sábado, 3 de outubro de 2020

ENQUANTO ME LEMBRO... "MEMÓRIAS" 6


VIVER A CIDADE
 

 





A revolta e a saudade aumenta, quando vejo a cidade da minha infância ficar descaracterizada, dia para dia mais impessoal e principalmente a ficar desertificada. Quanto me dói a falta do verde, na avenida dos Aliados ou nos Leões, trocada pela cinza do empedrado. Ou todas as casas entaipadas que vejo pelas ruas quase desertas. Ou ainda, a tristeza das pessoa que têm que viver emigradas na sua própria cidade.

Esta êxodo da população, levada a cabo desde os anos 60 pela política de erradicação das “ilhas”, deu forma às ilhas ao alto que são os bairros sociais, mas não se interessaram das raízes culturais nem dos aspectos sociais dessas pessoas.

Esvaziaram o centro da cidade de gente, mas não requalificaram, nem reconstruíram nesse lugares, casas para manter as pessoas ligadas às suas raízes. Para ter qualidade de vida as pessoas devem ser felizes e as ilhas, embora fossem lugares insalubres, as ilhas sempre foram a ligação dos tripeiros ao seu bairro e á sua cidade.

As pessoas que habitam os bairros sociais, tinham aprendido pela sua experiência, que podiam tirar desse ambiente adverso em que viviam a sua felicidade. Levaram consigo os seus ideais de solidariedade e de bairrismo com a necessidade de se associarem para compensar as suas carências. Tentaram criar grupos desportivos, centros de convívio e outros, que pudessem agregar pessoas à sua volta para colmatar a falta dos amigos e dos vizinhos que deixaram ao serem separados do seu habitat. Alguns conseguiram, mas a maioria desagregou-se e já não conheciam ninguém como os vizinhos e amigos de tantos anos. Acabaram os grupo excursionista, o clube de futebol, os amigos do tasco e a caixa de vinte amigos.

Arrumaram a cidade para debaixo do tapete, como fizeram com grande parte do bairro da Sé para dar lugar á avenida da Ponte que ainda hoje continua com a escarpa como ruína. Muitas vezes o Porto foi governado, por quem não teve a sensibilidade de entender o bairrismo, essa palavras que muitos hoje acham “pirosa” e sem sentido, porque não conhecem o orgulho que sentem as pessoas da Lapa, de Aldoar, das Eirinhas, da Fontinha, da Sé, de Miragaia, da Vitória ou de Paranhos em serem desses lugares.

Os bairros eram uma espécie de fortaleza, era o nosso castelo, os miúdos da Lapa não brincavam com os do Monte Pedral. O rapaz que ia namorar uma rapariga da Areosa, tinha que pagar uns copos no tasco á malta de lá e mostrar que vinha em paz para ser bem recebido. Havia o nosso espaço, o nosso clube, a nossa gente. Mesmo no futebol, quando o Cruz ia jogar ao Progresso, ou o Ramaldense ia jogar ao Foz, alguns desentendimentos surgiam durante o desafio, no final do jogo tudo era superado com um “negus” (copo de tinto) e uma sardinha frita num bocado de broa.

A cidade, eram todos os bairros juntos, eram a comunidade orgulhosa de ser portuense, de ser bairrista. De trocar os bês e ser tripeira. A diferença hoje? É simples! Dizer: «O meu bloco», não tem nada a ver com aquele sentimento de brio e orgulho quando se diz: «A minha rua!».

Nesta era da globalização, o conceito de bairrismo, de vizinhança, e de solidariedade perdeu-se. Hoje há quem saia da garagem para fazer compras no supermercado do shopping, volte á garagem, suba no elevador e entre em casa, sem conhecer o vizinho do lado, nem saber na mercearia do bairro que o homem da senhora Aninhas está doente e que o merceeiro assentou no livro os doze tostões da posta de bacalhau demolhado que levou. Hoje há quem vá almoçar ao domingo á Póvoa, sem precisar de ir numa excursão. Hoje são os bancos que procuram clientes com ofertas tentadoras de crédito, já ninguém precisa de levantar dinheiro numa caixa de amigos, ou empenhar a coberta da cama para se valer numa aflição.

Cresceu o egocentrismo e a petulância dos políticos e o novo-riquismo de alguns, veio tapar a pobreza encoberta, a degradação dos princípios, o flagelo da droga, o aumento do desemprego e a ruína das famílias, para dar lugar a esta farsa de uma vida melhor, onde quatro quintos da população vive por decreto, com subsídios de inserção social, fundo de desemprego e pensões de miséria.

Acabaram com as escolas industriais, viveiros de instrução de onde saíram os serralheiros, os electricistas, os mecânicos e outras profissões, que começavam como aprendizes até serem mestres nas mais variadas profissões que agora ninguém tem, para darem lugar aos “doutores” em excesso, que depois de adquirirem o canudo, ingressam no exercito dos desempregados onde um quinto da população tem que sustentar, à custa dum sistema de previdência quase em ruína.

“A juventude não é boa nem má, é produto da época em que vive”, esta é uma frase do escritor Manfred Gregor. A juventude de hoje não é como a dos anos 50 e 60, mas é a que vive a vida que lhe dão, com outros obstáculos, com outras carências, que mesmo com toda a tecnologia actual, em certos aspectos, não sei se será mais feliz do que fomos.

A minha geração inventava os seus brinquedos de criança, desde a bola de trapos ao carro de rolamentos. A de hoje tem toda a panóplia de tecnologia, desde jogos de computadores, leitores de mp3, filmes de vídeo, telemóveis de 4ª geração, etc., mas não sabem como é bom viver ao ar livre, andar descalço, correr com o vento na cara.

A lembrança da opressão e das carências do passado, persegue os pais e avós de hoje, quando a liberdade e a democracia surgiram de braço dado com insegurança a falta de respeito e a quebra de princípios fundamentais da família. As crianças de hoje tornaram-se super protegidas, autênticos bibelots, já não se sentam no colo das mães nos transportes públicos e ocupam lugar deixando as mães em pé. Não vão de saca a tiracolo para a escola com os livros e a ardósia, hoje são os pais que carregam a mochila.

Os meninos agora não fazem arranhões que se curavam com uma folha de couve e azeite, não trazem os joelhos sujos de terra, nem põem papas de linhaça ou papel mata-borrão nas pisaduras, nem sequer comem sopas de vinho com ovos e açúcar para a anemia ou óleo de fígado de bacalhau para o raquitismo. Agora quando fazem dói-dói, têm pomadas, anti inflamatórias, antibióticos, vitaminas e outros fármacos. Os bebés não andam ao colo das mães, hoje há carrinhos, alcofas, sacos de lona com presilhas e cadeirinhas diversas.

As mamãs preferem dar leite em pó e outros produtos substitutos aos bebés, umas porque não têm tempo de dar de mamar aos filhos, outras porque têm medo de deformar a estética dos seios. Mas as crianças são mais felizes?

Ainda bem que juventude de hoje não enfrenta o medo cruel da guerra aos vinte anos, nem o desconforto de viver no obscurantismo dum pais decrépito e analfabeto. Mas, sabem enfrentar o dia de amanhã? Ou tornaram-se nuns meninos mimados e arrogantes, a quem tudo aparece feito sem qualquer esforço e ás vezes com tanto exagero, que os faz procurar para a vida respostas em atitudes cobardes como a droga?

Na minha geração três pessoas a conversar no passeio, era considerado um ajuntamento e logo o polícia dizia: “Toca a circular, toca a circular”. Claro que também era proibido beijar na via pública, mas o amor é melhor hoje? Ama-se mais que antigamente?

Sei muito bem que as preocupações hoje são diferentes, não acredito no estigma da geração rasca. A geração de hoje tem o que lhe dão, a falta de esperança, o desemprego, a insegurança, ainda a angústia de viver com o crédito da habitação a altos juros, a inflação no topo e o medo de constituir família, ter filhos e viver.

A corrida ao consumismo chega ao cúmulo de se importarem ideias para gastar o que não se tem. Agora dá-se muito valor aos americanizados dias de S. Valentim e das Bruxas (Halloween), por exemplo. As grandes superfícies comerciais, possuem corredores com alas inteiras de produtos impensáveis há 50 anos. Vejam o caso dos cães e gatos, com este súbito amor aos animais (ou moda?), vendem-se almofadas, alcofas, ossos de borracha, champô, escovas, alimentos diversos, lacinhos e outros artefactos. Abrem-se lojas para animais (pet-shop’s), clínicas veterinárias e hospitais para cães.

Inverteram-se os valores do racionalismo, os cães hoje até têm hotéis especializados e são agora mais importantes que os seres humanos, quando existem pessoas que dormem pelos passeios e remexem os contentores do lixo em busca de alimentos, em vez dos cães vadios ou os vira-latas do meu tempo. Tantos cãezinhos ao colo das madames e tantas crianças para serem adoptadas...

Mesmo a festa mais consagrada á família como o Natal, está a tornar-se uma corrida louca ao consumismo, quantas vezes com desperdícios enormes... Compreendo a euforia dos primeiros anos da revolução de Abril, em que os portugueses finalmente tiveram acesso a tudo que nunca tinha tido, desde as revistas pornográficas aos filmes proibidos como o “Último tango em Paris”. Já não era preciso ir comprar ás escondidas em Cedofeita, no Sérgio alfarrabista, o “Copacabana Posto C” da Cassandra Rios, nem ter 20 anos de idade para ver “Helga, o segredo da maternidade”. Também minha alegria foi enorme, quando pude comprar no Natal de 77, com o primeiro 13º mês que recebi na vida, uma caixa de “Legos” para dar ao meu filho. Recordo que fui eu quem brincou toda a noite, com aquelas peças de encaixar que me fascinavam há tantos anos.

        


 

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