sábado, 3 de outubro de 2020

ENQUANTO ME LEMBRO... "MEMÓRIAS" 5


OUTROS DIAS DE FESTA

 




Outros dias festivos eram nas férias da escola, os passados na Colónia (porque tive o privilegio de num ano, o sindicato a que pertencia o meu pai ter essa regalia). A Colónia era junto aos Socorros a Náufragos no Castelo da Foz, lá andávamos de babeiros ás riscas e panamá, brincando no areal da praia dos Ingleses com baldes, pás e ancinhos de chapa. Os jogos de praia eram nesse tempo, as construções na areia, o “Prego”, o “Anel” e o “Tesouro dos Piratas”.

Festa? Eram os dias de aniversário, principalmente os meus inesquecíveis seis anos, quando o meu pai me levou pela primeira vez ao cinema, ver o “Marcelino Pão e Vinho” no Coliseu com Pablito Calvo. Depois fomos ao café Palladium (onde quase trilhava os dedos na porta giratória que nunca tinha visto), para comer uma torrada e um copo de leite. Mas o melhor desse dia foi ao jantar, a minha avó deu-me bife com batatas fritas e um ovo estrelado. Foi um dia memorável.

No fundo, todos os dias eram de festa nas brincadeiras de rua com os meninos como eu: Jogando a bola de trapos, a casquinha, o hóquei com troços de couve, o peão, a sameira., á corda queimada, ás escondidas, aos Cow-boys, à Cabra cega e aos policias e ladrões.

Quem do meu tempo, não se lembra daquela célebre lengalenga:

Aniki bó-bó /  Aniki baú-bau / Passarinho totó

Cheribau, Cavaquinho / Salomão, São cristão

Policia, Ladrão 

Também brincávamos com as meninas ás “Casinhas”, ás rodinhas cantando o Manel Tim-Tim que era assim: 

Ó Manel tim-tim /  Ó Manel tim-tão

Dá-me a canastrinha / Dá co’cu no chããão

 

Ou a Machadinha que era assim:

        

Ah ah ah minha machadinha

Quem te pôs a mão sabendo que és minha

Sabendo que és minha, também eu sou tua

Salta machadinha p’ró meio da rua

 

Com as “catraias”, também fazíamos jogos como: Farinha olé, Prendinhas do Sr. Abade, Minha mãe dá-me licença? Reis e as Rainhas ou ao Bom Barqueiro. Esta brincadeira consistia em dois de nós de braços levantados e dando as mãos, formar um arco por onde os outros passavam em fila atrelados ás ancas a cantar:        

Bom barqueiro, bom barqueiro / Deixa-me passar

Tenho filhos pequeninos / Não os posso criar 


A que os dois barqueiros respondiam:

 

Passarás, passarás /Mas algum ficará

Se não for o da frente / Há-de ser o de trás 

E fechando o arco, aprisionavam o último da fila que se posicionava atrás de um dos barqueiros. Assim sucessivamente até que no final, cada barqueiro com a sua equipa puxavam com força, agarrados às ancas uns dos outros, até conseguirem separar o arco original.

Éramos felizes, quando corríamos pelas ruas de número nas costas preso com alfinetes e guiador de arame debruado a fio de cor. Quando juntávamos cromos de jogadores para colar na caderneta e jogávamos ao “virinha” com os repetidos. Para isso, batíamos com a mão em concha tentando virar os cromos e quando o cromo ficava em pé encostado a qualquer coisa, era “Esquinete”, mas quando alguém cuspia na mão para colar ao cromo, era batota. Passávamos horas a ditar uns aos outros os repetidos que trazíamos numas carteirinhas de cartão com fitas de nastro feitas por nós e que dobravam e abriam para os dois lados. Também com os repetidos metidos numa cova, jogávamos à “Coca”, atirando contra a parede uma moeda previamente côncava, tentando ficar o mais perto possível da cova. Também juntávamos os “Vitórias” com a esperança de obter um carimbado (o cabrito, a cobaia ou bacalhau), que vinham embrulhados em rebuçados a tostão e que podíamos ganhar uma bola de couro, quando conseguíamos encher a caderneta. Ás vezes as moedas que ganhávamos num recado feito ás vizinhas, eram desviadas para a confeitaria, para comprar cinco tostões de “Raleio” (que eram restos de pasteis e bolos que ficavam nos tabuleiros), ou então para a compra do Mosquito no quiosque do Melo.

Era uma festa dos afectos, quando meu pai nos aconchegava a roupa da cama, beijava-nos a testa afagando-nos o rosto e dizia: “Portem-se bem, não arreliem a vossa avó que está velhinha e cansada, ela tem-me ajudado muito a criar-vos, desde que a vossa mãe nos faltou.”

Também era uma festa, aquelas manhãs de domingo no verão, em que ia com meu pai e meu irmão no 17 até á praia do Molhe, brincávamos na areia enquanto ele lia o jornal no banco de pedra que ainda lá está no paredão. Voltávamos à hora de almoço cheios de apetite para o cozido.

Durante estes passeios de eléctrico, o nosso pai contava-nos acontecimentos sobre os lugares por onde passávamos, ensinando-nos muitas coisas. Lembro-me, ao passar no Pinheiro Manso, nos falar do ciclone de Fevereiro de 1947 (um sábado), que derrubou um enorme pinheiro manso que lá havia. Disse-nos ainda: Que a primeira linha de eléctrico do Porto, foi a da Restauração em 1895; Que em 1855 teve inicio na cidade a iluminação pública a gás; Que só em 1888 foi inaugurada a rede de distribuição de energia a particulares e que a rede de esgotos só foi instalada no Porto em 1907. Contava-nos feitos históricos, como a dos obeliscos que estão no jardim do Passeio Alegre, que vieram da Quinta da Prelada e por entre eles passaram os 7.500 soldados do exército liberal, os bravos do Mindelo. Eram lições de história, esses passeios com meu pai. Tenho a certeza que foi ele que incutiu em mim, este interesse, admiração e amor pela minha cidade.

Vi desaparecer ao longo do tempo, muitos locais da minha infância, onde joguei à bola, como a Quinta Amarela nas Antas. Onde vi o circo como o Campo do Luso. Onde vi ciclismo como o Estádio do Lima. Salas onde mais tarde vi cinema, como o Central Cine da Carcereira, o Odéon em Pinto Bessa, o Vitória na Circunvalação, o Cine Foz junto ao castelo e ainda, o Águia D’ouro, Olímpia, Vale Formoso, Trindade, Carlos Alberto, Terço, Júlio Dinis e muitos outros.

Cafés que foram pontos de encontro na baixa portuense, autênticas tertúlias de amigos em tempo de liberdade proibida, como o Palladium onde se jogava ténis de mesa, bilhar, damas e até tinha barbearia. O Astória, sala de visitas para quem chegava ao Porto pela estação de S. Bento. O monumental café Imperial que é hoje a MacDonal’s (mudança directamente relacionada, com a perda de influência do Porto enquanto centro de negócios, se até bancos, companhias de seguros e outras instituições foram deslocadas para Lisboa!) O Rialto frequentado por Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Daniel Filipe, Rebordão Navarro. Na mesma Praça de D. João I, havia o Odin que veio para S. Brás e era o café dos salgueiristas, muitos, muitos cafés que faziam parte do património cultural desta cidade.             

Cafés que também tinham engraxadores (ás vezes bufas) e tabacarias onde não se vendiam isqueiros a quem não tivesse licença. Era um Porto amordaçado, mas que a nossa imaginação não deixava morrer, como no café Cidade Nova em Costa Cabral, onde alguns amigos se juntavam depois de todos lerem o último livro da colecção “Vampiro” (sem as últimas 5 folhas), para adivinharem por dedução, o final do livro policial.  

Também existiu esplanada da “CUFP” que acabou (quando a fábrica da cerveja mudou para a Maia e é agora a UNICER), era ali junto à Praça da Galiza, onde se bebiam aquelas canecas gigantes de cerveja (as Girafas) e era muito frequentada pela malta que estudava como eu à noite, na escola industrial Infante D. Henrique.

Para os “Pregos em pão”, a malta tinha o café Pereira no Marquês. Para as Francesinhas, além da Regaleira (casa onde nasceram na década de 60 no Bonjardim), havia o Mucaba em Gaia e o café Portugal á entrada da rua Costa Cabral, que já não existem.

O Porto sempre foi especial na sua gastronomia, não se pode esquecer que foi nesta cidade que nasceram também o Bacalhau à Gomes Sá, criado pelo portuense José Luís Gomes de Sá Júnior falecido em 1926. E claro, temos as afamadas Tripas à Moda do Porto de onde herdamos o nome de “Tripeiros” desde que demos ao Infante todas as carcaças das reses para a campanha de Ceuta e só ficamos com as tripas para comer.

Mas voltando aos cafés antigos, mesmo os cafés que ainda resistem, como o Aviz, o Ceuta, o Progresso, o Estrela, ou ainda o Guarany, o Majestic e a Brasileira (recentemente remodelados), o Piolho, o Embaixador e outros, sentem imensas dificuldades, pois já pouca gente mora na cidade e ao fim da tarde, quando encerram todos os estabelecimentos, o Porto fica um deserto. Salva-se a “Movida” aos fins-de-semana.

Longe vai o tempo em que o Sérgio Godinho (que também nasceu no Porto) cantava ao contrário:

      Ai, eu estive quase morto no deserto

      E o Porto aqui tão perto...

            


 

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