artificial. Depois havia o presépio que meu pai construía com galhos, palha para o telhado, musgo e areia para o chão. Eram então colocadas cuidadosamente nos lugares, as figuras de barro que se comprava na rua d’Assunção. O burro, a vaca e os três reis magos, S. José e Maria, o pastor e o anjo da anunciação. O menino Jesus como só nascia na noite de 24 para 25, era guardado para essa hora. As velas eram acesas só nessa noite e ficavam a arder durante a toda a consoada.

O resto dos dias de Dezembro, eram passados numa ansiedade constante á espera da grande noite. Ficou-me até hoje essa sensação boa que me traz o Natal, não pela sua vertente religiosa (que me perdoem os crentes), mas pelo sentido humano da união familiar, o carinho, os afagos do meu pai, pela harmonia e paz vividos nessa noite especial de verdadeira magia. Pelo fim da tarde do dia da consoada. O cheirinho a canela espalhava-se pela casa. Minha avó fritava as rabanadas, fazia o creme e aletria onde desenhava traços com canela em pó. Eu e meu irmão de volta dela, esperávamos a hora de rapar o tacho e chupar as cascas do limão e paus de canela.

Nas noites próximas ao Natal, ia-mos para a rua com outros amigos, com o nariz vermelho e as mãos geladas, cantar as boas-festas pelos vizinhos, numa cantilena que era assim: 

Vimos dar as boas-festas / Boas-festas vimos dar

Com respeito ao ano novo / Temos muito que contar

Pastores, pastores / Vamos todos a Belém

Adorar o Deus menino / Que nossa Senhora tem 


Se nos davam umas moedas, agradecíamos:

 

A senhora desta casa / É bonita de raiz

Por nos dar a consoada / Tenha um Natal feliz

 

Se nem a porta abriam, então cantava-mos:

 

A senhora desta casa / É feia mas não importa

Não nos deu a consoada / Cagamos-lhe aqui á porta

      

Claro que não passávamos das palavras, mas ficávamos tristes por não ter uma guloseima (como agora com a americanice do Halloween) ou uma moeda para juntar ao “bolo” e depois dividir por todos. A noite era fria, bafejava-mos as mãos de volta a casa, onde havia o “borralho”, um balde de zinco com cinzas, que minha avó trazia da padaria “Porto” onde ela era padeira, no Largo Moinho de Vento.

Na noite da consoada, lá estava na mesa a toalha branca bordada por minha mãe (usada só em dias especiais), com pratos de nozes, avelãs e pinhões, pratinhos de creme, aletria e ainda a travessa das rabanadas. Havia o vinho do Porto, que o Júlio da mercearia oferecia aos clientes e o Bolo-rei, que o senhor Teixeira da “Cunha”, todos os anos dava ao meu pai. Lembro-me bem, quando eu ia à confeitaria em Santa Catarina, entregava-lhe o cartão do meu pai, ele lia e dizia para o empregado: «Embrulha um de quilo para este mariola!».

Para a ceia, vinha sempre a Ermelindinha, uma senhora que vivia sozinha e minha avó sempre convidava. Quando chegava a hora de fazer o molho no prato, com azeite, umas gotas de vinagre, pimenta e muitos alhos, começava a sentir água na boca. Minha avó chegava com a atravessa de batatas, bacalhau, pencas e grelos a fumegar, servia-nos e dizia: «Comam com Deus e bom Natal a todos». E meu pai dizia: «Nesta noite posso estar teso, mas faço tudo p’ra que não falte nada em casa» E acendendo as velas na árvore, beijava cada um de nós dizendo: «Bom Natal a todos». O resto do serão era passado a jogar o Rapa com pinhões. Tratava-se de uma pequena piasca de madeira de quatro faces, cada face tinha uma letra: R de Rapa, T de Tira, D de Deixa, P de põe. A cada jogador era distribuído uma quantidade igual de pinhões, cada um rodava a piasca na sua vez, executando a ordem que lhe cabia em sorte. Partiam-se nozes que se iam comendo, junto com peras e figos secos que a dona Ermelinda trazia sempre.

Nós, os mais pequenos já sonolentos, ansiávamos pela manhã para ver os brinquedos na chaminé. Chegada a meia-noite, era hora de colocarmos na manjedoura do presépio o menino Jesus, e só depois íamos dormir.

Pela manhã, corríamos ao fogão onde tínhamos deixado as botas de carneira (aquelas em que passávamos sebo por causa da chuva), esperando a prenda do Pai Natal. Lembro-me duma caixa de lápis de cor e um livro com figuras para colorir, duas espadas de chapa com bainha, com que eu e meu irmão tanto esgrimamos, depois de nosso pai nos contar as aventuras dos três Mosqueteiros. Nessa altura, já começava a compreender as dificuldades que meu pai tinha (e não o Pai Natal), para comprar brinquedos.

Como já disse atrás, naquela época nós inventávamos os nossos brinquedos, com as coisas mais simples que tínhamos á mão imitava-mos os grandes heróis. Bastava um jornal para fazer o capacete e uma vareta de guarda-chuva com um fio forte, para fazer um arco e flecha para imitar o Robin dos Bosques. Com umas tábuas tiradas dum caixote de sabão e alguma habilidade, construía-se um bom carro. Depois haviam os extras: Napa para o acento e costas, um bocado de pneu para o travão, tecido para forrar a corda da direcção para não aleijar, mas o principal eram os rolamentos que comprávamos no farrapeiro na Trindade.

Para conseguir dinheiro para tal compra, passávamos tardes inteiras de sábado aos chumbinhos que caíam na rua de Salgueiros, quando havia tiro aos pombos no Clube de Caçadores no Monte Cativo. De colher em punho, tirávamos a terra em volta dos paralelos, passávamos depois de mão para mão sempre a soprar, até a terra sair e ficarem só os chumbos por serem mais pesados. Quando a latinha estava cheia, levávamos ao farrapeiro que pesava o chumbo até ter o necessário para os rolamentos. Grandes corridas se faziam pelos passeios, imitando o Sterling Moss, ou o Filipe Nogueira nas corridas de 1958 no Castelo do Queijo.

Na manhã do dia de Natal, a criançada lá da rua juntava-se, para mostrar uns aos outros os brinquedos que ganharam do Pai Natal. Éramos todos amigos, unia-nos a alegria e os sonhos numa meninice, onde a alegria de ser menino se media pela solidariedade de todos terem com que brincar, mesmo que fosse pouco.      

 


 

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